Os rebeldes incendiaram a tumba de Hafez Assad, pai e fundador da tirania do deposto Bashar Assad, e os sírios saíram às ruas para celebrar a queda do regime. Foram 13 anos de guerra civil, mas apenas 13 dias da ofensiva surpreendente que selou o desenlace. A Síria ganha uma nova chance: uma oportunidade para a paz, a estabilidade e a convivência.
Um microcosmo do Oriente Médio – eis a descrição adequada da Síria. No país, surgido da desagregação do Império Otomano, vivem árabes muçulmanos (sunitas e alauítas, um ramo da vertente xiita), cristãos e drusos, além de curdos. A chance histórica da Síria depende da tolerância étnica e religiosa.
Rebeldes incendeiam a tumba de Hafez Assad, em Qardaha, na província de Latakia
Justamente por ser um microcosmo do Oriente Médio, a Síria em guerra civil converteu-se no palco de uma guerra regional. A Rússia, o Irã e o Hezbollah sustentaram o regime de Assad, baseado na minoria alauíta. A Turquia patrocinou uma milícia sunita que combatia, ao mesmo tempo, o regime e os curdos.
Mais. Os EUA utilizaram as forças curdas sírias para debelar o Estado Islâmico e ajudaram a sustentar uma zona autônoma curda. Israel operou incessantemente no teatro de guerra, por meio de bombardeios contra bases da Guarda Revolucionária iraniana e do Hezbollah. A chance histórica da Síria depende do fim da ingerência externa.
Final feliz? Muitos duvidam – e tudo pode dar errado, como ocorreu após a queda das ditaduras no Egito, na Líbia e no Iraque. Mas existe a hipótese de final feliz. Nesse caso, a Síria acenderia um holofote de esperança em todo o Oriente Médio.
A ofensiva que culminou com a queda de Damasco foi liderada pelo grupo fundamentalista Hayat Tahrir al-Sham (HTS). Seu fundador e principal dirigente, Abu Mohammed al-Jolani, foi militante do Estado Islâmico (ISIS) no Iraque e, depois de um período de prisão sob custódia das forças dos EUA, retornou à sua Síria natal para criar células do ISIS, sob a cobertura da Frente al-Nusra.
Então, começaram as cisões. Primeiro, em 2013, descontente com os métodos bábaros do “califado islâmico”, Jolani rompeu com o ISIS, jurando lealdade à Al Qaeda. Depois, em 2016, rompeu com a Al Qaeda, fundando o HTS e, aos poucos, moderando sua linguagem e seus gestos.
Desde 2015, o HTS governa a província de Idlib, que permaneceu mais ou menos protegida dos bombardeios de Assad e de seus aliados externos graças à proteção diplomática da Turquia. Em Idlib, Jolani montou uma administração relativamente eficiente, com nítidos traços autoritários mas evitando atos de selvageria repressiva.
Diante do hospital Mustahed, em Damasco, sírios buscam fotos de parentes e amigos mortos pelo regime de Assad
No rastro da queda de Assad, Jolani trocou seu nome de guerra pelo nome civil, Ahmed al-Sharaa, num gesto destinado a projetar a ideia de que almeja a estabilidade da Síria. Na mesma direção, nomeou Mohammed al-Bashir, o primeiro-ministro tecnocrático de Idlib, para chefiar um governo de transição, até o início de março. Contudo, todos os ministros do governo provisório pertencem ao HTS, o que sugere uma tentativa de estabelecer um poder monolítico sobre uma sociedade plural.
A pluralidade síria só pode ser governada monoliticamente por meio de uma ditadura brutal, como a dos Assad. Se o HTS tentar estabelecer-se como poder único, arrastará o país a uma nova guerra civil, produzindo algo como a repetição da tragédia líbia. A alternativa é um governo constitucional, baseado na igualdade de direitos, na liberdade de religião e na distribuição do poder entre as regiões do país.
O governo curdo, na área de autonomia de facto no norte da Síria, deveria servir como fonte de inspiração. Naquela área, os serviços públicos funcionam, há respeito aos direitos humanos e aos direitos das mulheres. Desde a fuga de Assad, Al-Sharaa pronunciou todas as frases certas, garantindo que não promoverá perseguições étnicas ou religiosas, evitará atos de vingança e não interferirá nas escolhas das mulheres sobre sua vestimenta.
O jihadista reformou a si mesmo e a seus combatentes? A resposta virá dos atos, não das palavras. Mas a paz na Síria e a liberdade dos sírios dependem, em larga medida, dessa conversão.
A Síria que emerge da ditadura de Assad encontra-se fragmentada em diferentes zonas de controle militar e, ainda, em enclaves controlados por atores externos. A Guarda Revolucionária iraniana e as forças do Hezbollah partiram, nos dias finais da ofensiva rebelde. Mas a Rússia, a Turquia e os EUA mantêm suas presenças.
A base aérea de Khmeimim, adjacente ao aeroporto de Latakia, foi cedida por Assad aos russos em 2015, servindo como plataforma para os bombardeios catastróficos contra Aleppo e outras cidades controladas pelos rebeldes. Já a base naval de Tartus é muito mais antiga: foi cedida à antiga URSS por Hafez Assad em 1971.
Fonte: Institute for the Study of War (ISW)
A queda do regime coloca um ponto de interrogação sobre o futuro das duas bases russas. Há indícios de que elas podem ser abandonadas em futuro próximo.
