OLHAR  EUGENISTA PARA O AUTISMO (31/3/2025) 

 

Silvano Furtado da Costa Silva (Bacharel em Direito pela USP e diretor executivo da ConsulTEA)

 

O terceiro Global Disability Summit (Cúpula Mundial sobre Deficiências) realiza-se em Berlim (Alemanha), em 2 e 3 de abril, sob o patrocínio da Aliança Internacional sobre Deficiências e dos governos da Alemanha e da Jordânia. Seu objetivo é impulsionar os
esforços de governos, agências multilaterais, setor privado, academia e sociedades civis pela inclusão de pessoas com deficiências.
A cúpula foi precedida por encontros regionais da América Latina e Caribe (Rio de Janeiro, Brasil, 9 a 11 de dezembro de 2024), da Ásia (Bangkok, Tailândia, 14 e 15 de fevereiro de 2025), do mundo árabe (Amã, Jordânia, 13 e 14 de novembro de 2024), da
África (Nairóbi, Quênia, 5 de setembro de 2024) e Europa (Berlim, 6 de dezembro de 2024).
Silvano Furtado participa do encontro em Berlim como ativista brasileiro pela inclusão social de autistas.

GlobalDisabilitySummit

Reunião do segundo fórum do Global Disability

 

De acordo com estimativas do CDC (Centers for Disease Control and Prevention), a prevalência do autismo é de 1 a cada 36 pessoas, o que sugere a existência de cerca de 6 milhões de pessoas autistas no Brasil. No entanto, não são esses números que mais chamam a atenção. Dados do IBGE indicam que a taxa de desemprego entre pessoas autistas ultrapassa os 80%, evidenciando um cenário preocupante de exclusão social e laboral. Além disso, essa população enfrenta outros desafios alarmantes, como altas taxas de evasão escolar e escassez de serviços de saúde adequados às suas necessidades. Tais números demonstram que o que vem sendo feito legislativamente em prol de pessoas autistas é, na realidade, uma escolha pela eugenia.

O autismo é uma deficiência legalmente reconhecida pela Lei nº 12.764/12, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. De acordo com os princípios estabelecidos pela Convenção sobre os Direitos daPessoas com Deficiência, adotada em 2007 em Nova York e incorporada à Constituição Brasileira, a deficiência deixou de ser vista como uma falha ou limitação do indivíduo. Em vez disso, trata-se de diagnosticar as barreiras estruturais e atitudinais que dificultam a participação plena e igualitária dessas pessoas na sociedade.

 

Racismo, eugenia e o lugar do diferente”

A abordagem atual contrasta com o paradigma médico-científico criado no século XIX e dominante nas discussões sobre o autismo e outros comportamentos que não se encaixavam nos padrões de normalidade”, em grande parte do século XX. Baseados em ideias de pureza racial traduzidas como perfeição do corpo humano, o modelo médico viu a deficiência como uma patologia, algo a ser corrigido ou eliminado. 

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Hans Asperger, cerca de 1940

O tratamento do autismo como patologia encontrou ambiente fértil nos discursos de melhoramento racial propostos anteriormente por Francis Galton, um dos pioneiros da eugenia. Essa perspectiva foi fortemente influenciada por Hans Asperger, médico austríaco a serviço do nazismo hitlerista, que deu seu nome ao que ele identificou como uma deficiência específica, com diagnóstico próprio, utilizado para diferenciar autistas com deficiência intelectual daqueles que não a apresentavam.

Uma diferenciação que servia a apenas um propósito: o aprimoramento da raça ariana por meio da eliminação dos diferentes, como o famoso programa de esterilização Ação T-4, que antecedeu e preparou os campos de extermínio. Asperger apoiou programas de eutanásia infantil e enviou muitas crianças consideradas “idiotas” para a clínica Spiegelgrund, em Viena. 

É significativo que o “Transtorno de Asperger” figurasse ainda em edições recentes do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria. 

 

É preciso mudar a perspectiva sobre o autismo

No século XXI, o entendimento que trata o indivíduo autista como doente é ilegal. Mas isso não tem impedido que cheguem às mesas do Congresso Nacional milhares de projetos de lei que, na vida real, reforçam práticas terapêuticas pavlovianas para pessoas autistas. O parlamento se ocupa muito mais com o desejo mercadológico do campo terapêutico comportamental do que com as cifras elevadas de desemprego e evasão escolar.

Terapeutas, donos de clínicas e interessados nesse mercado ocupam espaços em todos os fóruns governamentais. Conselhos de governo com participação da sociedade civil tem cadeiras voltadas à defensores dos direitos das pessoas com deficiência ocupadas por interessados na exploração comercial desse público.

Somente isso explica a insistência em sacralizar métodos eugênicos no tratamento de crianças autistas que aparecem a todo momento, mesmo que esses mesmos métodos tenham sido desaconselhados em metanálises e no Parecer Técnico Científico do Núcleo de Avaliação de Tecnologias em Saúde e Núcleo de Evidências do Hospital Sírio Libanês, feito em parceria com o Conselho Nacional de Justiça(CNJ), o Sistema Unificado de Saúde (SUS) e Ministério da Saúde. Não só desaconselhados, muitas dessas clínicas são acusadas de tortura contra pacientes, e os casos de Transtorno de Estresse Pós-Traumático seguidos dessas longas sessões de terapia são muitos.

E as terapias são realmente longas. Há registros judiciais de pedidos de 120 horas semanais de terapia para crianças autistas, carga horária maior do que qualquer emprego formal. O itinerário pavloviano é litigante e constrange o judiciário com urgências e histórias assustadoras.

 

Cartaz do Latin America Regional Summit

Reconhecer o direito à autodeterminação da pessoa autista

Há quem peça e há quem pague. A pessoa autista é despida do seu direito de autodeterminação, de autonomia. As altas taxas de desemprego indicam que o cliente nessas transações não são os indivíduos autistas, mas sim suas famílias, assustadas e esperançosas com promessas de cura. O autista, nesse negócio, não escolhe, não fala por si, é relegado à posição de tutela eterna.

Essas mesmas famílias são ludibriadas a se somarem aos seus exploradores na tarefa de ocupar os espaços nas mentes dos legisladores para requererem mais e mais horas de terapia comportamental.

Fica demonstrado que o registro constitucional não bastou para incorporar a perspectiva social da deficiência na prática legislativa, e isso não surpreende. O histórico brasileiro não é o dos mais animadores. O país de Barbacena sempre preferiu os manicômios à aceitação da diversidade.

A desassistência quanto às necessidades da pessoa autista e a insistência em privilegiar terapias aparentadas com conversão de gênero, com o único objetivo de eliminação das estereotipias, fazem do indivíduo autista um erro a ser corrigido, ou eliminado. Por enquanto, essa é a escolha que o parlamentar brasileiro tem feito: ignorar sua Constituição em favor de interesses econômicos.

Esse caso é de simples identificação: são barreiras atitudinais da sociedade. São comportamentos, ideias fixas, desinformação que transpira e se introjeta em todos os campos da vida social. A solução compartilha a simplicidade diagnóstica com elementos de difícil resolução. É urgente o reconhecimento geral da titularidade do direito da pessoa autista. 

O autista deve ser o protagonista no debate público sobre aquilo que o afete diretamente, afastando qualquer perspectiva que julgue necessário a eliminação daquilo que o diferencia, mas também o singulariza.

 

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