CINEMA E DIREITOS HUMANOS

CAPA- "Ainda estou aqui"

Silvio Pera

(professor de História, autor de materiais didáticos e paradidáticos)

 

No primeiro domingo de setembro de 2024, no histórico Palazzo del Cinema em Veneza – local de um dos três mais importantes festivais de cinema mundiais, ao lado de Cannes e Berlim -, uma plateia de quase mil espectadores aplaudiu de pé, por mais de dez minutos, o novo filme do diretor brasileiro Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”. Trata-se da adaptação para as telas do livro homônimo do jornalista Marcelo Rubens Paiva, e que rendeu o prêmio de melhor roteiro ao filme no mesmo festival.

Lançado em 2015, o livro revisita um tema central na vida do escritor: o desaparecimento de seu pai em meio à repressão aos opositores imposta pela ditadura militar. Em 20 de janeiro de 1971, seis homens que se diziam agentes da Aeronáutica, armados de metralhadoras, invadiram a casa do ex-deputado do PTB-RJ Rubens Paiva – cassado logo após o golpe que derrubou o presidente João Goulart em 1964 – e o levaram à força para o quartel do 3º COMAR, localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro. Tinha início um dos mais infames casos de “desaparecidos políticos” ocorridos naquele período.

Marcelo R Paiva

Na capa de uma das muitas edições do seu primeiro livro, Marcelo, testemunha da História em primeira pessoa.

Rubens Paiva não resistiu às sessões de tortura e morreu horas depois, entretanto, quarenta anos se passaram até sua morte ser finalmente confirmada, sendo que seus restos mortais jamais foram encontrados. A história contada por seu filho Marcelo é centrada na figura de Eunice, sua mãe e esposa de Paiva. Uma vida em busca de esclarecimento dos fatos, ao mesmo tempo em que enfrentou o luto e teve que reconstruir a vida com cinco filhos.

Esta foi a segunda vez em que uma obra autobiográfica de Marcelo Rubens Paiva foi levada para o cinema. Em 1987, sob a direção de Roberto Gervitz, “Feliz Ano Velho” (que é também o nome do livro) foi o filme nacional de maior público nos cinemas naquele ano, ao retratar a geração que cresceu sob a ditadura chegando à vida adulta, enquanto o país transitava para a democracia.

 

Cinema com causa

Ainda sem data marcada, o filme deve estrear nas salas de cinema de todo o Brasil ainda este ano. No atual momento em que muitos políticos e parte da sociedade brasileira têm tido menos pudor em se manifestar abertamente, seja nos palanques ou nas redes sociais, para minimizar e até mesmo negar os crimes contra os direitos humanos cometidos pela ditadura militar, filmes como o de Walter Salles são necessários.

Correm, porém, o risco de serem “cancelados” por cyber militantes direitistas, assim como ocorreu com o filme “Marighella”, de Wagner Moura, em 2019.  Esses trabalhos e muitos outros atuam como importantes ferramentas de conscientização, educação e sensibilização das pessoas em relação aos temas de Direitos Humanos.

Desde suas origens o cinema serviu como poderoso veículo de crítica às estruturas de poder que perpetuam as violações dos direitos civis, políticos e naturais. Ao provocar reflexões sobre questões sociais e políticas, pode incentivar o público a questionar o status quo e a buscar mudanças, ou a não se deixar cair nas armadilhas dos discursos populistas que se multiplicam pelo planeta.

O magistral “Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin, tornou-se um clássico exemplo de perseguição estatal promovida contra um diretor que expôs as mazelas da sociedade, ao ser convocado a depor nas torturantes sessões de averiguação ideológica promovidas na era macartista, quase vinte anos depois, sob acusação de ser simpático ao comunismo.

Chaplin, Tempos Modernos

Mas foi em meio a agitada década de 1960 que o “cinema político” ganhou status de gênero específico, assim como já eram o western, os musicais e os filmes de terror. Tanto na forma documental como na ficção, muitas obras foram deliberadamente produzidas com a finalidade de inspirar as pessoas a se envolverem em campanhas, protestos e outras formas de ativismo em defesa de temas diversos na seara dos Direitos Humanos.

“A Batalha de Argel” (1966) de Gillo Pontecorvo incitou os movimentos sindical e estudantil da França a organizar uma forte campanha para que o parlamento aprovasse leis anti-tortura. “Corações e Mentes” (1972), documentário de Peter Davis, premiado em diversos festivais e vencedor do Oscar da categoria, foi, sem dúvida, responsável por engrossar a mobilização contra a Guerra do Vietnã nos EUA. Uma longa lista com outros filmes de grande impacto político e social em suas respectivas épocas poderia ser citada aqui.

 

O olhar para temas contemporâneos 

Obras mais recentes dessa categoria cinematográfica trouxeram novos temas e abordagens, empenhando-se em dar voz a grupos marginalizados, como minorias étnicas, comunidade LGBT+, refugiados, mulheres e outros que enfrentam discriminação e opressão. Ao apresentar suas histórias, o cinema ajuda a humanizar suas lutas e a combater estereótipos.

Cartaz do filme "Nomadland"

“Nomadland” (2020), de Chloé Zhao venceu o Oscar de melhor filme ao misturar ficção com histórias e pessoas reais arruinadas pela crise imobiliária nos EUA, responsável por adensar a população de sem-teto no país. Já o multipremiado “Me Chame pelo seu Nome” (2017), de Luca Guadagnino aparece em todas as listas dos melhores filmes sobre aceitação e superação de preconceitos em relações homoafetivas.

Ao valorizar e celebrar a diversidade cultural, o cinema promove o respeito pelas diferenças e combate estereótipos. Filmes que exploram tradições e culturas diversas do padrão ocidental ampliam a compreensão e a tolerância entre os diferentes. Filmes históricos e documentários preservam a memória de atrocidades passadas, como genocídios, ditaduras e outras formas de opressão. Isso é essencial para garantir que esses eventos não sejam esquecidos. O cinema ajuda a promover a justiça e a reparação para as vítimas.

Em suma, há décadas o cinema é um aliado fundamental na defesa dos Direitos Humanos, ao educar, inspirar e mobilizar pessoas em torno de causas essenciais para a dignidade e a justiça.

 

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