A Rússia situa-se no campo dos derrotados pelo fim da ditadura síria. O cenário é bem diverso no caso da Turquia, que ofereceu proteção aos rebeldes de Idlib e montou sua própria milícia síria, o Exército Nacional Sírio (SNA), destinado a combater os curdos do Exército Democrático Sírio (SDA).
Recep Erdogan, o presidente turco, prometeu exterminar as forças curdas na Síria, como parte de sua campanha contra o separatismo curdo na própria Turquia. No rastro da queda de Assad, a aviação turca bombardeou Manbij, na faixa de contato entre as zonas controladas pelas milícias rivais. A guerra particular da Turquia contra os curdos ameaça incendiar o nordeste da Síria.
O SDA recebeu apoio e treinamento dos EUA, como parte da campanha contra o ISIS. Os curdos eliminaram as capacidades combatentes dos jihadistas, que mantêm presença residual em áreas do deserto sírio. Para impedir a reorganização das células jihadistas, os EUA manejam uma base com 900 soldados junto à fronteira com o Iraque.
A sobrevivência da zona autônoma curda depende, basicamente, da manutenção da aliança com os EUA. Ninguém sabe se Donald Trump protegerá os curdos ou, mais uma vez, abrirá caminho às forças turcas e seus aliados sírios.
Há, ainda, Israel. O governo de Benjamin Netanyahu declarou que deseja uma convivência pacífica com a nova Síria, enquanto suas aeronaves promoviam extensos bombardeios e seus blindados avançavam pela antiga faixa desmilitarizada das Colinas de Golã.
Combatente rebelde inspeciona a residência do ex-ditador Bashar Assad
As bombas caíram sobre bases militares semi-abandonadas, depósitos de munições e centros de pesquisa bélica. Uma incursão naval israelense destruiu a obsoleta frota de guerra síria no porto de Latakia. Explicação oficial: prevenir o uso dos ativos militares de Assad contra Israel por forças sírias radicais.
Contudo, as forças remanescentes da Síria não representavam perigo algum para Israel. Os ataques não provocados destinam-se exclusivamente a reafirmar a prerrogativa ilegal israelense de operar com liberdade no território do vizinho. São atos gratuitos que sabotam a possibilidade da convivência pacífica invocada, cinicamente, por Netanyahu.
Pior. O avanço de tropas pela zona desmilitarizada do Golã, e mesmo um pouco além dela, evidenciam a pretensão de ampliar o controle israelense sobre uma área estratégica situada às portas das estradas que conduzem a Damasco.
A estabilidade da nova Síria exige a restauração da soberania territorial do país – isto é, a retirada de bases e forças estrangeiras. Sem isso, serão lançadas as sementes da emergência de milícias extremistas e o futuro governo sírio se verá na obrigação de solicitar o apoio de atores externos. Nessa hipótese, a história dos Assad se repetirá, como renovada tragédia.
A cidade síria de Hama foi palco, em fevereiro de 1982, do maior massacre conduzido por um regime árabe contra sua própria população. Na ocasião, as forças de Hafez Assad sitiaram a cidade e mataram algo entre 10 mil e 20 mil pessoas, derrotando um levante sunita contra o regime.
Os Hassad mataram sem parar. Bashar seguiu os passos do pai. O auge foi atingido depois das manifestações da Primavera Árabe de 2011, ao longo dos 13 anos de guerra civil. Cidades inteiras sofreram bombardeios aéreos promovidos pelo regime e seus aliados russos. As forças do Hezbollah e da Guarda Revolucionária iraniana massacraram rebeldes e civis.
Crimes de guerra tornaram-se rotina. Forças de Assad utilizaram armas químicas em Ghouta (2013), Talmenes (2014) e Sarmin (2015). A guerra síria deixou uma pilha de mais de 100 mil mortos e mais de 6 milhões de refugiados registrados, dos quais 3,1 milhões na Turquia e mais de 700 mil na Alemanha.
Fonte: Acnur, 9/12/24
Os rebeldes triunfantes abriram as celas da tristemente famosa prisão de Saydnaya, nos arredores de Damasco, estabelecida no início da década de 1980. Delas, emergiram centenas de prisioneiros encarcerados por meses, anos ou até décadas. Alguns deles não recordavam nem mesmo seus nomes.
Saydnaya, além de prisão, foi um centro de torturas, um “matadouro humano”, como ficou conhecida entre os sírios. No mortuário de um hospital militar, jornalistas encontraram corpos de antigos prisioneiros com claros sinais de tortura.
O complexo prisional, no alto de uma colina, era circundado por arame farpado, guardado por tropas especiais e protegido por anéis sucessivos de minas antitanque e minas comuns. “A partir daquela porta, você é uma pessoa morta: é onde a tortura começa”, explicou um dos presos políticos libertados.
Os prisioneiros só se comunicavam entre eles aos sussurros, sob o olhar atento dos guardas. “Tudo era banido: só lhe era permitido comer, beber, dormir e morrer”. Todos eram espancados regularmente. “A cada noite, agradecíamos a Deus por ainda estarmos vivos. A cada manhã, rezávamos pedindo a Deus para levar nossas almas, pois assim poderíamos morrer em paz.”
Assad vive em Moscou, provavelmente no conforto de uma vasta mansão. Seu reinado, porém, acabou. A Síria tem uma segunda chance.
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