A Declaração Universal emanou de uma Resolução da Assembleia Geral da ONU. Não tinha, portanto, em 1948, a força de uma lei internacional. Era uma recomendação, ou seja, um convite para que os Estados-membros da ONU observassem o que nela estava previsto. Tecnicamente, não tinha a característica de um comando, mas o da vis directiva de um conselho a ser seguido em função da força persuasiva dos seus enunciados.
No correr dos anos, por obra da prática internacional, ela foi se transformando num instrumento normativo e num documento político de grande envergadura. Neste sentido, cabe lembrar que a sua contínua invocação, de maneira quase unânime, no âmbito dos órgãos principais da ONU, acabou conferindo à Declaração a dimensão de uma interpretação autêntica da Carta da ONU e dos seus dispositivos em matéria de Direitos Humanos. A Corte Internacional de Justiça, no parágrafo 91 da sua sentença de 24 de maio de 1980, proferida no caso do pessoal diplomático e consular norte-americano retido em Teerã, confirmou, no plano judicial, este entendimento doutrinário, lastreado na prática.
Um desdobramento jurídico da contínua invocação da Declaração, que se soma ao do seu alcance como uma interpretação autêntica da Carta da ONU, é o de atribuir a ela a natureza de uma norma costumeira do Direito Internacional Público. Com efeito, a criação de um costume requer a prática – o elemento material – e o reconhecimento de que esta prática é constitutiva de uma norma jurídica, ou seja, não é apenas um uso ou uma cortesia. A contínua invocação da Declaração acabou evoluindo, para uma opinio júris (opinião jurídica) significativa, como “a prova de uma prática geral aceita como sendo o Direito”, para evocar o art. 38 (b) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (1).
Na discussão da Declaração, seja como interpretação da Carta, seja como norma costumeira do Direito Internacional, sempre cabe a pergunta: quão universal é esta interpretação ou este costume e em que medida há, em torno dos seus enunciados, um consentimento sistémico da comunidade internacional. A pergunta cabe, pois na sua origem a Resolução que aprovou a Declaração era uma soft law, fruto de um consenso mais restrito, pois não eram membros da ONU países da Ásia e da África que subsequentemente nela ingressaram como Estados independentes, com a leva da descolonização.
A esta questão a Conferência de Viena de 1993 sobre Direitos Humanos – a segunda conferência sobre temas globais patrocinada pela ONU na década pós-Guerra Fria – deu uma resposta de grande relevância. Da Conferência de Viena participaram delegações de 171 Estados. 813 organizações não governamentais foram acreditadas como observadoras e 2000 organizações não governamentais tiveram atuação no Fórum Paralelo das ONGs. É inequívoca, portanto, a abrangência universal da representatividade que caracterizou a Conferência de Viena.
Nela, foram adotadas consensualmente – portanto, sem votação e sem reservas – em 25 de julho de 1993, uma Declaração e um Programa de Ação. No seu preâmbulo, a Declaração, reafirma “o compromisso com os propósitos e princípios enunciados na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos” e ressalta que
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que constitui um padrão comum de realização para todos os povos e todas as nações, é fonte de inspiração e tem sido a base utilizada pelas Nações Unidas no progresso feito para o estabelecimento das normas contidas nos instrumentos internacionais de direitos humanos existentes, particularmente no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais.
A Declaração de Viena, no seu parágrafo primeiro,
reafirma o compromisso solene de todos os Estados, de promover o respeito universal e a observância de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todos, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, outros instrumentos relacionados aos direitos humanos e o direito internacional.
Aduzindo, “a natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas” (ênfase minha).
O parágrafo quinto da Declaração de Viena assevera: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”. Em poucas palavras, Viena chancela, em 1993, lastreada em abrangente representatividade, a visão exposta por Cassin: a Declaração de 1948 é uma efetiva expressão tanto da ideia reguladora do universal quanto da interdependência dos seus dispositivos, por ele traduzida na imagem do templo dos Direitos Humanos.
Como observou o diplomata brasileiro, especialista na matéria, J. A. Lindgren Alves, a impugnação dos direitos humanos por sua ocidentalidade, no argumento de países afro-asiáticos, deixou de ter curso frequente, inclusive porque a Declaração Universal ajudou a legitimar as lutas pela descolonização e pela erradicação do apartheid (2).
Neste contexto cabe lembrar que a Convenção da Unesco de 2005 sobre a diversidade cultural, que exprime as preocupações mais recentes com o multiculturalismo, que se seguiram à Conferência de Viena de 1993, reitera, no seu Preâmbulo, a relevância da Declaração Universal – reiteração que é pertinente, pois o seu artigo 27 enuncia o direito de todo ser humano de participar da vida cultural da comunidade.
