Quais as fontes desse discurso racista e intolerante que se espalha pela sociedade dos Estados Unidos na Era Trump? Mitos nativistas. Por que não cessam de aumentar os ataques com armas de fogo? O que há de comum e o que há de diferenças entre os ataques em escolas feitos por adolescentes e os cada vez mais frequentes atentados cometidos por racistas brancos contra grupos étnicos escolhidos?
Abaixo não respondemos a tais perguntas, mas contamos a fonte histórica dos mitos que povoam o imaginário dos ultranacionalistas americanos, descritos pelo conceito “nativistas”. Esperamos colaborar para o melhor entendimento das ideias e das ações dessa extrema-direita que vem crescendo assustadoramente.
A colonização europeia das terras da América do Norte ganhou impulso apenas no século XVII, quando franceses e ingleses fizeram esforços efetivos para ocupar e explorar economicamente os territórios a oeste do Oceano Atlântico.
As treze colônias inglesas formadoras dos Estados Unidos contam histórias bastante diversas sobre suas origens e seus fundadores. Além de serem diferentes entre si, as treze colônias diferiam também da América ibero-católica dos portugueses e espanhóis. A divisão original dos EUA entre “norte” e “sul” opôs um tipo de colonização baseada no latifúndio e na escravidão de africanos (parecido com o Brasil, nesse aspecto), a outro tipo de colonização realizada por pessoas livres, em geral fugindo das guerras religiosas que assolavam a Europa, organizadas desde o início com suas famílias e muito ciosas de contarem com a proteção divina.
Como ressalta o texto seguinte, o sentimento de “povo eleito” conduziu os primeiros colonos e, com o tempo, deu-lhes a certeza de encarnarem uma missão civilizadora que se transformou em poderoso eixo na formulação da política externa da jovem nação. Esse é um mito nativista poderoso.
“A América seria um refúgio também para esses grupos religiosos perseguidos. Um desses grupos que chegou a Massachusetts em 1620 (os peregrinos da embarcação Mayflower) tinha como líderes (…) indivíduos religiosos e com formação escolar desenvolvida. (…) Esses “pais peregrinos” (pilgrim fathers) são, de certa forma, os fundadores do que mais tarde formaria os Estados Unidos. Não são os pais de toda a nação, são os pais da parte “Wasp” (em inglês, white anglo-saxon protestant, ou seja, branco, anglo-saxão e protestante). (…) Esses “puritanos” (protestantes calvinistas) tinham em altíssima conta a ideia de que constituíam um “novo Israel”: um grupo escolhido por Deus para criar uma sociedade de “eleitos”. (Leandro Karnal. Estados Unidos A Formação da Nação. Contexto, 2001, p. 37-38)
O advento das Igrejas Reformadas e o abalo sísmico que tal fato provocou na Europa degenerou em guerras fratricidas e ondas migratórias que ajudaram a trazer europeus para a América. No velho continente não havia liberdade religiosa, enquanto a liberdade de consciência se desenvolvia junto com a noção de indivíduos donos de si próprios, que a economia mercantil em expansão estimulava. Declarar fidelidade a uma religião que não fosse a mesma do rei era crime de lesa-majestade.
Os colonos que desembarcaram no norte dos Estados Unidos eram “criminosos” de consciência e vinham em busca da liberdade de crer e pensar. Ao se lançarem ao oceano desconhecido, os “pais peregrinos” inauguravam uma atitude política na qual os indivíduos se insubordinavam contra o Estado em nome de suas convicções. Enquanto o sucesso na empreitada colonizadora era interpretado como prova da aliança com Deus e da Sua aprovação. A “Providência” é um personagem importante na história dos EUA: In God we trust.
Deus na moeda sempre foi uma das marcas fundamentais da sociedade norte-americana.
Na Europa, as relações entre “a ética protestante e o espírito do capitalismo” levaram os países protestantes ao pioneirismo da industrialização, enquanto os reinos católicos tornavam-se comparativamente mais pobres e atrasados. Grosso modo, o norte da Europa concentrava os países protestantes e ricos, enquanto o sul pertencia aos católicos atrasados. Essa imagem foi intensamente difundida pela imprensa, pela diplomacia e pela historiografia do Reino Unido. Aparentemente a ética protestante enriquecia e a católica empobrecia.
Feita a independência das 13 colônias inglesas em 1776 – as primeiras entre as colônias americanas, a primeira entre as Repúblicas Federativas baseadas na tripartição de poderes de Montesquieu e mais tarde imitada em toda a América Latina – o país cresceu rapidamente em direção ao oeste.
