À SOMBRA DE MUGABE (UM RELATO MUITO PESSOAL) – III

 

Peter Fry

(Antropólogo, professor emérito do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ)
3 de setembro de 2018

 

No final de julho de 2018, o eleitorado de Zimbábue participou maciçamente na primeira eleição subsequente ao golpe militar que levou à renúncia do então presidente, Robert Gabriel Mugabe, que governara o país desde a independência em 1980.  O que segue é um relato muitíssimo pessoal sobre esse evento extraordinário no contexto de uma história que, muito parcialmente, vivi, na década de 1960, como jovem antropólogo fazendo a sua primeira pesquisa de campo, e depois como representante da Fundação Ford, entre 1989 e 1993. Meu ponto de vista é também temperado por uma “fase britânica”, o meu nascimento, criação e formação acadêmica, e uma “fase brasileira”, de 1970 para o presente, mais que metade da minha vida, portanto.

 

 

 

 

Capítulo 3 – O espectador distante

 

 

Peter Fry toca mbira no programa “Fronteiras do Conhecimento”, da BBC, em Londres, em 1969

 

Desde a minha volta ao Brasil, em março de 1993, acompanho os eventos em Zimbábue por meio da imprensa, mensagens de amigos no país, artigos acadêmicos e uma bibliografia cada vez maior. Esse longo período é de uma descida para a ruína econômica, sob os auspícios de uma ditadura cada vez mais violenta.

Se os sinais de um crescente autoritarismo de Robert Mugabe e a sua raiva contra os brancos e os opositores negros eram visíveis antes de minha partida de Zimbábue, aumentaram exponencialmente depois. A fúria contra a homossexualidade, supostamente trazida pelos ingleses, chegou a tal ponto que, em 1995, na Feira Internacional de Livros em Harare, ele questionou porque seres humanos poderiam ter relações homossexuais, se cachorros e porcos não o faziam? “O que estamos sendo incentivados a aceitar é comportamento inferior ao dos animais, e não deixaremos que isso aconteça aqui. Se vocês virem pessoas desfilando como lésbicas ou gays, detenham-nos e chamem a polícia”.

Não havia nada de original na posição de Mugabe: ele simplesmente reiterava um lugar comum que grassa, inconteste, em diversos países africanos. A triste ironia, porém, é que a lei que criminaliza a sodomia e a homossexualidade tem origem no Reino Unido. Foi incorporada ao corpus juris da colônia de Rodésia do Sul e continua presente, até hoje, nas leis do Zimbábue. O caso mais notório, naquele país, foi o do primeiro presidente cerimonial depois da independência, o pastor metodista Canaan Banana, processado em 1998 e encarcerado em 2000 por ter mantido relações sexuais com 11 membros de sua própria equipe.

Os ataques, não puramente retóricos, contra os brancos e todos a eles associados passaram a ser disparados contra a nascente oposição política e, ainda, contra os fazendeiros e seus trabalhadores. Em 1997, com a eleição de um novo presidente, o médico formado na Polônia, Dr Chenjerai Hitler (sic) Hunzvi, a Associação Nacional dos Veteranos da Guerra de Libertação do Zimbábue (ZNLWVA) tornou-se cada vez mais radical [veja Capítulo 2]. Em 2000, Hitler Hunzvi organizou os seus membros e familiares numa marcha para certas fazendas de brancos, dançando, batendo tambores e cantando. Foi o início de um movimento denominado Programa de Reforma Agrária em Alta Velocidade (Fast-Track Land Reform Program).

Numa mistura de determinações governamentais e iniciativas por parte de camponeses, com ou sem o apoio da ZNLWVA, a vasta maioria das fazendas foram aos poucos desapropriadas compulsoriamente. No caso das desapropriações, invasões ou ocupações (dependendo do ponto de vista, evidentemente) coordenadas pela ZNLWVA, a ameaça do uso ou o uso de violência frequentemente letal contra os proprietários brancos e seus trabalhadores era corriqueira. Tais ações ganharam um termo próprio, jambanja, que significa “caos violento”. Entre 2000 e 2014, 28 fazendeiros brancos e 78 gerentes negros foram assassinados. O governo, a polícia e a justiça fizeram ouvidos moucos. Mais que isso: Mugabe deu seu apoio explícito ao processo.

