HOLOCAUSTO – PARTE I

13 de maio de 2019

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO ANTISSEMITISMO

 

Os judeus têm sua história umbilicalmente ligada à história do Ocidente e vice-versa. A “civilização ocidental”, cuja matriz é o cristianismo, herdou quase dois mil anos de uma memória socialmente construída na qual a Igreja Católica marcou os judeus como inimigos a fim de afirmar tanto o Novo Testamento quanto seu papel de intérprete da vontade de Deus.

Quando a revolução Iluminista do século XVIII provocou a separação entre Igreja e Estado, a religião se tornou assunto privado e finalmente os judeus foram reconhecidos como cidadãos de plenos direitos, iguais a todos os cristãos. Mas as sementes da discriminação haviam deitado raízes e logo eles se tornaram um novo tipo de estranho: a nação dispersa no mundo das nações, o estrangeiro entre nós. Depois, com o “racismo científico”, os judeus se tornaram uma “raça” à parte: os semitas. Quando a ideologia nacionalista associou nações a raças, os judeus quase foram eliminados pelo nazismo e a humanidade conheceu uma nova palavra: genocídio.

A derrota do Eixo ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a aprovação da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) expressaram a condenação moral ao antissemitismo. A crença de que a criação de um Estado territorial, Israel, acabaria com o calvário desse povo revelou-se não só enganosa, mas fonte de recrudescimento do antissemitismo, agora na versão anti-sionista. Atualmente, nacionalistas xenófobos e amantes das teorias da conspiração retomam o espantalho judeu para dar rosto a seus fantasmas.

Essa longa história será contada num dossiê em três partes. A Parte I, que segue abaixo, analisa o percurso histórico do antijudaísmo ao antissemitismo, que não são exatamente a mesma coisa. Na segunda parte, a história do holocausto, o genocídio paradigmático. Na terceira parte, o antissemitismo atual.

 

A DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA COMO ESTRATÉGIA DO CRISTIANISMO

Muito antes do advento do cristianismo, os judeus foram perseguidos por sua crença em Iavé. O monoteísmo radical não fazia concessões aos muitos deuses e seus representantes terrenos na Babilônia, Egito ou Roma, o que lhes renderia cativeiros, diásporas e uma fé cada vez mais inabalável na aliança com o Deus, que ajudaram a moldar a própria religião.

Mas não recuaremos a tempos tão remotos. Essas primeiras perseguições derivavam da lógica da expansão territorial e atingiam igualmente todos os conquistados, que deveriam se submeter aos conquistadores. É com o advento do cristianismo que essa história começa de fato.

 

O antijudaísmo teológico

Nas primeiras décadas do cristianismo, a pequena comunidade cristã de Jerusalém pertencia ao rol das “seitas judias” e seus praticantes eram todos judeus. A destruição do Templo de Salomão por ordem do imperador romano Tito, no ano 70, e a expulsão dos judeus de toda a Palestina (representada na imagem da abertura, parte do Arco do Triunfo de Tito) colocou esses cristãos em contato com os gentios, que se tornaram alvo de sua catequização, enquanto os demais judeus rejeitavam a figura de Jesus Cristo como Messias. “São Paulo, nos explica o Novo Testamento, tomou a decisão capital de dispensar os prosélitos cristãos dos mandamentos da Lei e da circuncisão – e, num golpe, mudou o curso da história mundial. (Poliakov, p. 17)

Daí por diante, os judeus encararam o cristianismo como uma heresia. Já os cristãos, sem negar o Deus comum, passaram a afirmar que Iavé havia abandonado os judeus para fazer uma Nova Aliança. Outra mudança importante ocorreu nessa época: expostos às influências helenísticas e romanas, os cristãos começaram a afirmar que Jesus seria filho do próprio Deus. Tal crença, transformada em dogma, fez com que os judeus fossem acusados do mais inominável dos crimes, o deicídio, afinal “eles” escolheram salvar Barrabás e não Jesus. Pior, os judeus, soberbos, persistiriam no erro ao não aceitarem o Messias.

Logo no início do século IV, uma Igreja em expansão adota o modelo de concílios ou sínodos para regrar a vida cristã. O primeiro deles foi o Concílio de Elvira (306). Entre outras disposições, ele proibiu aos cristãos compartilharem refeições ou se casarem com judeus. A crença em um contato que é “impuro”, que “corrompe”, muito claramente associado aos judeus, estava sendo criada. O cristão estava purificado pelo batismo, pela aceitação de Jesus – e, caso entrasse em contato com um judeu (ou um herege, ou um pagão), seria punido temporariamente com a suspensão do direito à comunhão.

