À SOMBRA DE MUGABE (UM RELATO MUITO PESSOAL) – IV

 

Peter Fry

(Antropólogo, professor emérito do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ)
10 de setembro de 2018

 

No final de julho de 2018, o eleitorado de Zimbábue participou maciçamente na primeira eleição subsequente ao golpe militar que levou à renúncia do então presidente, Robert Gabriel Mugabe, que governara o país desde a independência em 1980.  O que segue é um relato muitíssimo pessoal sobre esse evento extraordinário no contexto de uma história que, muito parcialmente, vivi, na década de 1960, como jovem antropólogo fazendo a sua primeira pesquisa de campo, e depois como representante da Fundação Ford, entre 1989 e 1993.  Meu ponto de vista é também temperado por uma “fase britânica”, o meu nascimento, criação e formação acadêmica, e uma “fase brasileira”, de 1970 para o presente, mais que metade da minha vida, portanto.

 

 

Capítulo 4 – A memória dos antepassados

 

Quando tudo acalmou, no 29 de julho de 2018, véspera da eleição, houve o mais inimaginável imprevisto. A Corporação de Radiodifusão de Zimbabwe (ZBC) mostrou uma entrevista com Robert Mugabe, a primeira desde sua renúncia. Vestido impecavelmente, como sempre, instalado numa cadeira de escritório de madeira maciça e forrada com couro, o nonagenário balbuciou uma corrente de platitudes. Mas, de repente, proferiu um comentário totalmente inusitado: ele não votaria no partido que ajudou fundar, a ZANU-PF, e sim na oposição. “Não posso votar nas pessoas que me atormentaram. Escolherei entre os demais 22 candidatos. (…) Quem é que sobra?  Acho que é Chamisa.”

Cheguei a pensar que poderia ter dito isso por um de dois motivos antagônicos: 1) que, declarando isso, ele chamuscaria o manto de Nelson Chamisa como seu opositor ferrenho, enfraquecendo a posição eleitoral do MDC-T perante os que concentram sua ira em Mugabe; 2) que, pela declaração pública de voto, ele apenas fazia um gesto de vingança contra o seu antigo confidente Emmerson Mnangagwa, tentando ampliar a votação em Chamisa. Quem sabe, uma possível consequência simplesmente tenha cancelado a outra, tornando irrelevante o pronunciamento!

No Zimbábue, os cidadãos não são obrigados a votar. Nessa eleição, porém, o comparecimento atingiu algo em torno de 80% do eleitorado. De modo geral, a votação ocorreu sem grandes incidentes, segundo os observadores oficiais.

Os problemas mais sérios surgiram antes [veja Capítulo 3] e depois das eleições, com a demora no anúncio dos resultados. De acordo com o chefe da missão da União Europeia, os votos para presidente foram apurados antes dos votos para membros da assembleia. Apesar disso, estranhamente, os segundos foram anunciados antes, no dia 1 de agosto. A ZANU-PF obteve muitos mais assentos no parlamento (122) que a aliança do MDC (53). Na ausência de informação sobre o voto presidencial, Chamisa proclamou, pública e veementemente, a certeza de sua vitória.

No mesmo dia, apoiadores do MDC-T montaram um protesto em frente à sede do partido, em Harare. Entraram em ação a polícia e o exército, lançando bombas de gás lacrimogênio e balas de verdade. Seis pessoas morreram fuziladas. O resultado final da eleição presidencial foi anunciado na noite seguinte: 50,8% para Mnangagwa e 44,3% para Chamisa. Como Mnangagwa obteve mais de metade dos votos, não haveria segundo turno e ele foi declarado presidente eleito de Zimbábue, com a posse marcada para alguns dias depois.

O Forum Zimbabuano de ONGs, que reúne 21 ONGs de Direitos Humanos no país, produziu um relatório que identificou um total de 199 violações ocorridas nos dez dias após a votação.

