8 de julho de 2024
África do Sul, 1994-2024, trinta anos e duas eleições emblemáticas para o partido do Congresso Nacional Africano (CNA), embora por razões opostas. Há três décadas, Nelson Mandela e o CNA foram eleitos para governar a República na primeira eleição livre do país, pondo fim ao odioso regime do apartheid. Agora, trinta anos depois, o CNA perdeu a maioria no Parlamento, após um pleito na qual os eleitores deixaram bem clara a sua insatisfação com os governantes e os rumos do país.
O maior problema da África do Sul é a corrupção, facilitada por um sistema político quase monopolizado por um único partido na esfera federal. A maior parte da população votava automaticamente no CNA, por identificá-lo à luta contra o apartheid. Contudo, aos poucos, começaram a entender que, do mesmo ninho, vinham os vilões que levavam a nação à derrocada. Um deles, em especial: o ex-presidente Jacob Zuma.
A inflexão da realidade sul-africana, somada à frustração das promessas, coincide com a inflexão da popularidade do CNA.
A vitória dos combatentes da liberdade, da igualdade racial e da democracia na África do Sul, em 1994, foi um dos acontecimentos históricos mais marcantes do século XX. A eleição de Mandela foi reverenciada em todo o planeta por seu caráter pacífico, após décadas de violência que obrigaram a elite branca africâner organizada no Partido Nacional a negociar com o CNA.
Sob a liderança de Mandela, o CNA sepultou o apartheid e criou uma Comissão da Verdade e Reconciliação (CRV) capaz de pacificar internamente o país, inaugurando a democracia na África do Sul e conquistando respeito internacional.
O bispo anglicano Desmond Tutu (à esquerda) com Nelson Mandela. O carisma e a atuação irreparável desses homens são lembranças distantes e a África do Sul necessita de novos líderes para escrever o seu futuro
Enquanto o país experimentava, pela primeira vez na sua história, um governo de pessoas negras que haviam sofrido diretamente a discriminação e as injustiças do regime africâner, parte significativa da população branca emigrou, temendo perseguição e deterioração imediata da estabilidade interna. Tais temores eram justificados pelo que ocorria no vizinho Zimbábue, onde Robert Mugabe expulsava os brancos para distribuir terras aos negros.
Por outro lado, muitos apostavam que a nova África do Sul faria florescer uma nação democrática, desenvolvida, socialmente justa e multirracial. Nada disso, de fato, aconteceu.
O sistema político em vigor desde 1994 é a república parlamentarista, e o presidente exerce as funções de chefe de governo e chefe de Estado, ou seja, não existe a figura do primeiro-ministro. O sistema eleitoral é multipartidário e vota-se nos partidos. Na esfera federal, existem 400 cadeiras na Assembleia Nacional, que são distribuídas entre os partidos proporcionalmente aos votos recebidos. Os mandatos são de cinco anos. São esses 400 membros da Assembleia Nacional os responsáveis por escolherem o presidente.
Replica-se o mesmo sistema para as Legislaturas Provinciais, sendo que cada província possui um número de membros proporcional à sua população. As legislaturas elegem o premier de cada província (no Brasil, seria o equivalente ao governador de estado).
O sistema eleitoral garante ao partido majoritário um controle político quase ilimitado do Poder Executivo se ele alcançar 51% nas casas legislativas. No caso do poder federal, todas as eleições, desde 1994 até 2019, resultaram em esmagadoras maiorias do CNA, perpetuando o partido no poder e reduzindo as disputas pela presidência a embates localizados e rivalidades internas dentro do partido hegemônico.
Mas o partido que dirigiu a nação sul-africana à democracia não se renovou. Com o passar do tempo, o CNA transformou-se numa grande máquina burocrática que se alimenta da administração do Estado, sem conseguir inovar, melhorar ou fazer crescer. De forma simplificada, as glórias passadas do CNA converteram-se em corrupção endêmica, favorecimento e ausência de capacidade técnica para governar a nação.
Mandela foi sucedido por Thabo Mbeki, que governou por dois mandatos, de 1999 a 2009. Até a saída de Mbeki, os valores de reconstrução e reconciliação da nação capitanearam o CNA e mantiveram a alta popularidade do partido. A partir de 2009, com o governo de Zuma, que perdurou até 2018, a África do Sul ingressou numa espiral de decadência visível, independente do ângulo que se observe.
Durante o governo Zuma, contratos fraudulentos da Eskom, a estatal de energia, levaram a cortes de eletricidade, exacerbando o desemprego, uma vez que perturbam a produção, impedem o crescimento das empresas e enfraquecem os investimentos. Os apagões diários ocorrem em todo o país, aumentando a insegurança nas cidades e no campo. São especialmente prejudiciais nas regiões urbanas de baixa renda, as townships, onde vive a maioria da população negra, que não vê melhora efetiva em suas vidas, décadas depois do fim do apartheid.