Quando, em 313, o imperador Constantino cessou a perseguição aos cristãos e judeus por meio do Edito de Milão, o cristianismo expandiu-se rapidamente, tornando-se uma força política. Já no Primeiro Concílio Ecumênico de Niceia, em 325, os bispos decidiram, após longas discussões, que o Pai e Filho possuem a mesma natureza divina. Para os judeus, os cristãos incorriam em idolatria politeísta. Para os cristãos, era fundamental se dissociar da matriz judaica e afirmar a figura de Jesus Cristo. A partir do Concílio de Antioquia (341), os cristãos foram orientados a trabalhar aos sábados (sabá ou shabat, o dia de descanso sagrado para os judeus), e proibidos de se misturarem em festas.

O cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano em 380, pelo Edito de Tessalônica. Doravante, a intensa atividade missionária cristã passou a dispor do poder estatal romano para impor sua ortodoxia e combater os desviantes, os “hereges”. A associação entre a Igreja e Império poupou os romanos de serem responsabilizados pela morte de Jesus, embora eles fossem os governantes da Palestina e a crucificação fosse uma penalidade tipicamente romana. O fato é que, ao se tornar esteio do Império decadente, a Igreja precisava ser incontestável em suas palavras de salvação e autoridade sacra.

Para os recém-chegados povos germânicos, que seriam convertidos nos quatro séculos seguintes, também se ensinou a diferenciar e apartar os judeus, construindo ao longo do tempo, pela repetição, o que se chamou de “antijudaísmo teológico”. Não é casual que o Novo Testamento identifique o apóstolo “traidor” com um nome filologicamente relacionado à Judeia e aos judeus: Judas.

Catedral de Estrasburgo, seculo XIII. As imagens da Igreja, altiva e portadora da cruz, e da Sinagoga, vendada e cabisbaixa, eram alegorias comuns nas catedrais góticas.

Catedral de Estrasburgo, seculo XIII. As imagens da Igreja, altiva e portadora da cruz, e da Sinagoga, vendada e cabisbaixa, eram alegorias comuns nas catedrais góticas.

É interessante observar que, nesses primeiros tempos, os judeus eram acusados de serem mentirosos, ladrões, bêbados, glutões, incrédulos e orgulhosos, mas não usurários.

No início do século V, o primeiro grande teólogo da Igreja, o africano Agostinho de Hipona, distingue as três maiores fontes do pecado: a carne, o poder e o dinheiro, embora apenas os deste último grupo sejam imperdoáveis. Consolidava-se um traço ético muito característico do catolicismo: a visão negativa sobre a economia monetária e o dinamismo social que ela representa. Afinal, um clero que pretendia “controlar” a história precisava impedir as mudanças. E assim, o terrível crime do deicídio foi agravado pela traição de Judas por 30 dinheiros…

 

Cruzadas: o antijudaísmo popular

Na turbulenta Europa da Alta Idade Média, os textos cristãos repetiam as velhas acusações aos judeus, sem maiores repercussões. Os documentos revelam certa convivência entre as comunidades. Mas tudo muda a partir da Baixa Idade Média, quando a crise do feudalismo desencadeia as Cruzadas. A crença na necessidade de “libertar Jerusalém dos infiéis” para o retorno de Cristo e o advento do Juízo Final provocou a primeira manifestação popular e generalizada de ódio contra as comunidades judias.

Por todas as rotas, os soldados cruzados, gente comum em sua maioria, atacaram indiscriminadamente vilarejos, bairros e judiarias, matando em nome de Deus. Depois de tanto tempo ouvindo que os judeus eram os “assassinos” d’Ele, o antijudaísmo tornou-se o elemento que ajudava a corporificar, a materializar a unidade dos combatentes cristãos contra os inimigos da Igreja.

Tais ataques medievais aos judeus estão entre as primeiras manifestações de psicologia de massas, na qual a carga de incertezas, tensões e expectativas são canalizadas para a violência coletiva contra algo – símbolo ou indivíduo. Ao entrarem em Jerusalém em 1099, os participantes da Primeira Cruzada massacraram os judeus, bem como os cristãos orientais, acusados de aceitarem o convívio com os assassinos do Filho de Deus.

