No primeiro domingo de setembro de 2024, no histórico Palazzo del Cinema em Veneza – local de um dos três mais importantes festivais de cinema mundiais, ao lado de Cannes e Berlim -, uma plateia de quase mil espectadores aplaudiu de pé, por mais de dez minutos, o novo filme do diretor brasileiro Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”. Trata-se da adaptação para as telas do livro homônimo do jornalista Marcelo Rubens Paiva, e que rendeu o prêmio de melhor roteiro ao filme no mesmo festival.
Lançado em 2015, o livro revisita um tema central na vida do escritor: o desaparecimento de seu pai em meio à repressão aos opositores imposta pela ditadura militar. Em 20 de janeiro de 1971, seis homens que se diziam agentes da Aeronáutica, armados de metralhadoras, invadiram a casa do ex-deputado do PTB-RJ Rubens Paiva – cassado logo após o golpe que derrubou o presidente João Goulart em 1964 – e o levaram à força para o quartel do 3º COMAR, localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro. Tinha início um dos mais infames casos de “desaparecidos políticos” ocorridos naquele período.
Na capa de uma das muitas edições do seu primeiro livro, Marcelo, testemunha da História em primeira pessoa.
Rubens Paiva não resistiu às sessões de tortura e morreu horas depois, entretanto, quarenta anos se passaram até sua morte ser finalmente confirmada, sendo que seus restos mortais jamais foram encontrados. A história contada por seu filho Marcelo é centrada na figura de Eunice, sua mãe e esposa de Paiva. Uma vida em busca de esclarecimento dos fatos, ao mesmo tempo em que enfrentou o luto e teve que reconstruir a vida com cinco filhos.
Esta foi a segunda vez em que uma obra autobiográfica de Marcelo Rubens Paiva foi levada para o cinema. Em 1987, sob a direção de Roberto Gervitz, “Feliz Ano Velho” (que é também o nome do livro) foi o filme nacional de maior público nos cinemas naquele ano, ao retratar a geração que cresceu sob a ditadura chegando à vida adulta, enquanto o país transitava para a democracia.
Ainda sem data marcada, o filme deve estrear nas salas de cinema de todo o Brasil ainda este ano. No atual momento em que muitos políticos e parte da sociedade brasileira têm tido menos pudor em se manifestar abertamente, seja nos palanques ou nas redes sociais, para minimizar e até mesmo negar os crimes contra os direitos humanos cometidos pela ditadura militar, filmes como o de Walter Salles são necessários.
Correm, porém, o risco de serem “cancelados” por cyber militantes direitistas, assim como ocorreu com o filme “Marighella”, de Wagner Moura, em 2019. Esses trabalhos e muitos outros atuam como importantes ferramentas de conscientização, educação e sensibilização das pessoas em relação aos temas de Direitos Humanos.
Desde suas origens o cinema serviu como poderoso veículo de crítica às estruturas de poder que perpetuam as violações dos direitos civis, políticos e naturais. Ao provocar reflexões sobre questões sociais e políticas, pode incentivar o público a questionar o status quo e a buscar mudanças, ou a não se deixar cair nas armadilhas dos discursos populistas que se multiplicam pelo planeta.
O magistral “Tempos Modernos” (1936), de Charles Chaplin, tornou-se um clássico exemplo de perseguição estatal promovida contra um diretor que expôs as mazelas da sociedade, ao ser convocado a depor nas torturantes sessões de averiguação ideológica promovidas na era macartista, quase vinte anos depois, sob acusação de ser simpático ao comunismo.
Mas foi em meio a agitada década de 1960 que o “cinema político” ganhou status de gênero específico, assim como já eram o western, os musicais e os filmes de terror. Tanto na forma documental como na ficção, muitas obras foram deliberadamente produzidas com a finalidade de inspirar as pessoas a se envolverem em campanhas, protestos e outras formas de ativismo em defesa de temas diversos na seara dos Direitos Humanos.
“A Batalha de Argel” (1966) de Gillo Pontecorvo incitou os movimentos sindical e estudantil da França a organizar uma forte campanha para que o parlamento aprovasse leis anti-tortura. “Corações e Mentes” (1972), documentário de Peter Davis, premiado em diversos festivais e vencedor do Oscar da categoria, foi, sem dúvida, responsável por engrossar a mobilização contra a Guerra do Vietnã nos EUA. Uma longa lista com outros filmes de grande impacto político e social em suas respectivas épocas poderia ser citada aqui.
Obras mais recentes dessa categoria cinematográfica trouxeram novos temas e abordagens, empenhando-se em dar voz a grupos marginalizados, como minorias étnicas, comunidade LGBT+, refugiados, mulheres e outros que enfrentam discriminação e opressão. Ao apresentar suas histórias, o cinema ajuda a humanizar suas lutas e a combater estereótipos.
“Nomadland” (2020), de Chloé Zhao venceu o Oscar de melhor filme ao misturar ficção com histórias e pessoas reais arruinadas pela crise imobiliária nos EUA, responsável por adensar a população de sem-teto no país. Já o multipremiado “Me Chame pelo seu Nome” (2017), de Luca Guadagnino aparece em todas as listas dos melhores filmes sobre aceitação e superação de preconceitos em relações homoafetivas.
Ao valorizar e celebrar a diversidade cultural, o cinema promove o respeito pelas diferenças e combate estereótipos. Filmes que exploram tradições e culturas diversas do padrão ocidental ampliam a compreensão e a tolerância entre os diferentes. Filmes históricos e documentários preservam a memória de atrocidades passadas, como genocídios, ditaduras e outras formas de opressão. Isso é essencial para garantir que esses eventos não sejam esquecidos. O cinema ajuda a promover a justiça e a reparação para as vítimas.
Em suma, há décadas o cinema é um aliado fundamental na defesa dos Direitos Humanos, ao educar, inspirar e mobilizar pessoas em torno de causas essenciais para a dignidade e a justiça.
Δ
Quem Somos
Declaração Universal
Temas
Contato
Envie um e-mail para contato@declaracao1948.com.br ou através do formulário de contato.
1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos © Todos os direitos reservados 2018
Desenvolvido por Jumps