Fonte: The Arakan Project, outubro 2017
Separada do restante do território de Mianmar (antiga Birmânia) por uma cadeia de montanhas, existe uma região chamada Arakan (atual Rakhine), habitada pela minoria étnica Rohingya. Muçulmanos, eles se declaram descendentes de comerciantes árabes que séculos atrás levaram o Islã sunita para a Ásia, passando primeiro pelos territórios da Índia e Bangladesh.
Observando o mapa acima, notamos a região de Arakan/Rakhine como um prolongamento “natural” das terras de Bangladesh, majoritariamente muçulmana. Na geopolítica do Sudeste Asiático, para o Estado de Mianmar, de maioria budista, os Rohingya representam o risco de perda dessa parte de seu território em nome da criação de um território muçulmano autônomo – como já ocorre. Ou pelo menos esse é o argumento clássico pelo qual um governo ditatorial (o país ainda transita para a democracia) cria um “inimigo comum” e conquista apoio da população. É significativo que o país conte 135 minorias étnicas oficialmente reconhecidas, incluindo os ainda mais numerosos cristãos, mas apenas os Rohingya sejam alvo de perseguições.
Nas últimas décadas, os Rohingya passaram a ser descritos como o “povo mais perseguido do mundo”. Primeiro eles foram transformados em apátridas pelo governo militar, em 1982, agora se tornaram mundialmente conhecidos como protagonistas involuntários de uma crise migratória responsável pelo deslocamento de mais de seiscentas mil pessoas entre agosto e novembro de 2017, num processo tão violento que tem sido descrito como “limpeza étnica” (e até “genocídio”).
Enquanto os Rohyngya afirmam que a região de Rakhine (Arakan) é sua terra histórica, o governo de Mianmar afirma eles nada mais são do que muçulmanos bengalis levados para trabalhar na região durante o domínio colonial britânico
(Rohingyas de Mianmar: luta pelo poder, afirmação budista & divisão étnica – abaixo a síntese do artigo)
A questão Rohingya nasceu com a independência da Birmânia (atual Mianmar), sobretudo após o estabelecimento de uma ditadura militar a partir de 1962. Ancorando o nacionalismo do novo Estado na identidade budista da maioria da população, os militares viram na reivindicação autonômica de grupos muçulmanos Rohingyas uma ameaça à segurança do Estado. Construindo o “inimigo comum”, as Forças Armadas ganham legitimidade junto aos civis por serem vistas como fundamentais para a segurança e proteção do país.
Caluniar e denunciar os Rohingya se tornou uma maneira infalível de garantir popularidade e reputação para vários partidos. Tornou-se uma tendência, um sentimento dominante que encontrou ressonância entre a população. A construção política do termo “Rohingya” está associada à identidade de um muçulmano bengali. Ao se posicionar contra os Rohingya, a Junta Militar envia clara mensagem de apoio aos 500.000 monges budistas do país, assumindo o papel de defensora da religião budista e da cultura birmanesa.
A ligação de muçulmanos Rohingya com grupos extremistas é outra tendência preocupante que tem surgido nos tempos atuais. No 13º Encontro Informal de Defesa das Forças Armadas da ASEAN, em Vientiane, Laos, o general Min Aung Hlaing declarou que todos os países membros da ASEAN deveriam se unir para combater a ameaça regional do “extremismo bengali”, relacionando-o à migração Rohingya. Assim, identidade étnica e religiosa – Rohingya e muçulmana – tornam-se intercambiáveis, revelando o profundo sentimento islamofóbico no país.
Aung San Suu Kyi, Nobel da Paz por lutar contra a ditadura em seu país, atual líder de fato do governo de Mianmar, em reunião da ASEAN para tratar dos Rohingya
Os 124 anos de domínio colonial britânico em Mianmar criaram entre os birmaneses sentimentos profundos de desconfiança e ressentimento em relação aos estrangeiros. Monges budistas como Ashin Wirathu, o rosto de organizações anti-muçulmanas como a 969 e o movimento Ma Ba Tha, estão habilmente usando a xenofobia para instigar o ódio e a violência contra os Rohingya. Quase todos os choques ocorridos em 2012 foram precedidos por discursos inflamados do monge radical. O poder dos monges budistas tornou-se evidente a partir da “revolução açafrão” de 2007, quando eles foram capazes de forçar o governo a exibir publicamente Aung San Suu Kyi por alguns minutos (a então presa política e símbolo do movimento pela redemocratização de Mianmar, atual líder do governo).
