DITADURA DE MUGABE SOBREVIVE NA VIOLÊNCIA MILITAR

 

Elaine Senise Barbosa

4 de fevereiro de 2019

 

“Nossa política permanecerá tóxica enquanto os militares estiverem no centro dela. Qualquer diálogo sobre o futuro deve envolver planos concretos para desmilitarizar a política do Zimbábue. Só então a promessa de um novo Zimbábue pode florescer verdadeiramente”. (Fadzayi Mahere: https://www.thezimbabwean.co/2019/01/zimbabwe-dared-to-hope-then-the-military-arrived/)

 

No último dia 30 de janeiro, um grupo de mulheres ativistas ligadas ao Walpe (Women’s Academy for Leadership and Political Excellence – um centro dedicado ao empoderamento das mulheres do Zimbábue) realizou um protesto na capital do país, Harare, para denunciar dezenas de casos de estupros cometidos nas semanas anteriores por homens das forças de segurança ou “vestidos com uniformes e roupa camuflada”, no modo eufemístico como são descritos os crimes praticados por militares nos relatórios oficiais. Na maioria dos casos, esses homens chegaram durante a noite às casas pretextando procurar “suspeitos” e terminaram fazendo das mulheres suas vítimas, em violações coletivas. Uma das hashtags usadas no protesto das mulheres era #OurBodiesNotWarZone (“nossos corpos não são zona de guerra”).

Zimbabuanas ativistas organizaram um protesto, a Black Wednesday (30/01/19), para denunciar dezenas de casos de violência sexual cometidas por militares no último janeiro, na onda de repressão às manifestações contra o custo de vida.

Zimbabuanas ativistas organizaram um protesto, a Black Wednesday (30/01/19), para denunciar dezenas de casos de violência sexual cometidas por militares no último janeiro, na onda de repressão às manifestações contra o custo de vida.

 

Lembrando que o Nobel da Paz em 2018 foi o médico Denis Mukwege, que trabalha com mulheres vítimas de violência sexual na guerra civil que atinge o Congo há décadas, somos obrigados a constatar que em muitos países africanos o corpo das mulheres é visto sim como “zona de guerra”, sendo um tipo de violência que afeta vítimas, familiares e, às vezes, toda a comunidade, já que muitos desses atos ocorrem propositadamente às vistas de todos.

No caso do Zimbábue, a violência sexual está inscrita no cotidiano das ações militares e faz parte do conjunto de atos e violações que têm sido praticadas por forças de segurança e membros do governo contra opositores e manifestantes que foram às ruas nos dias 14, 15 e 16 de janeiro para protestar contra aumento de 150% no preço da gasolina e o impacto no custo de vida, numa paralisação chamada pelos sindicatos.

O país vive um momento especial de sua história: a transição da longa ditadura de Robert Mugabe, encerrada com uma renuncia forçada em novembro de 2017, quando o Exército ameaçou abandoná-lo. Imediatamente foram realizadas eleições e a vitória apertada coube ao atual presidente, Emmerson Dambudzo Mnangagwa, da ZANU-PF, com 50.8% dos votos. Acontece que a Zanu-PF era o partido de Mugabe e representa a velha ordem ancorada nas forças militares que lutaram pela independência nos anos setenta.

Num primeiro momento todos se encheram de esperança e expectativas, mas o desencanto tornou-se imenso. As centrais sindicais e os ativistas pela democracia chamaram uma paralisação de três dias e já no segundo, as forças de segurança chegaram atirando,  matando 12 pessoas. Há relatos confiáveis de que pelo menos 78 pessoas foram tratadas por médicos devido a ferimentos à bala. Outros 700, incluindo menores de idade, foram presos sob acusações forjadas, ou levados a tribunais em audiências que não observaram as normas legais. Centenas tiveram seus pedidos de fiança negados.

No dia 15 de janeiro, o governo derrubou a internet em todo o país impedindo que os manifestantes usassem as redes sociais para se organizarem e obter informações sobre o que estava ocorrendo em outras localidades. Desde então os sinais permanecem instáveis; monitorados. Há um apagão de notícias no país.

A Anistia Internacional informa que há fortes evidências de que tortura; intimidação; roubos; execuções extrajudiciais; ataques às casas de líderes das manifestações; bloqueios de ruas; deslocamentos e detenções arbitrárias ocorrem diariamente no país, além da violência sexual. As vítimas evitam reportar às autoridades policiais o ocorrido. Não é seguro. Em pelo menos um caso, os militares invadiram um hospital para prender um ativista procurado. E novos relatos confirmados mostram que as forças de segurança continuam a usar força letal contra cidadãos em vários bairros de Harare, sobretudo nos mais pobres.