Em certas áreas do país, a distribuição da terra foi positiva para pequenos agricultores, como aqueles com quem vivi nos anos 1960, aumentando consideravelmente a produção de cultivos para consumo familiar, sobretudo milho. Entretanto, foi calamitoso o efeito sobre a economia como um todo, que dependia da produção das grandes fazendas. Além de serem responsáveis por alimentos in natura, as grandes fazendas produziam divisas com as exportações de tabaco e insumos para as indústrias locais de alimentos em conserva e tecelagem.

Era inevitável que a produção agrícola despencasse, não porque brancos foram substituídos por negros, mas porque fazendeiros bem sucedidos foram substituídos por cidadãos que, na sua grande maioria, não tinham qualquer experiência no manejo de grandes fazendas altamente mecanizadas. Mesmo na época colonial, não bastava ser branco para ser um fazendeiro de sucesso. Lembrei-me do primeiro, e talvez melhor, romance de Doris Lessing, The Grass is Singing, no qual a anti-heroína, Mary Watson, morta pelo seu servente negro, e seu marido Dick são fazendeiros totalmente fracassados e decadentes.

Zimbábue deixou, então, de ser a bread basket (cesta de pão) da África, tornando-se dependente até da caridade alheia. Em 2008, a taxa de desemprego chegou a 80% e a inflação atingiu, no pico, inacreditáveis 79,600,000,000% (isso mesmo: 79 bilhões e seiscentos milhões por cento, o que significa 98% ao dia). Em novembro daquele ano, um dólar americano equivalia a Z$ 2.621.984.228 (ou seja, mais de dois bilhões de dólares zimbabuanos). Nos anos seguintes, o Zimbábue simplesmente abandonou sua moeda própria, adotando o dólar americano. Em resumo, o país desceu para um regime ditatorial com a mais extrema pobreza para todos, com exceção da elite política liderada pelo presidente Mugabe e sua mulher Grace, que se esbaldavam numa farra de consumo conspícuo antes inimaginável.

Cédula de cem trilhões de dólares zimbabuanos emitida em 2008 pelo Banco Central do Zimbábue

Apesar de tudo, Mugabe ganhou muitos admiradores pela sua “política fundiária”. Dentro do país, os veteranos de guerra conseguiram vantagens evidentes e fora, sobretudo na África do Sul, as perdas econômicas pareciam um preço necessário para os ganhos de igualdade na distribuição da terra. Julius Malema, um dissidente do governista Congresso Nacional Africano, líder do partido radical Economic Freedom Fighters da África do Sul, advoga políticas semelhantes no seu país.

Mas que preço! Não tenho dúvida de que Mugabe e seus seguidores sabiam que era necessário matar a galinha dos ovos dourados para garantir sua perpetuação no poder. Os exercícios históricos contrafactuais são sempre arriscados, mas penso que, se Mugabe tivesse qualidades de estadista, como Nelson Mandela ou Samora Machel, saberia conciliar as justas demandas por equidade com a manutenção de grande parte da atividade agrícola comercial.

Apesar da ruína econômica, a elite continuava a esbanjar opulência. Talvez a maior diferença entre o Zimbábue de Mugabe e a velha Rodésia do Sul estivesse na ostentação do novo partido no poder e seu líder autocrático. Pelo que me lembro, na época da minha primeira estadia no país, a Frente Rodesiana de Ian Smith tinha como sede uma pequena casa de um andar no centro da cidade. Já a ZANU-PF ocupava um imenso prédio em estilo pós-moderno com o desenho do seu símbolo, um galo, no frontão. O presidente da República residia na Casa do Estado, onde antes moraram os governadores britânicos, agora protegida por arame farpado e soldados armados. Quem passava de carro tinha que andar muito devagar. Quando saía de casa, Mugabe era acompanhado por um comboio enorme que incluía viaturas do exército cheios de soldados armados, sempre com uma ambulância por último. Pedestres e motoristas esquivavam-se, apavorados.