Em 1804, o governo federal comprou a Luisiana, até então domínio da França, e a partir da qual passava a controlar o acesso a toda vastidão de terras que separa os Apalaches das Rochosas. Navegando o vasto Mississipi alcançaram outros rios e o coração do continente. Em pouco tempo barcos a vapor encheram esses cursos d’água conduzindo migrantes ávidos por terras e oportunidades mais a oeste, enquanto traziam de volta peles, cereais e carne.
O jovem Estado iluminista que firmara seu contrato social e político em 1787, por obra da Constituição, precisava criar para si uma alma, uma imagem que o caracterizasse como nação. Era diferente do que acontecia na Europa onde as grandes migrações (as “invasões bárbaras”) tinham cessado no século IX e os povos estavam fixados fazia muito tempo, havendo língua, religião, costumes em comum. Mas na costa leste da América do Norte colonizada por europeus vindos da Inglaterra, Escócia, Alemanha, Irlanda, França, Suécia… E o que dizer dos negros trazidos como escravos, que identidade poderiam compartilhar? Sem falar nos nativos americanos empurrados para o oeste e confinados em reservas cada vez menores.
Então quem eram os “cidadãos americanos”? Os criadores e descendentes dos criadores dos Estados Unidos da América? Quem poderia figurar no panteão dos heróis nacionais onde se cultuam, mais do que pessoas, modelos de conduta. Não há sequer algo parecido com a história nacional brasileira que fala da fusão das “3 raças”. Não há Peri salvando Ceci. Nos Estados Unidos, os cidadãos de fato eram os descendentes dos “pilgrim fathers” – que ergueram uma sociedade com o trabalho e fé na proteção divina. E eles eram brancos, protestantes, vindos do norte da Europa, terra dos anglos e saxões, e não se misturavam e maculavam com gente pagã. Os cidadãos eram os Wasp.
O colono mítico é impulsionado pela ética religiosa calvinista, que propõe o trabalho como meio para a redenção individual: ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Longe das monarquias absolutista europeias, os colonos aprenderam a se auto-governarem e a democracia foi uma necessidade de sobrevivência, assim como o valor dado à palavra.
A imagem dos Wasp, na pintura de George Henry Boughton. A comunidade se dirige ao culto. As armas são um elemento fundamental da imagem.
Milhares de pessoas chegaram aos Estados Unidos da América durante todo o século XIX, com rápida aceleração após 1865, quando terminou a Guerra de Secessão e a escravidão foi abolida. Naquele século de surgimento da ideologia nacionalista na Europa, de onde vinham os imigrantes, “América” tornou-se sinônimo de terra das oportunidades e dos fortes, representada por planícies verdes sem fim à espera de quem viesse trabalhar e produzir (a ética protestante).
Enquanto as fronteiras avançavam para o Oeste, as instituições governamentais ganhavam consistência e construíam um Estado. A originalidade dos EUA aparece não apenas no modelo do contrato político exposto na Constituição de 1787, como no seu complemento jurídico, o Estatuto do Noroeste, escrito simultaneamente. Esse documento recusava a atitude colonialista europeia de anexar pela força novos povos e territórios, aceitando que a federação dos Estados Unidos incorporasse apenas as comunidades que por decisão livre e soberana escolhessem se juntar à União (como é chamado o governo federal, cujo papel era exatamente administrar os interesses comuns entre os estados mais antigos do Leste, que logo se converteriam em centros industriais e financeiros, e os novos estados que foram incorporados durante o século XIX).
A contradição entre federalismo e a atitude expansionista de tipo imperial que marcou o país desde a origem resultou em trinta e três estados incorporados após a independência, muitos deles de modo bem pouco voluntário, estendendo-se da costa do Atlântico Norte até o Pacífico em poucas décadas. A presença de populações indígenas foi ignorada perante a missão maior dada por Deus de ir e cultivar a terra – e não caçar, como faziam os índios nas grandes planícies. Os acordos assinados entre a União e as nações indígenas foram sistematicamente quebrados e justificados por uma necessidade moralmente superior àquela que havia justificado o tratado anterior.
Em 1845 o México e os Estados Unidos entraram em guerra por causa do Texas, pertencente ao primeiro, mas habitado por muitos colonos brancos desejosos de se unirem à federação. O governo americano passou muito tempo evitando tomar a iniciativa, que seria vista como ato colonial, por isso, quando um acidente provocou um tiro do lado mexicano, os brios ficaram ofendidos e todos foram à guerra de peito cheio. O conflito terminou em 1848 e além de perder o Texas, a fixação da fronteira no Rio Grande tirou do México Arizona, Novo México e Califórnia (praticamente 50% do território mexicano).