Embora a revolução tenha sido um fracasso, obrigou o governo a não subestimar a influência dos monges. A sequência de medidas adotadas pelo governo mostrou sua intenção de consolidar o poder dos monges para fortalecer seu próprio poder. Assim, os militares e os extremistas religiosos forjaram uma relação simbiótica. A partir dos resultados da atual eleição, ocorrida em novembro de 2015, foram os monges que se tornaram os maiores beneficiários, mesmo que a Constituição do país os proíba de participar de qualquer atividade política.
Ashin Wirathu provou, entretanto, que obter uma cadeira no Parlamento não é a única maneira de exercer o poder. O motivo da perseguição de Rohingyas por Wirathu é percebido em seus discursos quando ele pinta uma imagem vil do pequeno número de muçulmanos ricos que residem em Mandalay e Yangon. O medo de ser economicamente dominado e deixado à mercê da comunidade muçulmana é a base de seu discurso de ódio. Ele afirma que se continuarem a ser complacentes, os agora pobres Rohingya poderão enriquecer e dominá-los no futuro. Ele também declara os Rohingya “inimigos do povo” que usam a violência, e os distingue dos outros muçulmanos no país chamando-os de “bengali rohingyas”.
Por que as outras minorias religiosas não são perseguidas? Há 1,2% mais cristãos que muçulmanos em Mianmar. Qualquer explicação lógica levaria a uma maior probabilidade dos cristãos serem perseguidos por terem a mesma religião do colonizador. Por que então os Rohingya? O grande número deles em Rakhine talvez explique o tratamento injusto.
A animosidade entre Rakhines e Rohingyas começou durante a Segunda Guerra Mundial, quando os primeiros apoiaram os japoneses e os segundos, os britânicos. Dadas as grandes diferenças entre as duas comunidades étnicas, com o tempo os Rakhine passaram a temer a erosão de sua cultura. A demanda dos Rohingya por um estado autônomo na parte norte de Arakan também exacerbou seus medos.
Os Rohingya são considerados estranhos e invasores e são vistos como uma extensão da era de opressão colonial. Este simbolismo da identidade Rohingya faz com que eles sejam vítimas de ódio generalizado entre os birmaneses. A presença do Estado Islâmico (ISIS) no mundo atual contribui para o estereótipo de que todo muçulmano é terrorista. Esse fenômeno foi observado ao longo de 2015, quando o sistema internacional começou a ser atraído pelo problema: para o povo, os estrangeiros estão sendo enganados por “terroristas”.
A tensão faz com que os birmaneses neguem qualquer fonte que relacione os Rohingya à história do país, atribuindo-as a mentiras produzidas pela mídia no exílio. A islamofobia corre solta e está na raiz da emigração Rohingya. O destino de 1,3 milhões de pessoas depende do modo como a crise será tratada pela comunidade internacional. A pressão a ser feita sobre o governo de Mianmar será decisiva para resolver o problema dos refugiados. O silêncio do NLD (o partido no governo) é preocupante, pois é a voz democrática no país. Os críticos de Suu Kyi acreditam que a consolidação da ordem política pós-ditadura militar fará com que, com o tempo, ela dê a devida importância ao problema. Mas tempo é algo que os muçulmanos Rohingya não dispõe.
(Quem são os Rohingya? – abaixo a síntese do artigo)
A questão dos Rohingya tornou-se assunto também na Índia, onde o governo insiste em deportá-los em prol da segurança nacional. A percepção de ameaça decorre de relatórios apresentados por serviços de Inteligência que conectam grupos radicais Rohingyas com organizações jihadistas. O governo da Índia tem feito gestões junto ao governo de Mianmar para que esse modere e retire os Rohingya do território vizinho.
No entanto, os birmaneses consideram os Rohingyas “muçulmanos bengalis” trazidos de Bangladesh durante o período colonial britânico. E Bangladesh considera-os cidadãos de Mianmar. Nesse jogo, cerca de um milhão de pessoas são classificadas como apátridas pelas Nações Unidas.