Sede da Zanu-PF, em Harare

O cenário tornou-se ainda mais tenso, e violento, com a formação, em 2000, de um novo partido denominado Movimento para a Mudança Democrática (Movement for Democratic Change, MDC), liderado por Morgan Tsvangirai, presidente do Congresso de Sindicatos do Zimbábue (Zimbabwe Congress of Trade Unions, ZCTU). Nos primeiros anos depois da independência, o  ZCTU foi inteiramente controlado pela ZANU. Mas, ao longo da década de 1990, tornou-se cada vez mais crítico do governo, devido à corrupção e à adoção de uma série de políticas econômicas ortodoxas, o Programa de Ajuste Econômico Estrutural (ESAP). Foi o ZCTU, agora sob a liderança de seu secretário-geral Tsvangirai, que constituiu o núcleo do MDC.

O MDC atraiu a ira de Mugabe e seus seguidores quando conseguiu, inesperadamente, derrotar o governo num referendum constitucional destinado a aumentar os poderes presidenciais. Torturaram e estupraram sem vacilo.

As evidências coletadas pelas organizações de direitos humanos de Zimbábue comprovam indiscutivelmente a violência endêmica, mesmo se provavelmente nunca saberemos quantas pessoas foram vítimas desses ataques. Numa obra inédita, apropriadamente intitulada Damage: The Personal Costs of Political Change in Zimbabwe, Irene Staunton compilou 30 longos depoimentos de vítimas de todas as cores, idades e profissões. Em 2000, pelo menos 35 simpatizantes do MDC foram mortos por milicianos da ZANU-PF, principalmente nas zonas rurais. Os milicianos sequestraram e torturam suas vítimas, estuprando as mulheres, em centros construídos especificamente para essa finalidade. Chegaram a ordenar que hospitais e clínicas recusassem tratamento para membros do MDC feridos nos ataques.

Nesse panorama de conluio entre os milicianos, o partido no poder, a polícia, alguns magistrados e até certos agentes de saúde, a perseverança do MDC e do seu líder foi extraordinária. Em 2004, Tsvangirai foi acusado de traição e, em 2005, preso de novo ao tentar participar de uma reunião religiosa declarada ilegal pelas autoridades, quando foi gravemente torturado pela polícia.  Obteve a liberdade graças a um juiz que, contra todas as expectativas, manteve-se fiel ao seu ofício, anulando os processos.

Morgan Tsvangirai em 2005, depois de ser espancado pela polícia de Mugabe

Naquele mesmo ano, o partido oposicionista cindiu-se em dois: o MDC-T, sob a liderança de Morgan Tsvangirai, e o MDC-M, sob a liderança de Arthur Mutambara. O MDC–T continuou maior e liderou a aliança com o MDC–M para as eleições de 2018.

No primeiro turno da eleição presidencial de 2008, de acordo com a Comissão Eleitoral, Tsvangirai obteve 47,9% dos votos e Mugabe, apenas 43,2%. O MDC-T reivindicou a vitória de seu candidato, mas concordou em participar num segundo turno. Sucederam-se diversos atos de intimidação violenta contra membros do MDC-T até que o então presidente da África do Sul, Kgalema Motlanthe, arbitrou um acordo entre Mugabe e Tsvangirai para a formação de um governo de unidade nacional. Na prática, porém, perdurou o poder soberano de Mugabe que se recusou sistematicamente a ouvir as reivindicações do MDC-T.

Na eleição de 2013, caracterizada também por violência constante conta o MDC, Mugabe ganhou e o governo de unidade nacional cessou. Mas, ao longo desse período, as eleições, sempre sem observadores internacionais, eram contestadas pelo MDC-T, que denunciava a manipulação dos votos e a continuada intimidação violenta pela ZANU-PF.

Nos anos seguintes, a tomada das fazendas continuou, mas em 2016, já com 92 anos, Mugabe parecia ter perdido algum poder dentro do seu governo para sua esposa Grace, chamada pelos seus muitos detratores, dentro e fora da ZANU-PF, de “Gucci Grace”, pela sua extraordinária predileção por artigos de luxo. Ela teria estabelecido uma facção dentro do partido oficial, o Geração dos 40 (G40), que se exibia como uma “jovem guarda”, na faixa dos 40 anos de idade, pronta a substituir a “velha guarda” dirigente.