O antissemitismo popular foi reforçado pela Igreja Católica quando, em 1215, o papa Inocêncio III convocou o Quarto Concílio de Latrão a fim de consolidar a autoridade papal sobre toda a Cristandade, o que incluía combater os não-cristãos. Em Latrão, decidiu-se que os judeus deveriam ser diferenciados pelo uso de uma peça de vestuário específica, a fim de evitar relações “espúrias” entre os dois grupos. Essa exigência abrangia islamitas, heréticos, leprosos e prostitutas, cabendo às autoridades civis determinar qual peça de roupa seria usada por cada grupo. A insígnia de cor amarela, comumente chamada “rodela”, e o chapéu cônico tornaram-se signos dos judeus. Previsivelmente, a identificação visual os expunha ainda mais à fúria popular.

O Concílio também determinava: “Não se mostrarão em público durante a Semana Santa, pois alguns envergam nestes dias seus melhores adornos e zombam dos cristãos enlutados” (Poliakov, p. 54). A questão da usura (a cobrança de juros) praticada pelos judeus também foi tema das disposições conciliares e impuseram-se restrições para o emprego de judeus em funções públicas. Uma novidade criada em Latrão, de desdobramentos funestos para os judeus, foi o Tribunal do Santo Ofício (Inquisição). A princípio, a Inquisição serviu para combater as heresias que estavam se multiplicando naquela época. Pouco depois, converteu-se em braço fundamental das coroas ibéricas para afirmarem seus poderes sobre as comunidades muçulmanas e judias pré-existentes.

Esse antijudaísmo popular originou outras acusações que se tornaram comuns em cidades da Inglaterra, França, Sacro Império e na Península Ibérica (a Sefaradi dos judeus mediterrânicos): os judeus praticariam assassinatos rituais, sobretudo com crianças cristãs, além de profanarem as hóstias para fazerem poções. Denúncias de bruxaria se multiplicavam, sobretudo contra as judias. Aparece, então, a figura do “judeu errante”, aquele cuja passagem geralmente era seguida pela “descoberta” de algum crime (o bode expiatório típico).

As acusações de assassinato ritual eram frequentes, e as mortes súbitas de bebês não raro eram atribuídas a bruxarias judias. Os conhecimentos médicos eram assustadores na “Idade das Trevas” e renderam um novo tipo de acusação: aquela feita não contra uma pessoa, mas contra uma coletividade.

As acusações de assassinato ritual eram frequentes, e as mortes súbitas de bebês não raro eram atribuídas a bruxarias judias. Os conhecimentos médicos eram assustadores na “Idade das Trevas” e renderam um novo tipo de acusação: aquela feita não contra uma pessoa, mas contra uma coletividade.

 

Nas queixas mencionadas em documentos eclesiásticos e civis, o que aparece é a denúncia de uma ação maléfica praticada por judeus. Tais acusações serviram de pretexto para centenas de ataques, incêndios e morticínios bárbaros praticados por cristãos. Em muitos casos, as autoridades religiosas tentavam interceder em favor dos judeus, sem sucesso.

O confinamento nas judiarias e guetos respondeu, no fim, a uma dupla sensação de insegurança, uma falsa, outra verdadeira: os cristãos queriam trancar os judeus para que eles não saíssem às escondidas executando seus planos satânicos; os judeus queriam muros para conter a turba raivosa e dependiam da boa-vontade das autoridades civis para afastar os atacantes e proteger a comunidade.

O segundo pico dessa violência catártica contra os judeus veio com a Peste Negra, que chegou à Europa por volta de 1348 e, em uma década, devastou um terço da população do continente. Nesse caso, eles foram culpados diretamente pelo surgimento da doença, que teria a função de acabar com os cristãos. Até mesmo o papa Clemente VI tentou explicar que os judeus também morriam da doença, mas era tarde demais.

Já marcados com o selo da impureza e da traição, os judeus ganhavam a pecha de conspiradores. Era uma caracterização por espelhamento: não era lógico que os judeus tentassem se vingar dos cristãos, sendo vítimas constantes dos seus ataques? Não era lógico que, sendo minoria, agissem de forma escondida, insidiosa?

 

Os judeus e a usura

Com as Cruzadas e a reabertura do Mediterrâneo, ganhou força o Renascimento Comercial na Europa. Nesse período se consagra a identificação entre judeu/comerciante/usurário, a ponto da palavra “judeu” aparecer em diversos documentos como sinônimo de usurário.