A questão subjacente é: quem são os Rohingya? Se, por um lado, os budistas Rakhine negam qualquer legitimidade histórica aos Rohingyas de Mianmar, por outro, são escassas as fontes históricas para testemunhar as origens precisas dos Rohingya. O que parece indiscutível é a ocupação de muçulmanos na região de Arakan, em Mianmar, desde o século XV. Quando e como eles transformaram sua identidade na etnicidade Rohingya tem sido uma questão que historiadores e antropólogos tentam decodificar há muito tempo.
O grande número de indianos, especialmente bengalis, trazidos para Arakan foi motivo de grande ressentimento para os birmaneses, coincidindo com o período em que desenvolviam forte sentimento nacionalista. Encerrada a Segunda Guerra Mundial e após a retirada dos britânicos, em 1948 muitos bengalis acompanharam os ingleses, os que ficaram passaram a sofrer discriminação, enquanto os choques entre os dois grupos tornavam-se cada vez mais frequentes. Quando os muçulmanos de Arakan, fortemente inspirados pela formação do Paquistão com base na identidade religiosa, começaram a exigir uma região autônoma por razões étnicas, o governo independente de Mianmar continuou a discriminá-los, até lhes revogar a cidadania.
No entanto, não são apenas os budistas Rakhine que negam o passado birmanês dos Rohingya, mas também estudiosos que afirmam que a palavra “rohingya” não é encontrada em nenhuma fonte histórica, exceto em um único texto do final do século XVIII. O que parece indiscutível é que o nome “Rohingya” ganha popularidade entre os muçulmanos de Rakhine nas décadas de 1950 e 60, momento em que a rebelião de Mujahid contra o governo brimanês exigia um estado separado para os muçulmanos de Arakan. Jaques P. Leider, uma autoridade em história do sudeste asiático, escreve em sua obra que “até os anos 1990, “Rohingya” foi registrado na maioria dos meios de comunicação não como uma denominação étnica ou religiosa, mas como uma denominação de insurgentes que resistiram ao governo de Mianmar e buscavam a criação de um Estado muçulmano independente perto de Bangladesh.”
Mapa histórico da região de Rakhine (antiga Arakan). A existência de uma memória histórica será determinante para o futuro dos Rohingya
Essa história começou em 1962, quando o violento golpe militar liderado pelo general Ne Win impôs uma ditadura ao país (que perdurou até 2015). Com plenos poderes, em 1965 o general Win proibiu as transmissões radiofônicas na língua Rohingya. Em 1974, a região de Arakan foi renomeada Rakhine, uma palavra associada aos budistas, em um claro processo de “apagamento” da memória muçulmana. Em 1982, o governo militar revogou-lhes os direitos civis retirando-lhes a cidadania e transformando-os em apátridas (o que constitui um problema a mais na hora da imigração, pois eles são indocumentados).
Segundo a Lei de Cidadania, para ser cidadã a pessoa tinha que provar que sua família morava em Mianmar desde antes de 1948. Muitos Rohingya não têm registros da residência histórica de suas famílias. Depois que a lei foi aprovada, o governo reteve os cartões de identidade dos Rohingya. A naturalização, segundo a lei, também exige fluência em uma das línguas nacionais faladas no país. Mas os Rohingya falam o dialeto Rohingya e, com acesso limitado à educação, tiveram pouca oportunidade de aprender uma língua reconhecida nacionalmente. O general Ne Win justificou a Lei da Cidadania por razões de segurança nacional, afirmando que “A leniência em questões humanitárias não pode ser tal que nos ponha em perigo. Podemos tolerar [as minorias étnicas] o direito de viver neste país e manter um modo de vida legítimo. Mas teremos que deixá-los fora das questões que envolvam os assuntos do país e o destino do Estado ”
A apatridia tornou os Rohingya altamente vulneráveis. Primeiro por restringir a liberdade de movimento, mesmo entre suas próprias aldeias, dificultando tanto as transações econômicas quanto o acesso aos estudos superiores ou atendimento médico. Depois, os elementos da identidade religiosa são altamente visados: há frequentes demolições, confiscos e fechamentos de mesquitas e escolas religiosas. Os eruditos religiosos recebem sentenças de prisão irracionais, são humilhados e têm suas barbas raspadas ou arrancadas. Nos casamentos, que no caso dos Rohingya deve ser autorizado previamente pelo Estado, o noivo precisa se barbear se quiser ter chance de ver o seu pedido aprovado. Apenas essa minoria sofre a restrição de dois filhos por casal. O confisco é uma prática comum, seja gado, casa ou outros bens móveis e imóveis. E, a pretexto de construir “vilas modernas”, os distritos Rohingyas têm sido arrasados e repovoados com Rakhines budistas. Além disso, eles sofrem taxações e prisões arbitrárias e as mulheres e meninas são alvo de estupros e ataques diversos, agravados pelo fato de não poderem recorrer à assistência médica ou judicial dada a apatridia.