Define a diversidade cultural como “a multiplicidade de formas em que se expressam as culturas de grupos e sociedades” (artigo 4) e apresenta como objetivo “proteger e promover a diversidade de expressões culturais” (artigo 1º, a). Estipula, no entanto, no artigo 2, 1, que só se poderá proteger e promover a diversidade cultural se os direitos humanos e as liberdades fundamentais, como a de expressão, informação e comunicação e a possibilidade de as pessoas escolherem livremente as suas expressões culturais forem garantidas. Aclara, a seguir, que ninguém poderá invocar as disposições da Convenção de modo a infringir os direitos humanos e as liberdades fundamentais proclamadas na Declaração Universal e garantidas pelo Direito Internacional, ou para limitar o seu escopo.
Faço esta referência pois tal Convenção, voltada para a tutela da diversidade cultural num mundo globalizado, por meio do princípio diretivo do artigo 2.1, explicitamente afasta o risco do relativismo cultural, ou seja, não abre espaço para que, em nome da diversidade, sejam reconhecidas práticas culturais questionadoras da universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relacionamento dos Direitos Humanos afirmados em Viena em 1993, na esteira da Declaração Universal de 1948. Neste sentido, a Unesco, que contribuiu para o processo negociador da Declaração Universal de 1948 extraindo, como acima apontado, da diversidade cultural a universalidade dos Direitos Humanos, nesta Convenção de 2005 patrocinou, numa dialética de complementaridade, a diversidade a partir da universalidade.
A Declaração Universal, desde a sua origem, traçou uma política de direito para o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. O preâmbulo da Declaração de Viena reconhece e realça a importância desta política de direito da Declaração Universal, pois, como foi visto, nela se identificam a “fonte de inspiração” e a base utilizada pelas Nações Unidas para o progresso das normas internacionais de direitos humanos.
Esta política do Direito foi sendo efetivamente levada adiante, pois a Declaração Universal teve o mérito de não ser apenas uma reação aos problemas do passado. Projetou valorações fundamentais para modelar o futuro. É por isso, para recorrer à imagem de Cassin, que a comunidade internacional foi além do pórtico e deu andamento à construção do interior do templo dos direitos humanos. Neste sentido, a Declaração Universal é um bem sucedido paradigma daquilo que, depois da Segunda Guerra Mundial e graças ao multilateralismo diplomático, tornou-se usual no processo de criação de normas do Direito Internacional Público: a passagem, no correr do tempo, da soft law de uma Resolução para a hard law dos tratados.
Indico, a seguir, exemplos significativos deste processo que pode ser analisado a partir de duas vertentes: a dos instrumentos de proteção geral e a dos instrumentos de proteção particularizada (3).
Os dois grandes instrumentos de proteção geral são os Pactos aprovados pela Assembleia da ONU em 16/12 de 1966: O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que entraram em vigor, respectivamente, em 23/3/1976 e 3/1/1975. Estes dois Pactos completam a tarefa inicialmente prevista pela Comissão de Direitos Humanos. Tratam, em dois pactos distintos, dos direitos de 1ª geração e dos direitos de 2ª geração, cuja interdependência e indivisibilidade a Declaração Universal de 1948 afirmou e a Declaração de Viena de 1993 reiterou.
O Pacto sobre Direitos Civis e Políticos pode ser qualificado como desdobramento dos artigos 2 a 21 da Declaração Universal; o Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, como desdobramento dos artigos 22 a 27 da Declaração Universal. Cabe lembrar que a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984 é um aprofundamento do art. 5º da Declaração Universal e do art. 7º do Pacto de Direitos Civis e Políticos.
Os instrumentos de proteção particularizada respondem ao que Bobbio qualificou como um impulso de especificação, voltado para proteger o ser humano em situação mais vulnerável. Determinam de maneira mais concreta os destinatários da tutela jurídica dos direitos e garantias (4). Parte significativa destes instrumentos responde à exigência da especificação no plano internacional. Procuram dar conta da relevância de uma tutela internacional para possibilitar o direito a ter direitos em função dos problemas que o sistema internacional evidenciou no período entre as duas guerras mundiais e que persistem na agenda mundial.
É o caso da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, e seu Protocolo de 1966 que evoca o art. 14 da Declaração Universal (a vítima de perseguição tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países). Neste contexto, cabe lembrar o papel do Alto Comissariado da ONU para Refugiados – o Acnur. Criado em 1950 por conta da existência dos displaced people provenientes das turbulências políticas europeias teve, com o tempo, as suas funções e o seu mandato ampliados em razão da persistência, em novos moldes, do problema na agenda internacional. O Acnur é uma das instituições de garantia dos direitos no plano mundial, pois exerce uma função internacional de proteção diplomática e consular da qual carecem os refugiados por falta de um vínculo efetivo com uma ordem jurídica nacional.
Também é o caso da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e da Convenção para a Redução dos casos de Apatridia de 1961. Nelas reverbera o art. 15 da Declaração Universal (todo homem tem direito a uma nacionalidade e ninguém será privado de sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade).
