TUNÍSIA, MORRE A FLOR DA PRIMAVERA ÁRABE

 

Elaine Senise Barbosa

28 de abril de 2025

 

Em dezembro de 2010 um vendedor de frutas na Tunísia ateou fogo ao próprio corpo para protestar contra o abuso policial e a insensibilidade do governo com a vida do povo. Seu ato desencadeou uma onda de revoltas populares contra governos autoritários que se propagou pelo norte da África e Oriente Médio. Essa onda, que se estendeu até 2012, foi chamada de “Primavera Árabe”. 

O resultado do conjunto de revoluções populares que levaram à queda de governos estabelecidos há décadas foi frustrante. Mas na Tunísia foi diferente: ali nasceu uma flor. Houve uma eleição limpa e um presidente que tomou posse e não tentou se transformar em ditador, Moncef Marzouki (2011-2014), assim como o sucessor Samia Abbou (2014-2019). Contudo, eles não foram capazes de encontrar respostas eficazes para melhorar a economia do país e a vida da população e Abbou enfrentou grandes protestos de rua contra a carestia.

Presidente Kais Saied

O presidente Kais Saied dribla a crise sócio-econômica com repressão

Para lidar com a situação tensa, o atual presidente, Kais Saied, eleito pela primeira vez em 2019, resolveu seguir a cartilha dos populistas autoritários em voga. Agora, 40 cidadãos (políticos, empresários, jornalistas, funcionários públicos e defensores de direitos humanos) acabam de ser condenados a penas entre 13 e 66 anos de encarceramento, em julgamentos repletos de vícios, já contestados por observadores internacionais e locais. 

Entre os condenados estão os líderes políticos dos principais partidos de oposição e mesmo o ex-presidente Marzouki, condenado à revelia. O porta-voz do tribunal disse que Marzouki violou as leis sobre incitação à desordem e pediu a derrubada do governo. Ativista de direitos humanos de longa data, Marzouki é um crítico das medidas que Saied tem imposto para consolidar seu poder e que implicam em perdas significativas de direitos conquistados desde 2011.

As autoridades dizem que os réus tentaram desestabilizar o país e derrubar Saied com um suposto golpe em 2021. A avaliação geral de presos e seus advogados de defesa, bem como observadores externos, é que o governo está abertamente perseguindo e calando qualquer forma de opinião crítica e oposição pacífica.  

 

Um roteiro conhecido

O presidente Saied segue o atual roteiro dos governantes com tendências antidemocráticas: ganhar eleições, reprimir a oposição e a imprensa independente, controlar o Legislativo e, principalmente, o Judiciário, com o expurgo dos que resistem. A aparência de normalidade institucional evita pressões externas. Não importa a ideologia: Venezuela, Hungria, Nicarágua ou Tunísia, é esse modelo que se espalha.

Agora um outro vendedor de frutas, Salem Lahmar declara em entrevista à Reuters: “Saied é o primeiro presidente que lutou contra políticos corruptos e empresários influentes, então vamos elegê-lo e renovar nosso apoio a ele”. Já ouviu isso antes?

Em 2021 houve uma alegada tentativa de golpe de Estado que deu ao presidente a chance de perseguir a oposição, dissolver o Parlamento eleito e reformar a Constituição.  Os eleitores aprovaram as mudanças em um referendo com baixa participação dos eleitores. No ano seguinte, Saied dissolveu o Conselho Supremo da Justiça e assinou o Decreto-Lei 2022-35, pelo qual o presidente passa a ter autoridade para demitir juízes sumariamente. Dezenas de juízes foram demitidos. A partir daí, tornou-se mais fácil invocar leis antiterroristas para acusar indivíduos que, pacificamente, expressam sua opinião.

protesto em defesa de 3 jornalistas presos

Protesto em 2024 contra a prisão de três jornalistas acusados de conspiração

“Entre 11 e 25 de fevereiro de 2023, a brigada policial antiterrorismo prendeu os seis opositores políticos identificados com base em acusações falsas sob o Código Penal Tunisiano e a Lei Antiterrorismo de 2015-26, incluindo ‘conspiração contra a segurança do Estado’ e tentativa de ‘alterar a natureza do Estado’, acusações que podem levar à pena de morte,” afirma relatório elaborado pela Anistia Internacional. O presidente afirmou que os juízes que absolvessem os réus seriam seus cúmplices.

Na eleição presidencial de 2024, Saied reelegeu-se com 90,7% dos votos. Vários candidatos tiveram suas candidaturas recusadas pela Alta Autoridade Independente para as Eleições e também foram proibidos de concorrer em qualquer pleito futuro.

No meio do caminho, moralismo para agitar as bases e desviar o foco das arbitrariedades em curso. Membros da comunidade LGBT tornaram-se alvo de perseguições policiais. Nas vésperas da eleição, em setembro, uma campanha online com discursos homofóbicos, transfóbicos e contra ativistas e organizações LGBT levaram dezenas às prisões. O discurso foi apoiado e propagado por veículos de comunicação e seus apresentadores populares. A Anistia Internacional acompanhou esses casos.

 

Surfando na crise migratória

Mapa_Tunisia

Saied tem tirado proveito da crise migratória no Mediterrâneo, assinando acordos de cooperação com a União Europeia e trazendo milhões de euros para o governo, em troca da contenção dos imigrantes africanos que cruzam o Saara em direção à Europa.

Nos últimos anos, a Tunísia tornou-se a principal via de saída para a travessia rumo ao solo europeu, seja pela menor distância de navegação, seja pelos imensos perigos que os imigrantes enfrentam na Líbia. Com o dinheiro recebido, paga-se pela repressão e contém-se os efeitos da crise econômica que afeta o país.  Ao mesmo tempo, Saied apela ao discurso anti-imigrante para mobilizar a base popular e encontrar “culpados” pelas dificuldades econômicas que o país vive há anos.

Ano passado, Saied embarcou na teoria da “Grande Substituição” em versão tunisiana e afirmou que a chegada de milhares de migrantes de países da África Subsaariana era uma “conspiração para mudar a composição demográfica do país”. A União Africana protestou e disse claramente tratar-se de discurso de ódio racial.

Instalou-se uma situação paradoxal: ao mesmo tempo em que recebe financiamento e equipamentos da União Europeia para conter os migrantes indocumentados e impedir-lhes a travessia, o governo da Tunísia ignora as partes dos acordos que implicam em construir centros de recepção e oferecer tratamento digno para aquelas pessoas, enquanto pedidos de vistos e asilos são processados.

Pelo contrário, a lista e o volume denúncias e relatos é grande demais para ser ignorada: roubo ou extorsão do pouco que cada um deles carrega; violência sexual; abandono no deserto próximo à fronteira com a Argélia; trabalho análogo à escravidão; abordagem policial discriminatória. Esse tem sido o resultado da chamada “externalização” da questão migratória adotada pelos europeus.

Mark Rutte, da Holanda, Ursula von der Leyen, da UE, Kais Saied e Giorgia Meloni assinam protocolo de cooperação em 2023

A Comissão Europeia tem sido instada a cobrar explicações do governo tunisiano e cortar os financiamentos, mas não parece haver grande disposição para pressionar o regime tunisiano. A Líbia é uma lição a não ser esquecida. Os presos e perseguidos políticos condenados na Tunísia dificilmente terão a seu favor a mobilização de governos que vêm o governo cada vez mais repressivo de Saied como um útil aliado circunstancial.

 

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