 

Tabela de violações cometidas no Zimbábue por forças de segurança

 

Um outro relatório sobre as eleições, produzido pela Coalizão Crise em Zimbábue (CiZC), que reúne 87 organizações não governamentais, concluiu que as eleições não chegaram a desmilitarizar o país e que, por isso, o Zimbábue “voltou a uma situação política semelhante ao impasse da eleição de 2008, com uma crise de legitimidade governamental”.

Chamisa e o MDC-T contestaram o resultado e entraram na justiça com uma petição questionando a contagem dos votos. Dessa forma, a Comissão Eleitoral teve que adiar a posse de Mnangagwa até a decisão da Corte Constitucional, cujos juízes ainda seguem a tradição britânica, trajando longos mantos e perucas feitas de pelos de cavalos. Julius Malema, líder do partido Economic Freedom Fighters da África do Sul, tuitou: “Me preocupei muito com esses juízes do Zimbábue com suas perucas louras. O que isso significa? Será que significa que você só pode pensar quando está usando uma peruca loura que simboliza branquitude?”. No tribunal, os advogados de Chamisa argumentaram que o sistema de contagem dos votos estava viciado e que, em algumas urnas, havia mais votos que votantes.

 

Juízes da Corte Constitucional ouvem a petição de Chamisa pela anulação das eleições, em julho de 2018

 

A Corte deu razão a Mnangagwa, que foi empossado oficialmente, com pompa e circunstância, em 26 de agosto, no Estádio Nacional de Esporte em Harare. Chamisa, porém, não se deu por vencido: desprezou a cerimônia e manteve a convicção de que teria vencido a eleição.

O mapa do resultado das eleições revela que a vitória de Mnangagwa se deu basicamente nas zonas rurais, com a inexplicável exceção do vale do rio Zambezi. Chamisa, pelo contrário, ganhou nas cidades de Harare, Bulawayo, Gweru e Mutare. É como se as cidades representassem uma aposta no novo e na juventude, enquanto as zonas rurais, os “grotões”, permanecessem sob o controle da ZANU-PF, sofrendo de um pavor permanente de represálias contra quem vota na oposição.

 

Zimbábue: resultado das eleições presidenciais de 2018

   Fonte: Kubatana.net, 3/8/2018

 

Aponto duas possíveis interpretações, não mutuamente exclusivas, para essa distribuição dos votos. Uma, por falta de termo melhor, de ordem cultural; a outra, de ordem política/militar.

Os fatores culturais são sempre complexos e invocá-los carrega os enormes riscos de simplificação e subjetividade, dado que, com o passar dos anos, os conceitos, valores e cosmologias são muito menos homogêneos que eram durante a minha pesquisa, no século passado. Além disso, aceitar uma intrínseca diferença entre cidades e campo é também problemático: como já assinalei, na época em que fiz minha pesquisa, havia um constante vai-e-vem entre campo e cidade, de tal forma que são poucos sem as experiências de um lugar e do outro. Obviamente, com o passar dos anos, cresceu bastante uma população exclusivamente urbana. Mesmo assim, muitos ainda vêem a sua aldeia rural como o lar mais profundo: a expressão “ndakuenda kumusha” significa tanto “vou para a aldeia” como “vou para casa”. Isso, porém, não me impede de tecer algumas considerações sobre as características da vida rural e da vida urbana. A começar  pela sociabilidade.

A vida social que experimentei durante a minha pesquisa na zona rural era marcada sobretudo pelo parentesco. Os membros das aldeias se relacionavam entre si fundamentalmente de acordo com seus laços de parentesco, cuja lógica, bastante hierárquica e matematicamente elegante, obedecia às regras associadas ao casamento e à afiliação paterna e materna. Ao se casar, um homem se tornava subordinado de seu sogro e sogra, para os quais nem deveria olhar durante os primeiros encontros. Mas o casamento tinha implicações para muito além do casal, pois colocava a linhagem paterna inteira do homem em posição subordinada à linhagem de sua esposa.