Durante todos esses anos, nos quais a comunidade internacional denunciava as arbitrariedades do governo de Mianmar tanto contra opositores políticos, quanto contra os Rohingya, milhares deles emigraram em busca de melhores condições de vida, especialmente em direção às vizinhas Bangladesh, Malásia e Tailândia. Mas, a partir de 2012, a violência recrudesceu, intensificando o êxodo.
Nesse ano, três Rohingyas foram acusados e imediatamente presos pelo estupro e assassinato de uma jovem Rakhine budista. Uma intensa campanha liderada por monges radicais e apoiada pela população budista local clamava por vingança. Quando a onda de violência teve início, as forças de segurança locais nada fizeram, pelo contrário há claros indícios de apoio material e operacional aos agressores. Rohingyas foram atacados e mortos, casas e plantações foram destruídas e alguns milhares fugiram.
Monges budistas radicais animam a população contra os muçulmanos Rohingyas
No rescaldo da violência de 2012, o governo de Mianmar não permitiu nem facilitou o retorno dos Rohingya para suas casas, deixando muitos deles presos em acampamentos fechados, vigiados e mal equipados, ou isolados em aldeias remotas onde eles não têm meios adequados nem acesso às agências de ajuda humanitária. Os militares declararam que estavam forçando os Rohingya a permanecer nos campos para “sua própria segurança”. Em novembro de 2013, cerca de 140.000 Rohingya viviam em dezenas de campos de deslocados internos no Estado de Rakhine. As condições nos acampamentos constituem uma crise humanitária. Depois de visitar os campos, o subsecretário-geral para Assuntos Humanitários da ONU declarou: “Eu tenho visto muitos campos durante o período em que fui o coordenador de ajuda humanitária da ONU, mas as condições neste campo estão entre as piores”.
Internacionalmente pressionado, o governo de Mianmar nomeou um comitê para investigar as denúncias.
.Em 2014, um ano e meio após o Comitê Investigativo Rakhine ter emitido suas recomendações, um rascunho da resposta do governo vazou para a mídia. O esboço não discutia o retorno de Rohingya dos acampamentos para suas casas. Em vez disso, delineou um plano para realocar os Rohingya em zonas permanentes de reassentamento em locais não especificados em todo o estado. O esboço também delineou planos para uma avaliação da cidadania dos Rohingya com base na discriminatória Lei de Cidadania de 1982, que tirou a cidadania dos Rohingya. O novo “processo de verificação de nacionalidade” registraria “Bengalis”e permitiria que aqueles que aceitassem o rótulo passassem pelo processo de avaliação. Aquele que recusasse o rótulo “Bengali” não teria qualquer cidadania e seria colocado em “acampamentos temporários” por um período indefinido de tempo. A Human Rights Watch chamou o plano de “um projeto para a segregação permanente e a apatridia que parece destinada a… forçá-los [os Rohingya] a fugir do país” (Leia mais)
No recenseamento realizado em 2014 – o primeiro em décadas – o governo excluiu os Rohingyas da contagem, comprovando a recusa em reconhecê-los como etnia própria. Classificados como “bengalis”, são tratados como imigrantes ilegais e, por isso, não puderam votar nas eleições realizadas em novembro de 2015, as primeiras em décadas.