A Igreja proibia aos cristãos o empréstimo de dinheiro a juros, considerando-o um grave pecado. Os judeus se encontravam em condições de exercer a função de cambistas e prestamistas nos mercados que surgiam porque, proibidos pela Igreja de possuírem ou trabalharem com a terra, o comércio e o artesanato lhes aparecia como única opção. A grande devoção dos judeus aos estudos religiosos aparelhava-os com os conhecimentos matemáticos e legais necessários à função de cambistas e notários nas feiras. A própria violência dos cristãos estimulava os judeus a buscarem segurança em bens móveis, como ouro e joias, que pudessem ser facilmente carregados em caso de fuga ou para pagar proteção. Por fim, as frequentes fugas das comunidades de um reino a outro estabeleceram redes de contatos que eram mobilizadas para fazer negócios quando fosse o caso.

A discussão em torno da usura foi um tema vital para a cristandade medieval, sobretudo para a Igreja. O debate é amplo, envolveu teólogos basilares para a doutrina cristã, mas não é nosso foco aqui. Basta registrar a construção do preconceito por imagens que se amalgamam: o Judas que “vendeu” Cristo por 30 moedas antecipava todos os judeus que “amam o dinheiro acima de tudo”. O aspecto trágico dessa relação é que os judeus – como, mais tarde, os protestantes – enxergavam o dinheiro como um prêmio de Deus a ser usado em prol dos estudos religiosos (nas escolas rabínicas) e da comunidade, para a qual parte significativa desses ganhos deveria reverter.

Um estudo mais acurado da economia daqueles séculos demonstra que, ao contrário do proclamado pelo senso comum, os judeus exerceram papel cada vez menos importante nessas atividades. À medida que os cristãos ingressavam no mundo dos negócios, costumavam obter vantagens, dadas pela religião, em detrimento dos judeus. Quais são as casas bancárias mais conhecidas da Baixa Idade Média? Médici e Fugger, casas católicas. Todavia, não são os cristãos usurários, só os judeus.

Para muitos estudiosos e historiadores, os judeus se tornam parte indissociável do desenvolvimento da economia capitalista, mas essa relação é casual, não causal, bastando observar que os reinos de onde os judeus saíram expulsos foram exatamente os que mais desenvolveram o capitalismo comercial.

 

Os judeus da corte e do gueto

A condição de prestamistas dos judeus logo atraiu a atenção de príncipes e nobres interessados em garantir acesso ao dinheiro. O prestamista adiantava o valor ao seu senhor e geralmente o recuperava cobrando os impostos diretamente do povo, o que não os fazia muito queridos. A presença de judeus na função de banqueiros/administradores das finanças junto às cortes deu origem à figura do “judeu da corte”. Séculos depois, algumas revoltas populares, especialmente no leste europeu, farão dos judeus o alvo, acusados de agentes das autoridades contestadas.

Observa-se que a acusação de que os judeus “amam o dinheiro” era resultado de uma quase imposição dos cristãos, que esperavam daqueles exatamente isso: dinheiro para os seus negócios. Para os judeus, ao contrário, o dinheiro salvava vidas, era benéfico: “Sem dinheiro, a coletividade judaica está consagrada a desaparecer” (Poliakov, p.133).

As comunidades compreendiam as necessidades e vantagens de contar com a proteção dos poderosos frente às ocasionais ondas de violência da turba cristã.  Para as monarquias, os judeus eram fontes de renda úteis, pois taxas de todo tipo eram cobradas para que a comunidade pudesse existir. E, quando necessário, o antijudaísmo era manipulado para atiçar o povo contra os judeus que, em troca de proteção, aceitavam pagar novas contribuições. Muitas vezes, o mesmo jogo servia para que dívidas já existentes fossem canceladas, sendo esta a causa de muitas falências bancárias em toda a Idade Moderna.

Mesmo assim, no final da Idade Média, em alguns reinos, todos os judeus foram expulsos. Mais uma vez, eram os bodes expiatórios usados para unir o povo, dessa vez em torno da monarquia, guardiã da fé cristã. Em 1290 os judeus foram expulsos da Inglaterra; da França, em 1394; da Espanha, em 1492; de Portugal, em 1493. Sempre no eixo econômico do Atlântico.