  Mulheres cozinhando cerveja, Chiota Tribal Trust Land, 1966

Em todo lugar, a diferença e hierarquia de gênero eram claramente marcadas. As mulheres desempenhavam o ritual de cumprimentos mútuos batendo palmas com a mão direita batendo verticalmente sobre a esquerda de cima para baixo, enquanto os homens colocavam as mão estendidas para a frente, batendo uma contra a outra de lado a lado. As mulheres sentavam-se no chão com as pernas cruzadas; os homens, com as pernas paralelas e estendidas. As mulheres cozinhavam e serviam os pratos, ajoelhadas, aos homens de sua família.

Homens debulhando sorgo, Chiota Tribal Trust Land, 1966

A hierarquia etária era também notável. Nas reuniões familiares ou regionais, os homens mais velhos ficavam sentados em cadeiras ou bancos, enquanto que seus subordinados mais jovens ficavam no chão. Esse respeito ritual para com os mais velhos conduz a um dos mais desgastados clichês sobre a suposta reverência diante dos mais idosos na maioria das culturas africanas. Daí, sugere-se que o pessoal do interior teria mais confiança no velho Mnangagwa que em Chamisa – que, por sua juventude, seria mais bem aceito nas cidades. Plausível? Sim, mas há outros fatores além da idade, relacionados à noção do indivíduo, que poderíamos considerar.

Não afirmo que inexistia individualidade no campo, pelo contrário. Havia, claro, umas pessoas consideradas engraçadas, outras mais sérias, outros ainda bons tocadores ou exímios ladrões. Mas não havia o que o antropólogo Louis Dumont denominou  “ideologia do individualismo”, que ele encontrava na Europa contemporânea – isto é, a presença do valor atribuído ao individuo como ator autônomo e responsável por suas ações e escolhas.

Casa onde morou Peter Fry, com teto de zinco, Chiota Tribal Trust Land, 1966

A cosmologia que estudei tantos anos atrás tendia a interpretar as aflições e sucessos na vida à ação de forças externas ao indivíduo: a proteção ou ausência de proteção dos antepassados; a ação invejosa ou gananciosa de supostos feiticeiros e bruxos; às vezes, a inspiração de uma pletora de espíritos (mashave) associados a determinados talentos e idiossincrasias. Poderia se pensar, por exemplo, que um bom ladrão fosse inspirado por um espírito de babuíno. E era quase impossível alguém ficar sozinho por um período significativo, como que para prevenir a individualidade como ideia e, sobretudo, prática. Quem fizesse isso correria o risco de pensar mal de si e dos outros. Como eu gosto muito de ficar sozinho de vez em quando, tinha que sair da área totalmente ou, se quisesse ficar em casa, fingir doença.

Homens tomando cerveja, Chiota Tribal Trust Land, 1966

Pelo lado contrário, não se pode dizer que o parentesco carecesse de importância nas cidades. Quando as pessoas viajavam, o encontro com estranhos provocava, geralmente, uma troca dos nomes de afiliação clânica e linhageira, o mutupo e o chidao.  Por essa via, dois estranhos saberiam, por exemplo, se estavam numa relação hierárquica sogro/genro (tezvara/mukwasha), numa relação de familiaridade combinada com hierarquia de tio materno/sobrinho (sekuru/muzukuru) ou, por exemplo, de dois irmãos (mukoma/mununguna).

Eu chamava isso de “jogo shona de parentesco” pois havia incontáveis maneiras de calcular tais relacionamentos e era mais que possível adotar alguma razão de parentesco para legitimar o tipo de relação que ia surgir. Embora a rede de parentesco certamente se estendesse para as cidades, e embora os residentes urbanos continuassem ativos participantes da vida de suas famílias nas comunidades rurais, havia maior possibilidade de anonimidade e privacidade no espaço urbano.