O G40 estaria agindo para evitar que um dos vice-presidentes, Emmerson Mnangagwa, permanecesse como herdeiro político de Mugabe, substituindo-o pela própria Grace. Mnangagwa, conhecido como Crocodilo em referencia ao grupo guerrilheiro que ele liderou durante a guerra de independência e pela sua sinistra argúcia política, tinha fama de ter sido o mais próximo tenente de Mugabe e responsável pelo planejamento do massacre gokuruhundi, em Matabeleland [veja Capítulo 2].

Pelo jeito, Grace e o os membros do G40 foram parcialmente bem-sucedidos, pois, em 6 de novembro de 2017, Mugabe acusou Mnangagwa de ter atentado contra o governo, condenou sua “deslealdade, desrespeito e falsidade” e o demitiu. Em seguida, o ex-vice-presidente fugiu para África do Sul alegando ameaças contra ele e sua família.

 

Robert e Grace Mugabe em 2016

A desgraça de Mnangagwa duraria pouco. No dia 17 de novembro, para surpresa de todos, Harare acordou com tanques nas ruas. Mugabe foi confinado à sua extraordinária mansão em estilo luxo-eclético-brega com telhado azul da Malásia, seus 25 quartos, um apartamento para cada um dos três filhos, um heliporto, piscinas e, evidentemente, uma casa ao lado para os empregados. A Corporação de Radiodifusão de Zimbabwe (ZBC), TV estatal, foi tomada e as casas ministeriais, cercadas.

Harare explodiu em alegria, as ruas tomadas por milhares de pessoas em cenas de intensa confraternização entre a população e os militares, seus algozes até então, o que lembrou um pouco a Lisboa da Revolução dos Cravos, do 25 de abril de 1974. Não houve resistência por parte de Mugabe e seus antigos aliados. Pelo contrário: o partido ZANU-PF logo demitiu Mugabe como líder, nomeando o exilado Mnangagwa para o seu lugar. Ao mesmo tempo, Grace e mais 20 membros do G40 foram expulsos do partido.

A ZANU-PF determinou que Mugabe sofresse impeachment, se não pedisse a renúncia. O ditador, já com 93 anos, resistiu enquanto foi possível. Mas renunciou em 20 de novembro, após o chefe do exército, Constantino Chiwenga, ter chamado Mnangagwa de volta da África do Sul e com a ZANU-PF iniciando o processo de impeachment no parlamento. Os membros do G40 evaporaram, enquanto Mugabe e sua mulher continuaram a viver na sua mansão.

Dentro e fora do Zimbábue, os observadores regozijaram-se com a derrocada dos Mugabes – mas com um grande senão: a mudança poderia ser efêmera, dado que Mnangagwa passara toda a sua carreira militar e política ao lado do ditador, e que a deposição não derivara de uma insurreição popular, mas de um coup d’état militar. Os generais, certamente, continuariam a comandar.

Mesmo assim, todos nós concordávamos que a deposição de Mugabe assinalava a possibilidade de uma nova e promissora fase na historia de Zimbábue. O comentário que mais se escutava era “things will never be the same”. E esse otimismo se justificou em grande parte porque Mnangagwa chegou ao poder se pronunciando sobre a importância da democracia e anunciando uma nova eleição, para o parlamento e a presidência, em 2018 – e com a inédita presença de observadores internacionais.

A data da eleição acabou sendo marcada para 30 de julho, com 23 candidatos registrados para a presidência. Mugabe não se candidatou. Mnangagwa, 75 anos, candidatou-se pelo partido ZANU-PF, enquanto Nelson Chamisa, 40, candidatou-se pelo MDC-T em aliança com o MDC-M.

Chamisa tem dois bacharelados pela Universidade de Zimbábue, um em Administração e Ciência Política, outro em Direito. Atualmente, é advogado praticante e, também, pastor, tendo se formado em teologia no Seminário Teológico Living Waters, da igreja pentecostal Missão Apostólica da Fé, fundada em 1915, a primeira e, talvez, a maior igreja pentecostal em Zimbábue. Assumiu a liderança do MDC-T com a morte por câncer de Tsvangirai, apenas três meses após a renúncia de Mugabe.