Os judeus se deslocaram para leste, primeiro em direção às terras do Sacro Império Germânico e, posteriormente, aos reinos da Polônia e Lituânia, onde existiu uma duradoura política pró-imigração judaica. Concentrados na Europa oriental, afastados das grandes mudanças experimentadas a ocidente, esses judeus vão originar um novo grupo etno-cultural – o dos judeus ashkenazi, falantes de ídiche e distintos dos judeus sefaraditas, que permaneceram no ambiente do Mediterrâneo e falavam árabe.

No fim da Idade Média, o gueto se fecha: trancado de noite, aberto apenas de dia. A comunidade volta-se para si mesma e fica presa a regras estritas. E, apesar de terem participado inicialmente do processo das Grandes Navegações e de colonização da América, os judeus perdem espaço para os comerciantes cristãos. Enquanto a burguesia, sobretudo protestante, se multiplicava, os judeus perdiam importância no mercado, resultando em poucos estímulos externos de transformação.

Do lado de fora, a Reforma Protestante, sobretudo na figura de seu patrono, Martinho Lutero, investia novamente no antijudaísmo e afirmava, por exemplo: “um judeu, um coração judeu são duros como um bordão, como a pedra, como o ferro, como o próprio Diabo. Em suma, são filhos do Diabo, condenados às labaredas do Inferno” (Poliakov, p. 188). Já Erasmo de Roterdã, humanista católico, constatou: “Se ser bom cristão é detestar os judeus, então somos todos bons cristãos” (Poliakov, p. 193).

Shylock, o judeu de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare é exemplar porque contrapõe a visão popular, do usurário que é desprezado por todos que a ele recorrem, à do escritor humanista que – no magistral monólogo do personagem – reivindica a mesma humanidade para judeus e cristãos.

Shylock, o judeu de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare é exemplar porque contrapõe a visão popular, do usurário que é desprezado por todos que a ele recorrem, à do escritor humanista que – no magistral monólogo do personagem – reivindica a mesma humanidade para judeus e cristãos.

 

O ESTADO LAICO E OS DILEMAS DA ASSIMILAÇÃO

Com o Iluminismo e a Revolução Francesa (1789), tudo muda. A separação entre Igreja e Estado constitui um pilar do pensamento liberal que se difundiu pela Europa e pelo mundo no século XIX. Após duzentos anos de guerras entre católicos e protestantes, os reis, filósofos e sociedades em geral se convenceram do caráter muito pessoal da fé, impossível de ser imposta à força ou controlada por qualquer governo. Tarde demais, as falidas monarquias absolutistas percebiam o risco de transformar em suspeitos de sedição todos os súditos, algo insustentável para um Estado duradouro.

Para os judeus que buscavam se integrar, as ideias iluministas de igualdade perante a lei, laicidade e tolerância religiosa pareceram oferecer a solução para o antijudaísmo. “Na França da Revolução, em 24 de dezembro de 1789, a Assembleia reconhece direitos cívicos plenos e integrais para os judeus e protestantes. Mas nem pensar em reconhecer direitos especiais de qualquer categoria. Na Assembleia, Clermont-Tonnerre pronuncia esta frase definitiva: ‘É preciso recusar tudo aos judeus como nação e conceder-lhes tudo como indivíduos: convém que eles não constituam uma ordem, no Estado ou no corpo político’… Tudo está dito: para ele, como para os outros, chegou o tempo do cada um por si.” (Attali, p. 367).

Com Napoleão e a guerra revolucionária pela Europa, guetos foram abertos, interdições foram suspensas, roupas típicas foram abandonadas. Às vezes, como no caso da Prússia, um monarca reformista revogava tais restrições a fim de contar com o empreendedorismo dos judeus para fazer crescer a economia do reino.

>Napoleão é saudado pelos judeus. A imagem foi produzida em terras alemãs, em 1806. Napoleão é o liberalismo e os judeus são bonapartistas, logo...

Napoleão é saudado pelos judeus. A imagem foi produzida em terras alemãs, em 1806. Napoleão é o liberalismo e os judeus são bonapartistas, logo…

Não demorou para as forças da reação começarem a desconfiar dos judeus por sua associação aos ideias liberais franceses. Em 1806, o austríaco príncipe de Metternich, um dos principais expoentes do anti-iluminismo, escreveu: “Napoleão é o Messias dos judeus”. E recomendou à polícia imperial austríaca mantê-los sob vigilância, para o caso de espionarem para os franceses. A partir de então, é a pecha de “quinta coluna” que ganha força: para a Santa Aliança os judeus, não sendo cristãos, não eram confiáveis e nem pertenciam ao povo “de verdade”.