Isto tinha sido amplamente demonstrado, mesmo nos anos 1960, pelos antropólogos ligados à Escola de Manchester, liderados pelo sul-africano Max Gluckman. Foi nesse contexto que desenvolveram a noção de “rede social” para descrever a sociabilidade no contexto urbano. As redes continham parentes, sem dúvida, mas incluíam vizinhos, amigos, companheiros de esportes, patrões, co-traballhadores, etc… Clyde Mitchell, meu orientador em Salisbury, foi um dos autores que mais impulsionou este conceito.

Quando retornei ao Zimbábue, na década de 1990, percebi que havia ainda mais gente vivendo permanentemente nas cidades – e que essas pessoas mantinham relações mais tênues com seus familiares no campo. Mas, mesmo assim, voltavam de vez em quando para as zonas rurais, sobretudo quando era necessário executar um ritual (bira) em prol dos antepassados. Isso me leva a mais uma dimensão muito importante da vida social tanto nas cidades como no campo: religião e cosmologia.

Os pioneiros da Companhia da África do Sul (BSAP) efetivamente dominaram a região que chamaram Rodésia em homenagem ao seu chefe, Cecil John Rhodes, em uma guerra com fortes feições religiosas. Afinal, a liderança na insurreição dos shona foi composta pelos médiuns dos divinos antepassados protetores, Kaguvi e Nehanda, e a dos ndebele coube ao oráculo Mlimo [veja Capítulo 1]. Da guerra colonial, emergiram fortalecidos não apenas os militares e fazendeiros brancos, mas também os missionários cristãos.

O caminho ficou aberto, então, para a maciça cristianização da Rodésia, o que não deixa de ser mais uma ironia dado o fato de Rhodes, filho de pastor anglicano, ter morrido ateu. Na placa de bronze sobre seu túmulo, numa rocha de granito no lugar que ele chamou de World’s View, não há nenhum símbolo cristão, apenas as palavras  “Here Lie the Remains of Cecil John Rhodes” (“Aqui jazem os restos mortais de Cecil John Rhodes”).

 

Túmulo de Rhodes, nas colinas de Matobo, sul do Zimbábue

 

A segunda guerra chimurenga, a guerra de independência, também foi travada com o apoio dos antepassados falando através dos médiuns. Seria um devaneio antropológico colonial, forjado numa confortável poltrona em Copacabana, indagar se a memória da guerra de independência, invocada com bastante insistência no Manifesto da ZANU-PF, não remeteria, ela também, à memória dos antepassados e à religião tradicional? E será que essa memória não pode ter tido maior ressonância nas zonas rurais que nas cidades, esses locus da modernidade ocidental? É uma hipótese possível, mas que não pode ser verificada à distância, não menos porque tenho poucos dados sobre a relevância da religião na campanha eleitoral.

Embora Deus seja presença constante no Manifesto da ZANU-PF e esteja ausente no documento do MDC-T [veja Capítulo 3], não acredito que tenham sido ignorados os fatos de Chamisa ser pastor e ter sido treinado no mais importante colégio da maior congregação pentecostal do Zimbábue. Tanto é que muitos dos comentários que li no Facebook, escritos por seguidores do candidato do MDC-T, contêm o hashtag twitter #Godinit.

Seguindo o raciocínio de Max Weber sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo na Europa, parece razoável argumentar que o alastrar vertiginoso das igrejas pentecostais e neopentecostais, sobretudo nos países mais pobres e nas regiões mais prejudicadas socialmente nas metrópoles da Europa e do Brasil, constitui uma espécie de reforma protestante tardia. O processo tem tudo a ver com a feroz crítica que os pastores fazem às interpretações mágicas e interpessoais das aflições e sofrimentos em geral e com a pregação de uma cosmologia da autoconfiança e autossuficiência individuais, traços característicos do capitalismo moderno e da democracia eleitoral.