Cada partido publicou seu Manifesto. Quando um amigo perguntou como esses partidos se posicionavam entre direita e esquerda, respondi que achava a pergunta improcedente, porque os assuntos eram outros; tinham mais a ver, sugeri, com a corrupção, boa governança e justiça social em geral, sob um pensamento vagamente social-democrata. Mas perscrutei os dois manifestos, no afã de detectar as linhas mestras de cada partido. Ambos contêm pequenas biografias dos candidatos, realizações no passado e promessas que todos os políticos fazem em todas as eleições, mundo afora.  Ambos reivindicam que representam mudança, fazem os salamaleques de praxe ao panafricanismo, pregam o empoderamento das mulheres, medidas anticorrupção e a defesa da democracia. Também elogiam a livre iniciativa, mas reconhecem a importância do papel do Estado.

Capa do Manifesto da ZANU-PF

Se não existem grandes diferenças de políticas projetadas para o futuro, há contrastes significativos de estilo e sobre a maneira pela qual cada partido trata a história. A que primeiro chama a atenção é a enorme desigualdade de recursos, visível na própria fabricação dos documentos. Enquanto o Manifesto do MDC-T, de apenas 22 páginas, é espartano, sóbrio, sem fotografias e impresso em preto e branco como se fosse um paper acadêmico, o Manifesto do partido do governo, de 76 páginas, contém dezenas de fotografias coloridas de políticos sorrindo, camponeses e trabalhadores felizes, obras de infraestrutura, etc.

       Capa do Manifesto do MDC-T

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na capa do Manifesto do MDC-T aparece apenas o título, seguido por “#Servant Leadership and Service”. Na capa do manifesto da ZANU-PF, há o slogan “The voice of the people is the voice of God”, seguido pelo lema “Unidos, lutar contra a corrupção, desenvolver, engajar de novo, criar emprego”. Vira-se a página e aparece uma fotografia imensa do candidato a presidente sorrindo, com as Victoria Falls ao fundo, e mais um slogan escrito abaixo de uma imagem do Grande Zimbábwe, o monumento arqueológico que dá nome ao país: “Unidade, Paz e Desenvolvimento”.

No que diz respeito à história, a ZANU-PF enaltece a sua atuação e a do próprio Mnangagwa na luta pela independência e se regozija com o seu papel “definitivo” no programa de reforma agrária, desenvolvendo “políticas consistentes de indigenização e empoderamento econômico”. E conclui: “Como resultado, 91% da terra foi devolvida aos nativos”.

 

Robert Mugabe, à esquerda, e Emmerson Mnangagwa, à direita, nos tempos da guerra de independência do Zimbábue

Por seu lado, o MDC-T enfatiza o vigor da sua oposição à “ditadura” da ZANU-PF: “o pequeno espaço democrático que temos deve-se sobretudo aos esforços do MDC-T apoiado por outras forças progressistas.  Pouco a pouco a ditadura tem cedido espaço sob o impacto da mudança democrática.  As mudanças cosméticas no governo que tomou poder em 2017 por conta de um coup d’état ‘mole’ não resultaram no Zimbábue que o povo quer.”

Mas, sobretudo, chamou-me a atenção a autocrítica da ZANU-PF, meio escondida na prosa sobre a desigualdade racial, distanciando-se dos piores excessos da redistribuição das terras ao prometer “corrigir as anomalias experimentadas ao longo do Programa de Reforma Agrária em Alta Velocidade para promover uma distribuição equânime da terra entre todos os zimbabuanos através das seguintes medidas: racionalizando os tamanhos das fazendas e eliminando propriedades múltiplas”. Mais: o documento chega ao ponto de estender a mão aos brancos desapropriados: “tendo implementado com êxito o Programa de Reforma Agrária, que é constitucional e irreversível, o governo da ZANU-PF consolidará a propriedade da terra e a segurança de posse (…), compensando fazendeiros brancos seguindo as provisões da nossa Constituição Nacional”.