Em 1848, ocorreu o último grande levante contra o espírito absolutista da Santa Aliança. A “Primavera dos Povos” foi embalada pelas ideias de igualdade civil, separação entre Igreja e Estado e liberdade econômica, além de expressões do nascente nacionalismo. Em terras alemãs e polonesas, a presença judia nas barricadas já se destacava, pois acreditavam que o liberalismo poria fim ao antijudaísmo.

A segunda metade do século XIX viu os judeus saírem dos guetos, cortarem as barbas e deixarem o ídiche em segundo plano. Todavia, a parte da comunidade que permanecia no gueto se fechava ainda mais às transformações à sua volta e se perguntava se a assimilação não levaria ao desaparecimento do judaísmo. Esse foi o grande dilema do século XIX.

 

O “judeu internacional”

Desidratado o argumento da religião, retoma-se o da riqueza.

No século da industrialização, do capitalismo financeiro, do imperialismo, e também do nascimento da classe operária e do movimento socialista, os judeus ocupam papel de destaque em vários momentos e lugares como protagonistas dessas transformações.

Misturados à multidão, os judeus são convertidos mais uma vez em símbolo: recorre-se ao “judeu usurário” para que rapidamente as massas compreendam a crítica ao capitalismo. O capitalista explora o suor da maioria sem trabalhar porque é o dono do dinheiro e dos meios de produção. Os judeus estavam identificados ao sistema bancário, visto como o ápice do capitalismo “improdutivo”, por oposição ao capital investido nas indústrias, na produção. E, diz o ditado, dinheiro não tem pátria…

Na metade do século XIX, o preconceito faz seu caminho até a universidade e se sofistica, com explicações pretensamente racionais e científicas – bem ao gosto do positivismo em voga. Não é casual que dois pilares do pensamento econômico e sociológico do século XIX, Karl Marx e Max Weber, fossem profundamente antissemitas, embora por razões distintas.

Para Marx, o judaísmo é a matriz do capitalismo, pois o dinheiro seria o “deus profano” de todos os judeus. Logo, para o pai do “socialismo científico”, apenas com o desaparecimento do sistema capitalista e da sociedade capitalista deixariam de existir o judaísmo e o antijudaísmo. Ao mesmo tempo, Marx também criticava o “espírito do gueto” e conclamava os judeus a olharem a história da perspectiva da luta de classes e não da identidade religiosa auto-segregadora e alienante.

Weber, autor d’A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904), foi “dos primeiros a ligar a força do capitalismo à sociedade religiosa, ao passo que, antes dele, muitos viam no dinheiro o libertador do obscurantismo teológico. E em particular, escreve ele, o judaísmo ‘teve uma importância histórica decisiva no desenvolvimento da ética ocidental em matéria de economia’.” (Attali, p. 411). O sociólogo alemão, no entanto, enveredou por subjetivas considerações morais para concluir que os judeus praticam um capitalismo “improdutivo”, preferindo a barganha e a usura, enquanto outros empreendedores (os nacionais) buscariam investir na produção de riquezas, incluindo os empregos que sustentam os pobres.

O fato é que a expressiva presença de famílias judias donas de bancos no topo do sistema financeiro internacional, na virada do século XX, fez com que seus nomes aparecessem associados às cada vez mais frequentes guerras de cunho nacional-imperialista e, portanto, como seus beneficiários, enquanto o povo empobrecia. Na Alemanha, em 1874, Otto Glagau denunciava em uma série de artigos o “capital predador” (judeu), em oposição ao “capital criador” (cristão). E qual seria a verdadeira diferença entre eles? O capital cristão era nacional e protecionista; o judeu, apátrida e globalista! Mais tarde, Werner Sombart, sociólogo e economista aclamado pelos nazistas, afirmou: “o capitalismo financeiro, necessariamente parasita e transnacional, é uma invenção e uma especialidade judaica”. (Attali, p. 415).