Meus colegas antropólogos mais jovens têm horror a dicotomias e estruturas. Mesmo assim, me pergunto se os distintos padrões de votação nas cidades e nas zonas comunais de Zimbábue têm a ver com diferenças de etos entre esses dois espaços sociais. Sei perfeitamente que encontramos deveres e direitos de parentesco na cidade e no campo, que encontramos os antepassados e Jesus Cristo nesses dois espaços e, muitas vezes, num mesmo indivíduo. Sei, ainda, que vamos encontrar empreendedores em todos os cantos do país. Mesmo assim, cada lugar tem seu etos predominante e penso que cada um deles acabou se cristalizando em volta de um e outro candidato.

Contudo, no país inteiro, a diferença foi muito pequena. Minha hipótese sobre a distribuição dos votos entre a ZANU-PF e o MDC-T é, então, que o sucesso de Chamisa e seu MDC-T nas áreas urbanas do Zimbábue relaciona-se ao maior grau de autonomia individual na vida social das cidades, onde as regras, direitos e deveres do parentesco, embora ainda muito fortes, cedem lugar aos poucos a um individualismo condizente com a vida urbana.

O etos e os fatores denominados culturais importam, sem dúvida, mas talvez não sejam decisivos para entender a vitória de Chamisa nas cidades e sua derrota nas zonas rurais. Tenho a impressão de que, mesmo que essa possível diferença no grau de prevalência de uma ideologia do individualismo na cidade possa ter implicações para a compreensão do voto democrático e pela apreciação de um candidato ou outro, prevalecem fatores mais tangíveis, especialmente o grau e tipo de inserção das organizações políticas na vida social, incluindo aí a ameaça e/ou o uso efetivo da força.

Consideremos, primeiro, a distribuição espacial dos dois partidos e suas possibilidades de persuasão e coerção. Não há dúvida de que a ZANU-PF tem uma capilaridade nas zonas rurais bem maior que a do MDC-T. É  o partido que reivindica ter trazido a independência, é muito mais antigo e permeia todas as instâncias do Estado e da burocracia regional, inclusive os serviços de saúde e educação e a extensão agrícola. Esta última é de suma importância, pois a distribuição anual de insumos para a agricultura familiar é, por muitos, atribuída à generosidade da ZANU-PF.

Capina do milho, Chiota Tribal Trust Land, 1966

Como mostrei nos capítulos anteriores, a violência é constitutiva da cultura política de Zimbábue desde a chegada da Coluna Pioneira, e não se arrefeceu com a independência. Houve represálias, muitas vezes mortíferas, contra reais ou supostos opositores do partido no poder, especialmente nas zonas rurais onde todo mundo conhece todo mundo e a privacidade é quase nula. Como a polícia, também associada ao partido no poder, tendia a assistir aos crimes de longe, fazendo ouvidos moucos, havia grande possibilidade de que os responsáveis por eles nem sequer fossem processados. Isso significa que, desde 2000, apoiar e votar no MDC-T requeria bastante coragem.

Nas zonas urbanas, a violência contra integrantes (reais ou imaginários) do MDC-T também é comum, mas menor que nas zonas rurais. Nas cidades, espaços de um maior anonimato, são mais amplas as possibilidades de articulação política contra o partido no poder. Além disso, esse grau de anonimato maior na cidade reduz a eficácia do controle social do Estado, propiciando uma efetiva oposição à situação, sem tanto medo de represálias violentas. Embora não tivessem sido reveladas grandes incidências de intimidação nas zonas rurais antes das eleições de 2018, os 27 casos contabilizados pelo Foro Zimbabuano de ONGs foram responsabilidade de lideranças tradicionais e membros da ZANU-PF.

Chamisa não foi à posse do presidente Mnangagwa. “Eles sabem que não podem me convidar para um casamento quando sou eu quem deveria estar recebendo os presentes”, disse. Mngagagwa, por sua vez, fez o possível para tentar apaziguar os ânimos. Afirmou que instituiria uma Comissão de Inquérito sobre as matanças de 1º de agosto e pediu unidade e perseverança para um futuro melhor.

