Não é uma história nova, é só mais um capítulo de uma tragédia humanitária que o mundo ignora. Em abril de 2024 publicamos O Congo dos deslocados para contar da guerra “invisível” que se arrasta há anos no leste da República Democrática do Congo (RDC) e inclui os interesses de Ruanda e Uganda.
Agora, as forças do grupo rebelde M23, combatendo as Forças Armadas congolesas, conseguiram entrar em Goma (28/1), a capital da província de Kivu Norte, situada às margens do Lago Kivu, e avança na direção de Bukavu, a capital de Kivu Sul. Segundo Vivian van Perre, chefe-adjunta da missão de paz da ONU no Congo, a Monusco, cerca de 2.000 corpos foram encontrados nas ruas de Goma em meio à sua conquista pelo M23.
Houve surpresa no dia em que as forças muito bem armadas do M23 tomaram a cidade desencadeando uma nova onda de deslocamento interno, estimado em meio milhão de pessoas fugindo dos embates desde o início de janeiro. Como sempre, mulheres e crianças são as maiores vítimas e o estupro continua sendo usado como arma de guerra contra a população civil.
Os presidentes do Congo-RDC, Félix Tshisekedi, e de Ruanda, Paul Kagame, elevaram o tom das declarações e o congolês chamou o povo às armas, enquanto manifestantes em Kinshasa, a capital do país, atacaram embaixadas de Ruanda, Uganda, França e Bélgica. Os blocos regionais da África Austral (SADC) e Oriental (EAC) chamaram uma reunião na Tanzânia, em busca de mediação e pacificação. Teme-se que a escalada do conflito conduza a uma nova guerra regional muito mais penosa.
Essa história começa com a grande onda de ruandeses fugindo de seu país em 1994, quando pessoas da etnia hutu atacaram, com intenção genocida, pessoas da etnia tutsi, matando quase um milhão de pessoas em três meses.
Esses refugiados eram principalmente hutus, fugindo das consequências da violência que provocaram, e se instalaram nas províncias congolesas de Kivu Sul, Kivu Norte e Ituri, vizinhas à Ruanda e Uganda. Ao cruzarem a fronteira, se depararam com comunidades tutsis, que haviam chegado ao Congo após décadas de repressão em Ruanda. Em meio ao caos e a enormes acampamentos de refugiados que se formaram, grupos invocando autodefesa se armaram e partiram para o ataque contra áreas ocupadas pela etnia inimiga.
Os combates contra milícias hutus e a instabilidade política provocada na região estiveram na origem da Primeira e Segunda Guerra do Congo, responsáveis por seis milhões de mortos, sobretudo de fome e doenças. Teme-se agora uma “Terceira Guerra”, uma vez que as muitas tentativas de paz foram frustradas e os interesses econômicos na região se tornaram globais.
Entre esses grupos, nos últimos anos se destacaram, do lado hutu, as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda (FDLR), que recebe apoio do governo da República Democrática do Congo no combate a grupos rebeldes, realizando ações militares em conjunto, enquanto entre os tutsis, há o M23, que apareceu em 2012 como fusão de outros grupos, com apoio do governo de Ruanda.
FDLR e M23 são “proxies” – na linguagem usada pelos analistas políticos. Eles são a expressão pública de poderes maiores que não desejam (até agora) o enfrentamento direto, descortinando as chamadas “guerras por procuração”. Eles são a face visível dos senhores de Kinshasa e Kigali.
Protesto popular na cidade de Bukavu contra o que é visto como uma agressão ruandesa, no final de janeiro
As províncias de Kivu Norte, Kivu Sul e Ituri compõem uma faixa de terras relativamente pequena, mas que concentra uma riqueza imensa em minérios estratégicos para a economia mundial. Estão ali cerca de 60% das reservas mundiais de coltan, um minério essencial para a fabricação de chips de celulares e baterias elétricas, sem esquecer das grandes reservas de cobalto e ouro, também essenciais. Controlar Goma é estratégico, pois a cidade é um hub do comércio de minérios graças à sua localização à beira do grande lago Kivu.
Naquela pequena área, muito mais próxima da influência do governo de Ruanda, em Kigali, do que do próprio governo congolês, situado em Kinshasa, no oeste do país, instalou-se uma situação curiosa: Ruanda é hoje o maior exportador mundial de coltan, embora praticamente não explore o minério.
Os minérios do Congo-RDC são hoje vitais para as indústrias de alta tecnologia, o que traz à cena as disputas entre China, com sua política agressiva de investimentos no continente africano para garantir o acesso às matérias primas, e EUA, Canadá e União Europeia, que não querem perder o que sempre viram como “seus” fornecedores.
Desde 2024, o M23 controla as minas em Rubaya que, segundo reportagens, têm gerado 800 mil dólares por mês. O governo congolês acusa o governo ruandês de se beneficiar da extração de 150 toneladas de coltan por mês valendo-se das forças do M23. E, considerando o alto nível de investimentos que a China tem feito no Congo para explorar minérios, quem está comprando o que é exportado a partir de Ruanda?