Eis o “judeu internacional”, um personagem que ganhará popularidade nesse período. Ele representa o ultraliberalismo e sua voraz concentração de riqueza. A burguesia nacional, cristã, teria objetivos patrióticos e se preocuparia com o povo, diferente da burguesia transnacional, representada pelos judeus, que só teria compromisso com o lucro. Na primeira grande crise do capitalismo industrial, por volta de 1880, os judeus da França e da Alemanha foram responsabilizados por falências, desemprego e misérias. O problema não seria o capitalismo, mas o capitalista.

Representação do poder financeiro da família Rothschild no final do século XIX. A imagem dos tentáculos de polvo que abraçam e estrangulam serão recorrentes na iconografia antissemita contemporânea. Esse imaginário culminará no holocausto.

Representação do poder financeiro da família Rothschild no final do século XIX. A imagem dos tentáculos de polvo que abraçam e estrangulam serão recorrentes na iconografia antissemita contemporânea

 

Nacionalismo e antissemitismo

Quando os exércitos revolucionários franceses invadiram os reinos da Europa em nome da liberdade, eles trouxeram à luz um novo filho: o nacionalismo romântico. Nas terras alemãs, o conceituado filósofo Johann Gottlieb Fichte publicava, em 1808, os Discursos à Nação Alemã convocando o povo a lutar contra os invasores franceses. Fichte apelava a um laço distinto da velha ordem aristocrática: invocava a gente comum, o Povo (Volk), os verdadeiros representantes da nação.

Esses compatriotas estariam unidos pela geografia, pela história, pela língua e, num segundo momento, pela “raça”. Os alemães seriam os descendentes das tribos germânicas que derrotaram o Império Romano e os judeus nada tinham a ver com essa história: pior, ameaçariam sua existência. Fichte foi um dos pais do antissemitismo. Em 1793, analisando a Revolução Francesa, o filósofo declarou que a única chance de se conceder algum direito aos judeus seria “cortar todas as suas cabeças em uma noite, e colocar novas sobre seus ombros, as quais não conteriam uma única ideia judia.

A discriminação ganhava um novo alicerce: a “cultura”. O calendário próprio e suas celebrações; o descanso do shabat; as roupas típicas; a vida em separado – os “judeus do gueto” corporificavam a figura do “outro”, do “quinta coluna” por excelência. Com a expansão dos nacionalismos, novas ondas de intolerância e ataques (como os famosos pogroms na Rússia) e um contínuo emigrar de judeus em direção ao oeste da Europa e Estados Unidos, trazem de volta a figura do “judeu errante”. Mas, agora, ele será “cientificamente” classificado como “nômade” e, portanto, “apátrida”; antípoda do nacionalista, que está “enraizado” à terra natal.

Em 1879, o jornalista alemão Wilhelm Marr, cunhou o termo antissemitismo para designar um “ódio não-confessional” aos judeus e ao judaísmo: um ódio ao judeu como “estrangeiro”, potencialmente aberto às influências alienígenas.

A estigmatização dos judeus se completou com a racialização do debate científico e político, no final do século XIX. A “raça” semita seria diferente da “raça” ariana, em imaginário que remontava ao judeu “impuro” da Idade Média. O filósofo francês Arthur de Gobineau explicou: os arianos são a raça branca “pura”, logo, superior, enquanto os semitas pertenceriam a um ramo decadente da “raça branca” . O problema não estaria na religião, mas em algo mais profundo e impossível de ser alterado: o sangue.

No contexto nacionalista, a diáspora judaica foi vista como prova de inferioridade racial, da incapacidade dos judeus em criarem o próprio país, constituindo-se, portanto, em verdadeiros parasitas junto a outras nações ou raças. Na Europa das Nações não havia lugar para , a “raça judia”.

 O cartunista Will Eisner desenhou a história dos Protocolos (textos que usaram para justificar o morticínio do holocausto) desde suas origens francesas às atuais edições para demonstrar a persistência da teoria conspiratória, quando ela envolve judeus.

 O cartunista Will Eisner desenhou a história dos Protocolos desde suas origens francesas às atuais edições para demonstrar a persistência da teoria conspiratória, quando ela envolve judeus

Os Protocolos dos Sábios de Sião, publicado em 1905, é uma peça de propaganda antissemita escrita por um agente da polícia imperial russa, com o objetivo de enfraquecer a posição que alguns judeus liberais estavam galgando junto aos czares.

