A Faixa de Gaza não está às portas da fome: já experimenta fome aguda. Sabemos disso não pelos comunicados do ministério da Saúde controlado pelo grupo terrorista Hamas, mas por informações independentes, oriundas do território em ruínas, de médicos, jornalistas e diplomatas.
A nova operação de lançamento de alimentos por aeronaves “não reverterá a fome que se aprofunda”, alerta Philippe Lazzarini, comissário-geral da agência da ONU para os refugiados palestinos (Unrwa). Segundo a agência, 20% das crianças em Gaza encontram-se desnutridas e os casos graves aumentam a cada dia.
No X (ex-Twitter), Lazzarini postou a frase de um colega ainda baseado em Gaza: “As pessoas não estão mortas ou vivas; são cadáveres que andam”. Ele qualifica os lançamentos de alimentos por ar como “caros, ineficientes” e capazes, inclusive de “matar civis famintos”. O chefe da Unrwa poderia ter ido mais longe, explicando que os sacos despejados por aviões não serão, em geral, recuperados por civis mas por homens em armas, do próprio Hamas ou de milícias clânicas que assolam o território sem lei.
Escola da Unrwa em ruínas, em Khan Younis, no sul da Faixa de Gaza, em maio de 2025
Meses atrás, Israel proibiu a Unrwa de seguir atuando em Gaza. No seu lugar, junto com os EUA, criou uma certa Fundação Humanitária de Gaza (GHF), que só mantém quatro centros de distribuição e opera sob supervisão do exército israelense. A ajuda humanitária tornou-se, em aberta violação do direito humanitário, um componente das operações militares.
A tragédia tem um contexto político. Trump aventou, em fevereiro, a ideia delirante de converter o território palestino num resort internacional. Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, e os ministros da ala extremista do governo aplaudiram o presidente dos EUA.
Na sequência, o governo israelense criou um órgão destinado a promover a “transferência voluntária” dos civis de Gaza a algum outro país e anunciou o projeto de relocação compulsória de 600 mil habitantes para uma “cidade humanitária” a ser erguida no sul do território. Uma investigação conduzida pela BBC evidenciou a demolição sistemática de milhares de edificações pelas forças de Israel, o que poderia ser um passo inicial no plano de relocação demográfica.
“Lamento, mas é um campo de concentração. Se os palestinos forem deportados para essa nova ‘cidade humanitária’, pode-se dizer que isso é parte de uma limpeza étnica.” O diagnóstico é de Ehud Olmert, primeiro-ministro israelense entre 2006 e 2009, um político conservador que, nos meses finais de seu governo ofereceu à Autoridade Palestina o mais generoso plano de paz da história da Terra Santa.
Ehud Olmert, à esquerda, com Mahmoud Abbas, da Autoridade Palestina, e Condoleezza Rice, secretária de Estado dos EUA, em fevereiro de 2007, em Jerusalém
Como Ehud Barak, que também chefiou o governo de Israel, Olmert denuncia os crimes de guerra cometidos por seu país no território palestino. A guerra justa transformou-se em guerra bárbara contra o conjunto da população civil. Os crimes em Gaza somam-se às campanha de violência deflagradas na Cisjordânia por colonos israelenses extremistas contra residentes palestinos.
A limpeza étnica “ainda não aconteceu”, afirma Olmert, mas sua sombra paira sobre a região. A deportação interna, para o “campo de concentração”, marcaria o início do crime maior.
A indignação internacional com os atos de Israel atinge um ponto de fervura, inclusive entre os aliados tradicionais do Estado judeu, com a óbvia exceção dos EUA de Trump. Em 21 de julho, uma nota conjunta de 28 países exigiu o encerramento imediato da guerra e repudiou o projeto de confinamento dos palestinos na falsa “cidade humanitária”. O texto contou com as assinaturas de quase todos as nações da União Europeia, do Canadá, do Japão e da Austrália.
Na mesma linha, dois dias mais tarde, Reino Unido, França e Alemanha denunciaram a crise de fome e pediram um cessar-fogo. O presidente francês Emmanuel Macron anunciou que seu país reconhecerá oficialmente o Estado Palestino em setembro. Cerca de um terço dos deputados do Parlamento britânico firmaram uma carta ao governo solicitando o reconhecimento diplomático da Palestina.
Soldados de Israel confiscam uma bandeira palestina erguida por manifestantes em Huwara, na Cisjordânia ocupada, em junho de 2022
“O que ele diz não importa”, rosnou Trump diante do anúncio de Macron. Não é bem assim. São gestos simbólicos, certamente, mas plenos de consequências. A Palestina é reconhecida oficialmente por 144 dos 193 Estados-membros da ONU. Contudo, a ampla lista não inclui nenhuma das grandes potências ocidentais – que, até agora, só aceitariam reconhecer o Estado Palestino na moldura de um acordo de paz com Israel. O fato incontornável é que Israel vai perdendo sua legitimidade histórica: os crimes do governo de Netanyahu ameaçam reduzi-lo à condição de Estado-pária.
Os tradicionais aliados europeus de Israel são pressionados por uma aguda sensação de urgência. Há uma linha que não pode ser ultrapassada: a fronteira da limpeza étnica. Afinal, como ensinou o Holocausto, maior tragédia do século XX, atrás da sombra da limpeza étnica avulta o espectro do genocídio.
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