A eleição tornou visível e exacerbou uma forte divisão política na sociedade, tão familiar para nós aqui no Brasil. Meus amigos do Zimbábue, na sua maioria, ficaram tristes com o resultado da eleição. Acham que a democracia se fortalece sempre com a alternância no poder, sobretudo nesse caso, dada a necessidade de quebrar a terrível perseguição política sistemática das longas eras de Smith e Mugabe.

Mas Judith Todd, amiga desde a década de 1960, escritora e ativista em prol dos direitos humanos no Zimbábue, que muito sofreu nas mãos tanto de Smith como de Mugabe, enviou-me uma cópia da carta que escreveu para Peta Thornycroft no dia da posse de Mnangagwa. Thornycroft, que nasceu e se criou na antiga Rodésia do Sul, é uma das mais experientes jornalistas zimbabuanas. Sofreu prisão e continuado assédio pela sua defesa da liberdade da imprensa no Zimbábue, onde mora até hoje. Sendo otimista, essa carta encerra o quarto e último capítulo desse ensaio sobre o significado das eleições de 2018 no país que se livrou de Mugabe.

 

Uma carta de Judith Todd

Judith Todd, filha mais velha de Reginald Garfield Todd, primeiro-ministro da colônia britânica da Rodésia do Sul entre 1953 e 1958, nasceu em 1943, na Missão Dadaya, onde seu pai era missionário. Judith foi ativista da União do Povo Africano do Zimbábue (ZAPU), na qual militaram, na época, tanto Robert Mugabe quanto Joshua Nkomo. Seu ativismo contra o regime de minoria branca de Ian Smith custou-lhe a prisão, por duas vezes, em 1964 e 1972, nas quais sofreu maus-tratos, e a deportação.

Judith voltou ao Zimbábue com a independência, em 1980, à frente de uma organização de ajuda humanitária dedicada à reinserção social de antigos combatentes da guerra de independência. Em 1984, como punição por suas críticas ao massacre de civis Ndebele conduzido pelas forças de Mugabe, foi estuprada por um alto oficial militar. Em 1999, ela fundou o jornal Daily News, publicado em Harare. Quatro anos depois, o jornal foi banido e Judith, privada da cidadania zimbabuana. Ela, porém, continuou a viver no seu país.

Judith Todd, no seu aniversário de 70 anos. Foto cedida gentilmente pelo Southern Africa Liaison Office (SALO), www.salo.org.za

26 de agosto de 2018

Cara Peta

Acredito que aquelas pessoas que não celebram a nova posse de Mnangagwa estão se negando, e negando ao Zimbábue, um bocado de prazer, felicidade, positividade e desenvolvimento crucial.

Vendo a posse de Mnangagwa como presidente, hoje, lembrei-me de eventos da minha própria vida neste país, nosso país.

  1. O governo de Ian Smith significou para mim: a humilhação da minha família; sendo presa sem julgamento; sendo alimentada à força na cadeia – que, devo te dizer, é a pior forma de estupro possível, já que envolve tantas pessoas, tanto tempo; e, eventualmente, anos de exílio doloroso.
  2. Sob Mugabe, experimentei prisão ilegal, estupro e a privação da minha cidadania.
  3. Sob Mnangagwa, estou sentindo esperança, bastante esperança, e até agora está tudo bem naquilo que vejo e sinto em termos da possibilidade, para todos nós, de viver e falar como seres humanos positivos – E … 

Desde novembro do ano passado, posso  acordar, a cada dia, feliz de saber que os Mugabes se foram.  

Isso eu sinto como um peso físico tirado do meu coração. 

Encontrando recentemente alguns veteranos da guerra de independência, num funeral, eles disseram-me que o bom de agora é que não importa mais quem era de ZAPU ou ZANU no passado. Eles estavam todos juntos e misturados, amigos de novo, após os terríveis anos de separação.  

Estes são apenas alguns pensamentos ao ir para o meu quarto para dormir cedo numa noite silenciosa. Telefone celular desligado, idem computador.  

Rezando por todo apoio possível para o novo governo no Zimbábue.

Judith

 

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