A história começa com o narrador declarando haver encontrado documentos secretos (os protocolos) de uma reunião de grandes rabinos, destinada a traçar um plano para dominar o mundo. A estratégia dos judeus, paralela à do bolchevismo, seria disseminar a democracia e o individualismo por todo o mundo, a fim de enfraquecer os valores tradicionais, a família e os Estados. Simultaneamente, por meio do sistema financeiro, os judeus estenderiam seus tentáculos sobre as economias de todos os países, sugando-as até esgotá-las. Feito isso, todos os gentios se tornariam escravos e os judeus ganhariam dinheiro infinitamente.

 

O Caso Dreyfus e o sionismo

Entre 1894 a 1906, estoura na França o Caso Dreyfus, dividindo o país entre socialistas e conservadores. Os primeiros defendiam a inocência do capitão Alfred Dreyfus, um oficial da artilharia acusado de alta traição, denunciando os vícios do processo, enquanto os conservadores investiam no judaísmo do acusado como prova.

O Caso Dreyfus relacionava-se à humilhante derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), depois da qual o país perdeu as ricas regiões carboníferas da Alsácia e Lorena para o recém-fundado Segundo Reich Alemão. Abalado, o nacionalismo francês buscava bodes expiatórios para minimizar os vexames protagonizados pelos militares. Dreyfus foi acusado de haver passado informações militares para os prussianos, embora não houvesse nenhuma prova concreta contra ele – exceto o fato de ser judeu. Todo o processo, eivado de vícios, terminou com uma condenação à prisão perpétua na Ilha do Diabo, em 1894.

Em 12 de janeiro de 1898, o célebre escritor francês Émile Zola, autor de Madame Bovary, publicou no jornal de esquerda L’Aurore o violento manifesto J’accuse responsabilizando todo o alto comando do Exército francês pela condenação de um inocente e denunciando o antissemitismo intrínseco à sociedade francesa. Zola descreveu o que lhe parecia o verdadeiro crime: “É o crime de aprisionar os pequenos e os humildes, de exasperar as paixões de reação e intolerância, ao abrigo do odioso antissemitismo, do qual a grande França liberal dos direitos do homem morrerá, se não se curar.

A reação provocada pelo artigo de Zola levou a um segundo julgamento de Dreyfus, em 1899. O capitão foi novamente declarado culpado, embora sua pena tenha sido reduzida a dez anos de prisão. Dreyfus acabou anistiado naquele mesmo ano, mas o reconhecimento de sua inocência só aconteceu em 1906.

O Caso Dreyfus dividiu a França por décadas e repercutiu por toda a Europa. No fim, o que todos acompanhavam era a novela da assimilação dos judeus pelas sociedades contemporâneas. Dreyfus era um oficial impecável, as provas eram nulas, e mesmo assim os franceses não acreditaram na palavra do… judeu.

Cobrindo o Caso Dreyfus, o jornalista judeu Theodor Herzl, que havia fugido do antissemitismo da Áustria em busca do sonho assimilacionista na França, frustrava-se com o que via e, em resposta às suas angústias, escreveu O Estado judeu, publicado em 1895. O livro convocava os judeus a abandonarem a Europa para criarem um país em outro continente.“Somos um povo, é o inimigo que, sem que a nossa vontade partícipe disso, nos faz assim, e assim tem ocorrido sempre no curso da história. Em 1897, Herzl fundou, na Basileia, o movimento nacionalista judeu: o sionismo, invocando “uma terra sem povo para um povo sem terra”.

Theodor Herzl (1860-1904), o pai do nacionalismo judaico

Theodor Herzl (1860-1904), o pai do nacionalismo judaico

 

 

SAIBA MAIS 

  • ATTALI, Jacques. Os judeus, o dinheiro e o mundo. São Paulo: Editora Futura, 2003.
  • BARBOSA, Ruy. O Processo do Capitão Dreyfus. São Paulo: Montecristo, 2019.
  • HERZL, Theodor. O Estado Judeu. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 1998.
  • POLIAKOV, Léon. De Cristo aos judeus da corte. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
    Todas as citações referentes à Era romana e época medieval pertencem a esse livro
  • ZOLA, Émile. J’accuse. (Domínio Púbico) Amazon para ebook (texto original em francês)
    www.amazon.com.br/Jaccuse-French-%C3%89mile-Zola-ebook/dp/B005R3V0QS/ref=dp_kinw_strp_exp_1_1
    Eu acuso. http://www.omarrare.uerj.br/numero12/pdfs/emile.pdf (em português)

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