A situação tornou-se definitivamente crítica a partir de 25 de agosto de 2017, quando um grupo militante nacionalista auto-proclamado Exército de Salvação Arakan Rohingya (ARSA) atacou uma dezena de postos de polícia causando a morte de 9 agentes de segurança. Imediatamente o governo – agora eleito – declarou a ARSA uma “organização terrorista” e, a pretexto de buscar os responsáveis pelos ataques, forças de segurança e milícias populares passaram a revidar indiscriminadamente em qualquer membro da etnia Rohingya, causando a morte de pelo menos 6.700 pessoas entre 25 de agosto e 24 de setembro, segundo a organização Médicos sem Fronteiras.
A brutal violência contra a minoria muçulmana cumpre o objetivo de forçar o êxodo de milhares de pessoas, ao mesmo tempo em que a destruição de suas casas e plantações, mesquitas e mercados visam a impedir um motivo de retorno. Os que conseguem chegar a Bangladesh reportam histórias de terror e muitos observadores externos, incluindo o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, falam em limpeza étnica, descrevendo a situação humanitária como catastrófica.
Chegando ao país vizinho, refugiados Rohingya divulgam o que está acontecendo no estado de Rakhine, onde se concentram suas vilas. Eles contam que as forças de segurança do Estado, apoiadas por multidões budistas, responderam ao ataque aos postos policiais ateando fogo às suas comunidades e executando civis de forma arbitrária (há inúmeras fotos que comprovam a destruição das vilas, captadas inclusive por satélites). A ONU, por intermédio da sua agência para refugiados, o ACNUR, declarou a ofensiva militar em Rakhine como um “claro exemplo de limpeza étnica”. A Anistia Internacional tem denunciado casos recorrentes de abusos sexuais tendo mulheres e crianças Rohingya como alvo, lembrando que esse tipo de “tática” foi usada na guerra da Bósnia e em Ruanda.
Vilarejo incendiado. Os Rohingyas não têm para o que voltar
O governo da Liga Nacional Democrática, que tem como liderança mais proeminente a figura de Aung San Suu Kyi, Nobel da Paz em 1991 por haver lutado contra a ditadura, nega haver uma política de extermínio – como antes negavam os militares -, acusando a mídia ocidental de difundir inverdades. Oficialmente as ações das forças de segurança em Rakhine visam apenas aos membros do ARSA e seus apoiadores. Os números, entretanto, tornam esse argumento risível, já que entre o final de agosto e meados de novembro de 2017 o número de refugiados entrando apenas em Bangladesh atingiu a casa dos seiscentos mil.
A população do estado de Rakhine não reconhece os Rohingya como etnia nativa; nomeados “bengalis”, eles são tratados como imigrantes ilegais sem qualquer vínculo com Mianmar. Desde 2012 tornaram-se mais frequentes os choques entre nacionalistas Rohingyas e budistas, sendo os primeiros descritos como uma ameaça. Estima-se que existam aproximadamente um milhão de Rohingyas em Mianmar, 800 mil só no estado de Rakhine, onde os budistas são cerca de dois milhões.
A fuga para Bangladesh se dá pelo braço de rio que separa os dois países, com as pessoas tentando viajar em pequenas embarcações ou agarradas a galões plásticos. Mas mesmo para os que desejam fugir, as forças de segurança de Mianmar criam todo tipo de dificuldades. Segundo o relatório, houve um primeiro pico de refugiados no final de 2016 e um refluxo no início de 2017, sobretudo porque forças de segurança de Mianmar tornaram ainda mais difícil o deslocamento.
Lista de violações reportadas pelos refugiados: surras; assassinatos; desaparecimento de familiares levados por forças policiais e militares; violência sexual e estupros (sendo que as mulheres têm grande dificuldade para relatar essa ocorrência, o que leva a supor que o número deve ser maior que o registrado); destruição e incêndio de propriedades; roubo de bens; tortura psicológica e física (posições estressantes por horas a fio, aliada a pancadas, resultando em injúrias físicas e mentais); prisões arbitrárias em condições sub-humanas e sem assistência médica.
Confrontados com realidade tão dura, inegavelmente marcada por modalidades diversas de violação de direitos humanos, pode parecer estranho haja um debate sobre se o que ocorre aos Rohingya é um processo de “genocídio”, “limpeza étnica” ou “perseguição contra uma minoria” enquanto eles morrem. Mas do ponto de vista do Direito Internacional, da ONU e de muitas outras instituições que lidam com esses assuntos e problemas, a palavra é fundamental. A precisão do conceito orienta ações, entre as quais a possibilidade de um futuro julgamento dos atuais governantes de Mianmar no Tribunal Penal Internacional.