Dessa sucessão de avanços bem-sucedidos veio uma profunda impressão de nação eleita de fato pela Providência, matéria para a ideologia do Destino Manifesto. Ela prosseguia a mitologia dos pais pioneiros, detentores de uma missão sagrada que partia da premissa de um direito moral superior a terra, porque os outros povos americanos, sobretudo de pele mais escura e católicos eram gente inferior, dispensável.
O problema da ocupação de terras cada vez mais distantes como o Havaí e, sobretudo, as Filipinas (1899) tornaram urgente o debate sobre a incorporação de uma população física e culturalmente estranha ao modelo Wasp. No fim, esse problema funcionou como freio para o movimento expansionista, cujo apetite por terras tornou-se uma ameaça ao modelo idealizado da nação de colonos brancos, uma vez que eles teriam que incorporar grandes contingentes não brancos à cidadania e ao eleitorado ou assumir abertamente a posição imperialista.
Por que deveriam fazê-lo e se deveriam fazê-lo foi tema de intensos debates nos jornais e no Congresso durante algumas décadas. O consenso a favor do Destino Manifesto excluía os não brancos. A população negra já era um tema de amplas discussões, com projetos diversos para mandar de volta para a África essa parcela da população que, mesmo nascida na América há gerações, não deveria fazer parte da nova sociedade.
“Em todo o caso, era dolorosamente manifesto que já não podiam deixar ao destino a realização dos desejos expansionistas, e que a mesma exigia força, fato que, segundo a opinião de John Morley, é um traço inevitável do imperialismo. A aplicação de métodos de imposição imperialista significava que os expansionistas seguiam um curso que outrora havia sido considerado alheio ao destino humanitário dos Estados Unidos.” (Albert K. Weinberg, Destino Manifiesto. Ed. Paidós, p. 269)
Em 1828 aconteceu a primeira grande mudança política no país, que mal contava cinquenta anos. A eleição de Andrew Jackson para a presidência marcou a chegada do “homem comum” à Casa Branca. Andrew não era um membro da refinada elite Wasp, como foram Washington, Jefferson, Hamilton ou Adams, mas um homem com uma história igual a milhares de outros que o elegeram.
Seu governo inaugurou a democracia contemporânea baseada no voto universal (mesmo que apenas para homens, livres e brancos), sem barreiras de renda como ainda acontecia em alguns estados do Leste, para não falar do sul escravista. O governo dos comuns se impôs com o avanço para o Oeste e também com a formação de um amplo proletariado nas cidades industrializadas do Leste. E subverteu o acesso ao usufruto da máquina pública tornando-o acessível a todos, de acordo com critérios de pertencimento ao partido que governava. Esse sistema, conhecido como spoil system (sistema de espólio) rompeu o monopólio das primeiras famílias (convertidas em verdadeiras aristocracias) sobre a burocracia estatal, fazendo com que grupos políticos diversos pudessem lutar por ela e desfrutar de seu controle.
Observadores da época se espantavam com a sociedade super-pragmática em que a sonhada República estava se transformando e descreveram a ascensão das classes baixas como sendo as “invasões bárbaras”. “Daniel Webster escrevera, dias antes, que a cidade estava cheia de especuladores, caçadores de cargos públicos, políticos exultantes e gente comum do Oeste e do Sul. As pessoas haviam viajado 800 quilômetros para assistir seu herói tornar-se presidente e falavam como se o país tivesse sido salvo de algo medonho. Quando surgiam pelas ruas gritando urras a Jackson, muitas eram tão turbulentas que os cavalheiros se retraíam.” (Nevins & Commager. Breve História dos EUA, Ed. Alfa-Omega, p. 193)
Andrew Jackson foi presidente entre 1829 e 1837. Na foto, aos 78 anos.