A corrupção enfraqueceu ou sepultou diversas empresas governamentais como Eskom, SABC (telecomunicações), South African Airways (aérea), Transnet (transportes), entre outras, e reduziu a eficiência e qualidade da infraestrutura energética, portuária, ferroviária e rodoviária, motivos de orgulho no país. Zuma deixou o governo com inúmeros casos judiciais e acusações de corrupção pesando contra si.
As eleições de 2019 apontaram para um vetor de baixa na popularidade do CNA, embora ainda com maioria para indicar mais um presidente, Cyril Ramaphosa. Político e empresário com origem no movimento sindical, Ramaphosa recebeu a árdua missão de recuperar um país dilapidado.
A redução gradual do apoio ao CNA pode ser atribuída a todas estas questões graves e não endereçadas corretamente, no momento necessário. Zuma, por exemplo, para se proteger, alimentou disputas internas no partido para enfraquecer seu sucessor. A disputa interna terminou em ruptura: Zuma saiu do CNA para criar o uMkhonto weSizwe (MK), em dezembro de 2023, já com vistas à eleição geral de 2024.
A pandemia amplificou os problemas econômicos e a pobreza, expondo a má administração a que o país está submetido. Os sul-africanos lutam simultaneamente contra vários problemas. A maior vulnerabilidade do país é o desemprego estrutural. A África do Sul enfrenta o desafio do desemprego juvenil, que elimina a perspectiva de futuro para milhões de indivíduos. Estatísticas oficiais indicam uma taxa de desemprego de 45,5% entre os jovens (15-34 anos), em contraste com a média nacional de 32,9%, no primeiro trimestre de 2024.
Nas eleições de 29 de maio de 2024, o CNA finalmente perdeu a maioria absoluta na Assembleia Nacional, ficando com 40,2% dos votos populares. Foi o percentual mais baixo de votos no partido desde 1994, evidenciando uma mudança significativa no apoio em “modo automático” dos eleitores. Em 2024 o partido registrou queda de 17 pontos percentuais em relação ao certame eleitoral anterior.
A perda da maioria forçou o CNA a negociar uma coalizão com partidos de oposição, com o objetivo primordial de manter Cyril Ramaphosa na presidência para um segundo mandato.
Uma opção seria a aliança com o partido radical Combatentes pela Liberdade Econômica (EFF, de Economic Freedom Fighters), de Julius Malema, que incita o ódio racial, propõe a apropriação de terras sem compensação aos proprietários e a nacionalização sumária das mineradoras. Aposta arriscada para o CNA, mas que teria força para sufocar qualquer tentativa de emancipação política por parte de Malema e seus aliados. No fim, o maior partido evitou engajar-se nessa aventura.
O advento do partido de Zuma, o uMkhonto weSizwe (MK), ou Lança da Nação, acabou por embaralhar as cartas nas eleições nacionais e provinciais. O MK terminou em terceiro lugar, mas venceu na província do Kwazulu/Natal, às custas do eleitorado do CNA. O apoio ao CNA no KwaZulu/Natal desabou em comparação com a eleição de 2019. O sucesso do MK deve-se à popularidade de Zuma como um tradicionalista Zulu, sua origem, e ao seu desrespeito intencional pela autoridade estabelecida.
O partido Aliança Democrática (AD), segunda força política do país e dominante no governo da província de Cabo Ocidental e na prefeitura da Cidade do Cabo há décadas, não surpreendeu ao aumentar significativamente sua presença em quase todas as províncias.
Ao longo das últimas décadas, a AD construiu uma base de confiança junto a população do Cabo Ocidental através de medidas eficazes para reduzir o desemprego, com um governo técnico e tolerância zero à corrupção. Mostrando que o bom exemplo vale mais que mil palavras, a AD também descontruiu o mito de ser um partido de brancos, melhorando a qualidade de vida de boa parte da população mais vulnerável da província do Cabo Ocidental.
Com o slogan “O Cabo Ocidental funciona”, conquistou muitos eleitores tradicionais do CNA em todo o país, que perderam as esperanças nos herdeiros dos antigos heróis da liberdade. Assim, além de manter a hegemonia no Cabo Ocidental com votação muito expressiva, teve um resultado consistente na província mais populosa do país, o Gauteng, onde se situam Johannesburg e Pretória.
A grande surpresa foi ter costurado um acordo com o CNA para formar a coalização inesperada entre os dois partidos rivais e viabilizar a manutenção de Ramaphosa na presidência para mais um mandato.
A ascensão da AD e a coalização com o CNA é o fato político mais relevantes na África do Sul desde o fim do apartheid. É cedo para afirmar que o CNA perderá mais espaço para a AD. É possível que a AD influencie positivamente o CNA, mas também não é impossível que o CNA influencie negativamente a AD. Não há dúvida, porém, de que a histórica eleição de 2024 inaugura uma nova etapa na política sul-africana. De certo modo, ressurgiu a esperança para aqueles que, desde 1994, esperam a materialização dos antigos sonhos de liberdade e redução da pobreza.
Δ
Quem Somos
Declaração Universal
Temas
Contato
Envie um e-mail para contato@declaracao1948.com.br ou através do formulário de contato.
1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos © Todos os direitos reservados 2018
Desenvolvido por Jumps