Como vimos acima, a discussão é ainda mais complicada à medida que o governo de Mianmar – e aparentemente as fontes escritas – não reconhecem a etnia Rohingya como parte da história do país. Sem um consenso sobre as origens e especificidades Rohingya, como é possível falar em ações deliberadas do Estado birmanês contra um “povo” ou “etnia” – primeiro passo para empregarmos o conceito de genocídio?
O modus operandi dos governos de Mianmar para forçar a migração Rohingya certamente configura um processo de “limpeza étnica”, mas do ponto de vista das leis internacionais isso é diferente de exterminá-los pura e simplesmente.
Provocada por uma ONG de Direito Humanos que atua no sudeste asiático, a Faculdade de Direito de Yale produziu um documento analisando a questão Rohingya com o objetivo de responder a essa questão. A avaliação é que, de acordo com a definição da Convenção Internacional para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, de 09 de dezembro de 1948, “genocídio” pressupõe um dos atos enumerados abaixo, cometidos com a intenção de destruir um grupo nacional, étnico, racial ou religioso:
a) matar membros do grupo; b) causar sérios danos corporais ou mentais para os membros do grupo; c) infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial; d) impor medidas na intenção de prevenir nascimentos dentro do grupo e) transferir, à força, crianças desse grupo para outro grupo.
Assim, o estudo da Universidade de Yale, baseado em: (1) evidências de retórica pervasiva e depreciativa contra muçulmanos (e muçulmanos Rohingya, especificamente); (2) evidências de que os Rohingya são alvos devido a sua identidade como grupo; (3) políticas governamentais de restrições de casamento e nascimento direcionadas apenas aos Rohingyas; (4) políticas governamentais que privam a população Rohingya de recursos e tratamento médico necessário; (5) evidências de atrocidades em larga escala perpetradas contra os Rohingyas – concluiu que tais evidências sugerem ações deliberadas do governo de Mianmar com a intenção de cometer genocídio.
Para a porta-voz da ONG The Stateless Rohingya: Vimos um tremendo impulso por parte dos grupos de defesa no Ocidente para classificar isso como genocídio, porque eles acham que é realmente valioso. Observando como as coisas se desenrolaram em Ruanda, eles sentem que a palavra genocídio carrega um peso moral adicional e que, se conseguirem que seus governos digam que isso é genocídio, eles terão maior probabilidade de obter novas ações. Então, isso é definitivamente uma pergunta chave de todo grupo de defesa que trabalha com essa questão agora. (Leia mais)
Aos apátridas Rohingya resta esperar ajuda humanitária, enquanto a comunidade internacional tenta administrar mais uma crise de refugiados.
1057 – primeiro “reino unificado” de Mianmar se estabelece em Bagan (capital de diversos reinos que dominaram da região)
1430 – é fundado o último reinado Rakhine, com capital em Mrauk U. Situado na fronteira entre a Ásia budista e muçulmana, a cidade se torna uma das mais ricas da região.
1824 – 1948 (domínio britânico) – durante a colonização britânica na península indiana, as regiões que hoje formam Bangladesh e Mianmar também foram subjugadas. A comunidade muçulmana em Rakhine se expandiu rapidamente na época colonial, dobrando entre 1880 e 1930, uma vez que o cultivo de arroz, em expansão, demandava força de trabalho numerosa – que acabou sendo preenchida pelos trabalhadores muçulmanos das regiões do Golfo de Bengala (Bangladesh e Mianmar).
1941 – 1945 (Segunda Guerra Mundial) – o estado de Rakhine tornou-se uma das linhas de frente da guerra na Ásia entre as tropas japonesas (que ocupou grande parte da região durante o conflito) e as forças Aliadas. A população muçulmana alinhava-se aos britânicos, enquanto os budistas Rakhine inicialmente apoiaram os japoneses.
1948 – logo depois da independência de Mianmar em relação ao Reino Unido, uma rebelião muçulmana eclodiu no estado de Rakhine, demandando direitos iguais e a definição de uma área autônoma. A rebelião foi reprimida e derrotada.