Jackson era advogado, mas foi comerciante e desbravador da fronteira antes de enveredar pela carreira política; suas experiências de vida e a posição que atingiu fizeram dele um vocal importante do sentimento de desconfiança em relação aos empresários e empresas da costa Leste, que avançavam para o oeste junto com os pioneiros para reterem a melhor parte da empreitada. “Disso nasceu sua desconfiança e aversão aos bancos – a mesma desconfiança que sempre marcou o Oeste. O poder financeiro – acreditava Jackson – cobrava muito por seus serviços. Era monstruoso que banqueiros boas-vindas de Nova York e Filadélfia tivessem o poder de arruinar o laborioso povo do Tennessee.” (Nevins & Commager, p. 195)
Em 1832 Jackson vetou a concessão de uma nova carta patente para o funcionamento do segundo Banco dos Estados Unidos, uma operação privada que detinha o monopólio sobre uma série de operações que afetavam todo o país. A rejeição a um sistema financeiro unificado e centralmente fiscalizado resistiu até que o crash de 1929 impusesse mudanças estruturais. A rejeição a poderes distantes e onipotentes, como governos e bancos, é outro elemento comum ao “espírito de fronteira”.
O país cresceu oferecendo liberdade e igualdade aos incontáveis Smiths, mas essas pessoas cultuam um romantismo anárquico, que descrê das instituições do Leste, onde o dinheiro manda, e valorizam a “sabedoria do homem comum”. O “Oeste” é um mito nativista importante porque “lá” existe a liberdade e a natureza intocada criada por Deus esperando para ser domesticada. O mal habita nas cidades, o bem, na Natureza (tema tão antigo quanto religioso). O desenvolvimento da democracia jacksoniana baseada no pequeno proprietário independente, tipicamente farwest “associava a expansão e liberdade em uma relação de meio e fim”. (Albert Weinberg, p.104)
Com a expansão do território, os Estados Unidos conheceram uma nova regionalização. À velha divisão Norte/Sul somou-se o Oeste, a fronteira móvel e lugar mítico do imaginário americano. Tudo que é bom e legal está ou veio do Oeste. A Costa Leste, a velha Nova Inglaterra, se tornaria a irmã malvada da história, terra dos bancos e do sistema financeiro, contra o qual os homens comuns passam a vida combatendo.
Na verdade, pouco antes do século XIX terminar as terras “livres” do Oeste já quase não existiam, embora o sonho continuasse a atrair milhões de pessoas todos os anos. Nesse tempo, o farwest já era objeto de mitificação de escritores e jornalistas. Em particular, deve-se a um historiador chamado Frederick Jackson Turner a elaboração de uma interpretação para a história dos EUA que veio a público em 1893 e alcançou grande influência: a identificação entre “marcha para o Oeste” e o “espírito americano”.
“A progressão da fronteira correspondeu a uma progressiva liberação perante a Europa e a um contínuo progresso da independência em bases americanas. Estudar o deslocamento da Fronteira… e a condição dos homens que viveram nessa época é estudar a parte verdadeiramente americana de nossa história. (…) A fronteira é o mais rápido e eficaz fator de americanização. A natureza selvagem se impõe ao colono.” (…) As sucessivas levas de imigrantes espalharam-se ao longo da Fronteira, onde “foram americanizadas, libertas e fundidas numa raça caldeada, que não era inglesa nem por nacionalidade nem pelos caracteres”, em oposição à região costeira, que ficou mais anglo-saxônica, e aqui se pensa imediatamente na Nova Inglaterra. (Claude Fohlen. América Anglo-saxônica de 1815 à atualidade, Ed. Pioneira, p.286/287)
Representação clássica do Destino Manifesto. Certamente essa imagem sintetiza o mito nativista do oeste que é também a liberdade. Pintura de John Gast.
Por fim, o pioneiro da fronteira seria levado, pelo isolamento a um comportamento de tipo “hostil a qualquer controle, e especialmente a qualquer controle direto. O coletor de impostos é considerado um representante da opressão.” A tradição muitas vezes confundiu “a liberdade individual com a ausência de qualquer governo efetivo”. (Claude Fohlen, p. 285)
A ausência de Estado significava o porte de arma, pois entre animais selvagens e ladrões tudo podia acontecer. Uma enxada, um saco de sementes, um machado e uma arma – esse era, desde o século XVII, o equipamento básico do desbravador do Oeste, o arquétipo do Homem Livre. A ideia de viver longe do Estado opressor, explorador e injusto era um forte elemento do imaginário da fronteira.
Parte da argumentação da Associação Nacional do Rifle (NRA) – o poderoso lobby contrário à proibição da venda de armas – é o direito do cidadão se insurgir contra o Estado opressor. A reação ao que se percebe como um avanço tirânico do poder do Estado Federal (União) sobre a sociedade está na raiz de muitos movimentos nativistas radicais que se formaram no século XX. Essas imagens estão impregnadas no imaginário americano.
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