Em novembro de 2022 instalou-se uma crise humanitária e meio milhão de pessoas foram obrigadas a fugir de Goma. Em junho de 2023 o M23 foi denunciado por violações de direitos humanos e os choques armados contra o exército congolês se intensificam no início do ano passado. Em agosto passado foi assinado um cessar-fogo em Luanda, patrocinado por Angola, rompido logo em seguida.
A superexploração dos trabalhadores congoleses; o uso de mão de obra infantil; a presença chinesa agravando esse quadro, tudo isso é sabido há mais de uma década. A economia baseada nos smartphones se tornou cúmplice de violações de direitos humanos no coração da África, mas é melhor não falar disso, é incômodo.
O governo de Ruanda, especialmente seu poderoso presidente, tem negado com veemência estar por trás dos ataques no fim de janeiro, enquanto responsabiliza o governo do Congo por não proteger as fronteiras dos “hutus genocidas”, e os governos do Ocidente pela hipocrisia. “Não estamos interessados em guerra, não estamos interessados em anexação, não estamos interessados em mudança de regime”, disse a porta-voz do governo de Ruanda, segundo reportagem da BBC.
Êxodo em massa da população de Goma diante da ofensiva do M23, no final de janeiro
Mas não é bem assim, fontes diversas comprovaram a presença de 3 a 4 mil homens do exército de Ruanda em solo congolês desde pelo menos 2022. Eles estão dando treinamento para as tropas do M23 e encabeçando algumas ofensivas em território congolês, que estão ocupando e controlando para explorar.
Contudo, em 2022, quando já era claro o papel do vizinho na instabilidade do Congo, a UE fez um acordo militar de ajuda de 20 milhões de euros para que Ruanda dê continuidade às ações no nordeste de Moçambique, onde guerrilhas ligadas ao grupo islâmico Al-Shabaab se espalham. Agora, o Conselho de Segurança da ONU condenou o avanço e a interferência de Ruanda em território congolês. Mas, sem sanções, de que adianta?
E tem Uganda, outra peça importante nessa história, pois o país procura manter sua influência regional e não quer o fortalecimento do ADF (Alliance Democratic Force), milícia aliada ao Al-Shabaab e ao Estado Islâmico que age nas províncias de Kivu Norte e Ituri. Uganda enviou tropas ao Congo em 2021 para combater a ADF, acusada de cometer atentados a bomba no país.
Quem de fato pode fazer a diferença nessa história são os países africanos, especialmente os membros da SADC, que inclui o Congo, mas também a EAC, que abrange também Ruanda. Os vizinhos não estão interessados na escalada do conflito e tem havido um verdadeiro esforço dos governos africanos no sentido de desautorizar movimentos políticos de força que contestam governos reconhecidos como legítimos ou as fronteiras estabelecidas, o que dificulta o reconhecimento internacional de governos estabelecidos por golpes de força.
A SADC tinha enviado tropas (que não são a mesma coisa que a força de paz da ONU, a MONUSCO), para ajudar a conter o conflito, mas na tomada de Goma pelo menos 16 soldados vindos da África do Sul foram mortos pelo M23, levando a declarações ásperas entre Cyril Ramaphosa e, principalmente, Kagame, que acusa o presidente sul-africano de “distorções, ataques deliberados e mentiras”. Para o ruandês, Ramaphosa não é transparente quando envia tropas sob mandato da SADC, mas não da MONUSCO.
Helicóptero da Monusco sobrevoa cidade congolesa à beira do lago Tanganica
Enquanto isso, milhares de pessoas estão deslocadas e a população que permaneceu em Goma sofre com a fome, pois as estradas estão tomadas e os bens não circulam, há escassez de água potável, eletricidade e medicamentos. Entre 28 e 30 de janeiro muita gente morreu e seus corpos demoraram dias para serem retirados das ruas, enquanto outros começara a aparecer boiando no lago Kivu.
Mas reportagens também mostram uma população cansada de tanta guerra e muita gente disposta a aceitar qualquer um que mantenha a ordem a longo prazo. Essa atitude é, enfim, uma crítica ao governo congolês, que de fato não consegue assegurar a ordem na região.
Por fim, é importante frisar a persistência do estupro como arma de guerra nessa parte do continente. Em 27/1, durante o avanço do M23 sobre Goma, pelo menos 165 mulheres foram estupradas em meio à fuga em massa da prisão de Muzenza, fato confirmado por Pramila Patten, representante da ONU sobre violência sexual em conflitos.
Nem a Prêmio Nobel da Paz para o médico ginecologista Denis Mukwege, em 2018, por seu inestimável trabalho junto às mulheres vítimas das Guerras do Congo, ajudou a reduzir o problema. É muito importante que todos os governos se empenhem em combater esse tipo de prática e façam campanhas educativas em tempos de paz que tragam um mínimo de segurança para as mulheres e crianças.
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