A discriminação, em todas as suas formas e escalas de intensidade, é parte do magma de negatividade em relação aos direitos humanos, que caracterizou a experiência totalitária. Inclui-se entre as “raízes negativas” que levaram às “raízes positivas” da inserção da temática dos direitos humanos no plano internacional. Daí o impulso para a especificação presente em vários instrumentos de proteção particularizada. A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965 é um límpido exemplo da especificação dos princípios genéricos de igualdade e de não discriminação contemplados nos art. 1 e 2 da Declaração Universal. Uma especificação desta especificação é a Convenção Internacional sobre a Eliminação e a Punição do Crime de Apartheid de 1973. A discriminação em relação a gênero, por sua vez, é objeto da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher de 1979.
Existem numerosos instrumentos internacionais referentes à proteção das relações trabalhistas, tema dos art. 23 e 24 da Declaração Universal. Menciono apenas a Convenção para a Proteção dos Direitos de Trabalhadores Migrantes e de Membros de suas Famílias, de 1990, pois o movimento transfronteiras de pessoas cresceu de importância com o processo da globalização e a Convenção, na linha de inspiração da Declaração Universal, está voltada para igualar direitos entre nacionais e estrangeiros.
Para finalizar esta exemplificação do processo da elaboração normativa do Direito Internacional dos Direitos Humanos cabe lembrar que a Declaração Universal foi, como apontado, uma resposta jurídica ao problema do mal ativo e do mal passivo. E por isso que, em consonância com a fonte material que a inspirou, foi assinada, também em 1948, em Paris, e no mesmo contexto, a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.
A Convenção estende a um grupo humano, considerado em seu conjunto, com o rigor de uma tutela penal, o alcance de vários artigos da Declaração Universal: art. 3 (direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal), art. 4 (ninguém será mantido em escravidão ou servidão), art. 5 (ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel ou desumano ou degradante), art. 6 (todo homem tem o direito a ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei). À Convenção de 1948 seguiu-se a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e Crimes de Lesa-Humanidade, de 1968.
A Convenção de 1948 mencionava, no seu artigo 6, levando em conta a experiência do Tribunal de Nuremberg e o de Tóquio no pós-Segunda Guerra Mundial, a possibilidade de as partes-contratantes criarem uma Corte Internacional com jurisdição sobre o crime de genocídio cometido por governantes, funcionários ou particulares. No período da vigência da Guerra Fria, a justicialização na esfera penal não teve condições de prosperar. No mundo pós-Guerra Fria, no entanto, a implosão de sociedades multiétnicas ensejou flagrantes violações de direitos numa escala que comportava analogia com as cometidas durante a Segunda Guerra Mundial.
Esta escala e a sensibilidade em relação aos direitos humanos, que se generalizou com a política do Direito afirmado pela Declaração Universal, foram as fontes materiais de dois Tribunais Internacionais Penais ad hoc, o da ex-Iugoslávia, que data de 1993, e o de Ruanda, que data de 1994 (5).
Estes dois tribunais foram criados com base no Capítulo VII da Carta da ONU, pois o Conselho de Segurança entendeu que as violações maciças dos direitos humanos que estavam ocorrendo na ex-Iugoslávia e em Ruanda, pelos seus efeitos mais abrangentes, representavam uma ameaça à paz e à segurança internacional, e a justicialização penal a ser por eles instaurada seria uma contribuição à restauração das condições de paz. Neste sentido reafirmou-se o vínculo entre a paz no mundo e o reconhecimento dos direitos iguais a todos os membros da família humana asseverado no primeiro considerando da Declaração Universal.
Estes dois tribunais ad hoc são os antecedentes do Tribunal Penal Internacional criado pelo Estatuto de Roma, aprovado em 17/7/1998, que entrou em vigor em 1/7/2002. A criação do Tribunal Penal Internacional superou a seletividade política inerente aos tribunais ad hoc e a sua jurisdição é adicional e complementar à do Estado, ficando, pois, condicionado à incapacidade ou omissão do sistema jurídico interno. Por força do art. 5º do Estatuto de Roma, os crimes de competência do Tribunal são: crime de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra (6).
Como se vê, a construção do interior do templo dos direitos humanos advogada por Cassin teve curso, no correr dos anos, com base na inspiração da vis directiva da Declaração Universal. Cabe, assim, concluir este texto com uma última indagação: qual é a solidez deste edifício?
Notas (1) Cf. CARRILLO SALCEDO, 2004, p. 68-71; BURGENTHAL, SHELTON, STEWART, 2002, p. 39-43. (2) LINDGREN ALVES, J. A. Os Direitos Humanos na pós-modernidade. São Paulo, Perspectiva, 2005, p. 24-25; LINDGREN ALVES, J. A. Os Direitos Humanos como tema global. São Paulo, Perspectiva, 1994, passim. (3) TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. A proteção internacional dos Direitos Humanos. São Paulo, Saraiva, 1991, p. 69; TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Legado da Declaração Universal e o Futuro da Proteção Internacional dos Direitos Humanos. In: AMARAL JR., Alberto do; PERRONE-MOISES, Cláudia (orgs.). O Cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo, Edusp, 1999, p. 18-51. (4) BOBBIO, 2004, p. 78-79. (5) CASESSE, 2003, p. 727. (6) Cf. PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e justiça internacional. São Paulo, Saraiva, 2006, p. 33-51.
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