BRASIL, DITADURA MILITAR – O DOCUMENTO E A PROVA

 

Silvio Pera

(Historiador; professor e autor de livros e materiais didáticos)
4 de junho de 2018

 

Uma bomba-relógio relacionada ao período militar no Brasil foi plantada pela própria CIA e explodiu no final de abril deste ano, quando o pesquisador Matias Spektor, coordenador do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, divulgou uma série de relatos envolvendo o alto comando das Forças Armadas e o próprio presidente, general Ernesto Geisel (1974-1979), na execução de opositores da ditadura militar.  O documento foi dado a público em 2015, quando o Departamento de Estado americano liberou-o para consulta depois de concluído o período de sigilo ao qual muitos papéis de governo são submetidos por segurança ou privacidade.

Num dos relatórios enviados ao secretário de Estado Henry Kissinger, o diretor da CIA relata a decisão do general Geisel em continuar a execução sumária de indivíduos considerados subversivos perigosos, em reunião realizada em março de 1974, duas semanas após sua posse, em pleno Palácio do Planalto. Na ocasião, estiveram presentes os generais João Figueiredo, chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações) e Milton Tavares de Souza, chefe do CIE (Centro de Inteligência do Exército). Tavares fez um histórico da ação do órgão sob seu comando na gestão do presidente Médici (1969-1974) e revelou a execução de 104 pessoas, enaltecendo a importância de tais procedimentos, responsáveis por dar fim às últimas ameaças representadas pela oposição armada. Geisel ordenou a continuidade das execuções, impondo como condição a sua autorização ou a do general Figueiredo – que viria depois a sucedê-lo como o último presidente do período militar.

Se, por um lado, a brutalidade eficaz da repressão consolidava o regime militar brasileiro, já com uma década de existência, por outro, minava uma de suas principais bases de sustentação: o apoio do governo americano. Desde o início dos anos 1970 a opinião pública e a imprensa dos Estados Unidos pressionavam congressistas e governantes a reverem a ajuda militar e os projetos de parceria que vinham sendo criados junto aos governos militares da América Latina – como o acordo MEC/USAID, que supostamente financiaria a modernização da educação no Brasil-, sobre os quais começavam a surgir graves denúncias de violações dos direitos humanos.

Em 1969, a prática de torturas e execuções foi denunciada pela Anistia Internacional estimulando outras entidades a também se manifestarem sobre casos semelhantes. Nos anos seguintes as acusações foram repetidas pela Civilitá Católica (publicação oficial dos jesuítas), pela Comissão Internacional de Juristas, pelo papa e pelo The New York Times. Esse jornal, em editorial de julho de 1973, questionava a necessidade da repressão violenta, como se via no Brasil, para alcançar o bom êxito econômico. Dias depois, o senador democrata John Tunney propôs a suspensão de toda a ajuda militar ao país até que as autoridades brasileiras esclarecessem de modo satisfatório as denúncias. O próprio coronel Jarbas Passarinho, então ministro da Educação, havia declarado em entrevista ao The New York Times, em edição de outubro de 1971, que reconhecia a ocorrência de execuções, porém em situações extremas e ocasionais, necessárias para combater o terrorismo e suas ações violentas, como o sequestro de embaixadores e as guerrilhas da floresta.

A novidade – se essa é a melhor palavra – trazida pelo documento liberado, é que a decisão tomada pelo presidente Geisel naquele encontro de primeiríssimo escalão prova a permanência da estratégia adotada pelos militares para conter os oposicionistas com prisões, torturas e assassinatos, o que era sabido mundo afora, inclusive por figurões do regime, mas que as Forças Armadas brasileiras sempre negaram, atribuindo tais violações de direitos humanos a ações individuais. Até agora, boa parte das análises sobre o período – que ainda aguarda a liberação de muitos documentos – costuma associar a figura do quarto general-presidente ao controle e redução das ações mais violentas, já com vistas à transição para a ordem civil.

As principais referências historiográficas nos estudos sobre a ditadura militar não escondem que torturas e execuções praticadas pelos diversos órgãos de repressão atuantes – CEI, DOPS, DOI-CODI, entre outros – eram comuns, e não restritas aos órgãos federais, como demonstram os estaduais DEOPS e OBAN. Certamente, Geisel se via pressionado pela CIA a controlar os excessos da repressão a fim de evitar repercussão escandalosa junto à opinião pública nos Estados Unidos.

Geisel e o presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter (1977-1981). Com a chegada do Democrata ao poder a ditadura militar começa a se enfraquecer.

Geisel e o presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter (1977-1981). Com a chegada do Democrata ao poder as ditaduras na América Latina começaram a se enfraquecer.

Em parte, o general-presidente conseguiu isso, com reconhecidas demonstrações de autoridade para punir insubordinação, como quando demitiu o general D’Ávila Mello do comando do II Exército e o chefe do CEI, general Confúcio Avelino, após a morte do líder sindical Manoel Fiel Filho nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo. Difícil crer, entretanto, que a centralização da violência em mãos do poder Executivo e do alto comando das Forças Armadas fosse plena, como esperado pela agência americana.  Ao se referir às prisões arbitrárias, torturas e assassinatos feitos pela “tigrada”, o baixo escalão do aparelho repressor, Élio Gaspari afirma. “Era uma bagunça!”

Todavia, os perturbadores relatos trazidos a público por Matias Spektor derrubam a tese de que a morte de opositores ocorria apenas em combate ou por excessos cometidos por certos agentes do Estado, a “tigrada” sem controle, integrantes de forças repressivas locais que por vingança, interesses políticos ou sadismo perpetraram inúmeras violações aos direitos humanos. Esse argumento útil retira a responsabilidade do comando hierárquico e evita punições ao alto comando militar. Por ser um documento oficial e expor o envolvimento dos chefes das Forças Armadas na deliberação de assassinatos, é difícil manter a negação de que as execuções eram uma política de Estado, não algo pontual e esporádico.