 

O lugar do Exército no Zimbábue pós-Mugabe

Analistas e ativistas falam de tensão no setor militar.

Outrora suporte da ditadura de Mugabe e, portanto, sócio no poder e nas benesses, o Exército agora teme as reformas que agentes da sociedade civil têm feito para fortalecer instituições do legislativo e do judiciário e criar um Estado democrático no Zimbábue. (Veja reportagem da Al-Jazeera: o protesto de juízes contra a interferência do governo nas cortes.)

Se a violência cometida por militares começa a ser denunciada (certamente na expectativa de repercussão e pressão internacional sobre Mnangagwa), é porque os responsáveis locais pelas investigações desses abusos e crimes agem contra a impunidade costumeira dos militares, passando os relatórios para jornalistas do The Guardian.

Repressão policial a protesto sindical, em Harare, outubro de 2018

Repressão policial a protesto sindical, em Harare, outubro de 2018

Existe também um choque de gerações e legitimidades.

A geração nascida na virada do século, entre 15 e 25 anos, tem uma experiência histórica distinta dos mais velhos, pois conheceu uma África independente, livre do colonialismo, uma África na qual o poder do estrangeiro já não se faz tão forte a ponto de permitir ignorar que o povo segue miserável enquanto os septuagenários líderes da independência se tornaram milionários e, frequentemente, corruptos. Essa nova geração parece não tratar com especial deferência esses velhos chefes, que, por sua vez, temem serem relegados a um papel secundário.

Alguns generais dizem não reconhecer como interlocutor quem não esteve nas lutas de independência, um argumento geracional que impede a renovação dos quadros políticos. Na repressão de janeiro, os ativistas políticos foram rapidamente procurados. São jovens. Muitos fugiram para a vizinha África do Sul, onde possuem redes de apoio ligadas ao partido Aliança Democrática. No fim, de renovação, o governo de Mnangagwa e da Zanu-PF passou a representar a velha ordem.

Para o advogado e político zimbabuano Fadzayi Mahere, desde a queda de Mugabe os militares se sentiram encorajados a desempenhar um papel mais ativo nos assuntos sociais, políticos e econômicos. Eles justificam seu crescente autoritarismo como um “apelo popular” para que uma liderança forte reorganize a economia e mantenha um ambiente econômico estável. O que se percebe, porém, é que os militares fortes não têm competência técnica, nem administrativa, nem a lisura necessárias para empreender tais reformas, recorrendo à mão pesada para manter o poder e calar os críticos. (Fonte: https://www.thezimbabwean.co/2019/01/zimbabwe-dared-to-hope-then-the-military-arrived/)

O renomado analista sul-africano, David Monyae, lembrou os “Documentos de Mbeki-Mugabe”, produzidos no início de 2000 pelo governo sul-africano em parceria com o governo de Robert Mugabe, por meio do qual o então presidente Thabo Mbeki buscava mediar um acordo para a grave situação no país vizinho, onde a questão agrária estava literalmente explodindo. Monyae insiste na importância da nova geração conhecer tais documentos, pois ali estava um chamado à unidade pela via da  política. E alerta:a brutalidade dos militares e o desespero enfurecido dos manifestantes não produzirão soluções para os graves problemas do país.

Naquela época, a avaliação era que o governo do Zanu-PF havia amenizado a crise até então apoiado em um programa de rápido endividamento público, que melhorou momentânea e superficialmente a vida dos mais pobres até a inflação explodir. Quando a Guerra Fria acabou e o mundo se moveu e o regime do apartheid na África do Sul chegou ao fim, a Zanu-PF não havia construído nada parecido com independência econômica para o Zimbábue.

A inflexão da Zanu-PF em direção ao autoritarismo aberto representado pela continuidade de Mugabe e o abandono de qualquer linguagem progressista deu-se no momento em que eles sentiram o apoio popular enfraquecer. Aqueles que haviam lutado para libertar o país do domínio britânico se voltaram contra lideranças emergentes nos sindicatos e na sociedade civil, ao mesmo tempo em que recursos públicos eram desviados para bancar os altos padrões de vida da nova elite estatal. (Fonte: https://www.thezimbabwean.co/2019/02/with-no-saviour-in-sight-zimbabwe-needs-help-to-save-itself)

 

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