1962 – inicia-se a ditadura militar sob a liderança do general Ne Win. Começam as primeiras medidas legais em detrimento dos Rohingya.
1978/1991 – as crescentes dificuldades impostas aos Rohingya levam mais de 200 mil muçulmanos a emigrarem para Bangladesh.
1982 – nova lei de cidadania é aprovada, identificando 135 grupos nacionais/étnicos. Os Rohingya não são incluídos na lista, tornando-os uma minoria apátrida.
2010 – a líder da oposição e vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1991, Aung San Suu Kyi (símbolo da luta democrática em Mianmar) é libertada da prisão doméstica.
2012 – a violência religiosa explode no estado de Rakhine deixando mais de 200 mortos e cerca de 150 mil Rohingyas desabrigados. Entre 2012 e 2015, mais de 112 mil Rohingya deixam seus lares rumo à Malásia, de barco.
2013 – 43 pessoas são mortas em novo episódio de violência religiosa. Relatos citam monges budistas chamando por um “extermínio muçulmano”. O número de deslocados internos do grupo Rohingya cresce a níveis alarmantes e o êxodo rumo a países vizinhos permanece alto.
2014 – censo demográfico realizado pelo governo exclui os Rohingya.
2015 – na primeira eleição democrática desde a ditadura militar, os Rohingya não são autorizados a participar (nem como candidatos, nem como votantes). O partido da Prêmio Nobel Suu Kyi obtém a vitória e ela se torna líder de fato de Mianmar, em um acordo de “compartilhamento de poder” com a Junta Militar.
2016 – em outubro, um grupo de 300 Rohingyas ataca postos de fronteira no estado de Rakhine, de acordo com a mídia estatal. Um grupo insurgente auto-denominado Arakan Rohingya Salvation Army (ARSA) assume a responsabilidade. O episódio provoca intensa represália por parte do Exército de Mianmar, levando 87 mil Rohingyas ao exílio.
25 de agosto de 2017 – a mídia estatal de Mianmar declara que 12 agentes de segurança foram mortos por insurgentes do ARSA. A repressão das forças de segurança em busca dos rebeldes no estado de Rakhine desencadeia o êxodo. Nos dias seguintes o número de refugiados chegando à Bangladesh – e também a outros países – escalou para muitos milhares.
29 de agosto de 2017 – O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR-ONU) lança apelo à comunidade internacional e pressiona o governo de Mianmar a abrir as fronteiras, com o número de refugiados subindo rapidamente, dia após dia. Operações de ajuda humanitária e campos de refugiados no distrito de Cox’s Bazar, Bangladesh, se preparam para um grande influxo de pessoas.
5 de setembro de 2017 – mediante o fluxo crescente, a ACNUR clama por “ajuda para salvar vidas”.
8 de setembro de 2017 – campos de refugiados atingem a capacidade máxima, com os números de chegada na casa dos 270 mil. A população bengalesa e os primeiros Rohingyas que chegaram à Bangladesh estão na linha de frente da ajuda aos refugiados (provendo alimentação, roupas e abrigo).
12 de setembro de 2017 – já são 370 mil os Rohingyas em Bangladesh; muitos estão subnutridos antes mesmo de começarem a jornada para Bangladesh.
19 de setembro de 2017 – mais de 415 mil refugiados caminharam até Bangladesh, atravessando fortes chuvas de monções e inundações pelo caminho. ACNUR declara a situação em Bangladesh caso de máxima emergência.
28 de setembro de 2017 – O número de Rohingyas em Bangladesh chega à meio milhão. Em Nova York, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, afirma no Conselho de Segurança que a crise de refugiados Rohingya é um “pesadelo dos direitos humanos”.
17 de outubro de 2017 – frente à destruição de suas vilas em incêndios provocados, mais pessoas são forçados a abandonar o estado de Rakhine. Milhares aguardam na fronteira entre Mianmar e Bangladesh esperando permissão para atravessarem.
24 de outubro de 2017 – a comunidade internacional anuncia mais de US$ 344 milhões em doações para a assistência humanitária aos Rohingya em Bangladesh, onde o número de refugiados excede 600 mil.
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