É de se supor que essa proposta foi incluída para atrair o apoio dos fazendeiros brancos e seus aliados. Embora frise a constitucionalidade e irreversibilidade do programa de reforma agrária, seria interessante saber a reação da Associação dos Veteranos de Guerra a essa aparente reviravolta. Já o Manifesto do MDC-T não faz referência aos brancos, o que pode ser significativo pois uma das acusações perenes da ZANU-PF contra o MDC-T é o apoio público que recebe de alguns zimbabuanos brancos.

Há zimbabuanos brancos ativos no MDC desde o  início. O mais conhecido talvez seja o fazendeiro Roy Bennet, que foi tesoureiro do partido e teve uma carreira política cinematográfica. Preso diversas vezes, atacado junto com a sua mulher grávida durante a campanha eleitoral de 2000, o que provocou a perda do neném, envolveu-se em brigas no próprio parlamento e viu Mugabe ser defenestrado poucos meses antes de morrer na África do Sul, em janeiro de 2018. Mas Mugabe também teve o apoio de alguns poucos brancos. Na eleição de 2018, quatro candidatos brancos concorreram pelo MDC-T e dois pela ZANU-PF.

Uma diferença final entre os dois manifestos é a presença (ou não) de Deus. No manifesto do partido liderado por um pastor pentecostal, não aparecem nem Deus nem seu filho. No documento do partido governista, porém, como vimos, o slogan “The voice of the people is the voice of God” aparece não apenas na capa, mas no cabeçalho de todas as páginas do documento. Tratarei desse aparente paradoxo, no Capítulo 4, dedicado aos resultados da eleição.

À distância, é difícil aquilatar a ressonância de um e outro partido durante a campanha. Os poucos vídeos que pude ver no YouTube mostram comícios nas zonas urbanas. Sem saber exatamente as condições de produção desses vídeos, é arriscado chegar a conclusões certeiras sobre a performance dos dois partidos. Mesmo assim, parece que os maiores e mais entusiasmados comícios eram de Chamisa, cheios de seguidores que pareciam ter chegado espontânea e alegremente.

Em contraste, parecia que a ZANU-PF tinha recorrido aos recursos costumeiros dos políticos mais inescrupulosos: ônibus, comida e outros atrativos para encher os estádios. Num dos vídeos de um comício do partido governista, vê-se gente enfileirada para ganhar camisetas e outras pessoas saindo do estádio enquanto Mnangagwa continuava a discursar. Não há como avaliar detalhes das campanhas nas zonas rurais, distantes da mídia.

 

Nelson Chamisa, num comício de campanha, em Mahusekwa, na antiga Chiota Tribal Trust Land

Pelo que pude perceber, a partir da imprensa zimbabuana e dos comentários dos observadores oficiais, as campanhas transcorreram com menos casos de intimidação que nas eleições anteriores. A ZANU-PF manteve-se silenciosa sobre essas questões, enquanto Chamisa e o MDC-T criticaram menos a eleição em si e mais a Comissão das Eleições de Zimbábue (ZEC), questionando sobretudo a integridade das listas de eleitores e a pouca transparência no processo de produção das cédulas de votação. Criticaram também, e com razão, a atuação do monopólio governamental de televisão e rádio no país, a ZBC, declaradamente favorável à ZANU-PF. Fica patente, ainda, que o partido de Mnangagwa teve muito mais recursos, oriundos de uma estrutura partidária muito maior e quase sempre ligada às estruturas do Estado, e acesso aos mais ermos rincões do país.

Havia, apesar de tudo, a esperança generalizada de que as eleições fossem muito mais livres e justas que todas as outras. Pesava, nisso, a inédita presença de observadores do mundo inteiro, da regional Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) até a União Europeia, passando pela Comunidade Britânica de Nações e uma missão conjunta de duas importantes instituições norte-americanas, o Instituto Nacional Democrático (NDI) e o Instituto Nacional Republicano (IRI).

Quando terminou a votação, os dois candidatos principais, Mnangagwa e Chamisa, reivindicaram vitória!

 

 

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