Confrontados pelo memorando da CIA, as Forças Armadas e o governo silenciaram sobre a veracidade do relatado. Dias depois, a oficial Agência Brasil divulgou mensagem do Centro de Comunicação Social do Exército informando “que os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época – Regulamento da Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS) – em suas diferentes edições”. Ou seja, os arquivos que poderiam confirmar, ou não, as informações reveladas pelo pesquisador foram destruídos. Acrescentou o porta-voz do Ministério da Defesa que o termo de destruição também havia sido incinerado, portanto não existem provas de que os documentos foram, de fato, destruídos!

O ministro Raul Jungman, da Segurança Social, apressou-se em afirmar que as “Forças Armadas são o maior ativo democrático do país” e que o seu prestígio continua o mesmo de sempre. O general Joaquim Luna, ministro da Defesa, disse que o documento é assunto do passado. “Para o Ministério da Defesa, esse tema se esgota na Lei da Anistia. A partir daí, é uma atividade para historiadores e, se tiver demanda, para a Justiça. Com a Lei da Anistia, do ponto de vista militar, este assunto está encerrado”.

Há que se perguntar: por que a discussão sobre os excessos cometidos por agentes do Estado no período militar faz com que até pessoas que construíram sua carreira política combatendo o regime, com origens na militância esquerdista, como Raul Jungman, vindo do PCB, depois PPS, prefiram o silêncio? Parece que a sociedade brasileira plasmou, junto com a transição democrática, a ideia de que os crimes da ditadura, mesmo quando feriram princípios básicos estabelecidos em convenções assinadas pelo Estado brasileiro, devem ser perdoados. O Brasil segue como o único país a manter uma Lei de Anistia criada pelos próprios ditadores, enquanto vizinhos como Argentina e Chile já viraram essa página levando generais às prisões, abrindo arquivos e assumindo os excessos cometidos por todos os envolvidos nas lutas do período militar, admitindo uma história sem “bandidos” e “mocinhos”, sem “vencedores” e “perdedores”.

Se não por uma questão ética, uma questão jurídica obriga o Estado brasileiro a esclarecer esse assunto. A legislação internacional vigente – composta por diversas convenções sobre Direitos Humanos, decididas em Assembleia Geral da ONU e julgamentos das Cortes de Justiça, das quais o Brasil é signatário – determina aos governos de países onde ocorreram desaparecimentos de opositores políticos, três deveres fundamentais:

  • investigar os fatos e apurar a verdade sobre as circunstâncias dos desaparecimentos;
  • indenizar as famílias das vítimas;
  • identificar e punir os culpados.

Para fugir ao terceiro dever, usa-se a Lei de Anistia de 1979 como escudo, isentando o Estado brasileiro de investigar os responsáveis e, portanto, impedindo que o país supere as acaloradas divisões em torno das narrativas sobre aquele período. Mais do que o passado, é o futuro que precisa disso, para que as instituições do Estado brasileiro amadureçam no sentido do reconhecimento de valores universais que devem prevalecer em qualquer tempo.

Em 2014 a Comissão Nacional da Verdade tornou público um extenso relatório identificando circunstâncias, locais, instituições públicas e privadas, além de agentes públicos ou não relacionados à violações dos direitos humanos sob o governo dos militares. O documento afirma que prisões arbitrárias, tortura, assassinatos e o desaparecimento de cadáveres resultaram de uma política deliberada de Estado e podem ser caracterizada como crime contra a humanidade. Criada por decreto presidencial em 2011, a Comissão da Verdade não tinha poderes para processar, julgar ou condenar ninguém, apenas apurar os fatos.

Fatos que dizem respeito ao direito à memória dos já quase cem milhões de brasileiros nascidos depois de 1985, que têm o direito de entender exatamente o que ocorreu naquele período, de modo a avaliá-lo em todas as suas consequências. Só assim os defensores da volta do regime militar e seus chefes populistas deixarão de relativizar a violação sistemática dos direitos humanos em atos de barbárie praticados por aqueles que deveriam preservar as leis e a justiça. Cidadãos indignados clamando pela volta dos “anos de chumbo” hoje, parte dos quais não viveram naquele tempo, ilustra o que está em jogo na história mal contada da ditadura militar.

Qual a justificativa para não se apurar definitivamente os fatos, localizar os últimos cadáveres, nomear os responsáveis e deixar que a sociedade civil e as instituições do Judiciário decidam sobre o destino a ser dado a tudo isso e, se for o caso, questionem a Lei da Anistia, uma vez que tortura é crime imprescritível?

O memorando revelado pela CIA não causará um terremoto na historiografia, pois, como dito, não se trata exatamente de novidades, mas é uma prova documental valiosa que dificulta a negação dos fatos por seus responsáveis institucionais, no caso, o Estado brasileiro e as Forças Armadas, em particular. Décadas depois, já nem se trata mais de punir individualmente os comandantes responsáveis por tais crimes, pois eles também estão mortos. O que está em jogo é a memória social e a prática institucional.

A primeira diz respeito à maneira como contaremos a história do período militar e, inevitavelmente, os valores que atribuiremos a essa experiência como sociedade. A segunda faz parte das complexidades que constroem o nosso cotidiano como, por exemplo, a existência das Polícias Militares e o fato de possuírem seu próprio judiciário; ou a cultura de não punição para crimes de violência e abuso de poder cometidos por agentes públicos de segurança, que tornam as polícias militares brasileiras uma das mais violentas do mundo.

Brasileiros, precisamos falar sobre o regime militar…

 

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