13 de maio de 2024
A Arábia Saudita, país guardião das cidades sagradas de Meca e Medina, ocupa posição estratégica no Oriente Médio, sendo o principal aliado árabe dos Estados Unidos na região. Valendo-se dessa posição, o príncipe Mohammed bin-Salman, herdeiro do trono, tem governado o país com uma política ambivalente, na qual ao mesmo tempo opera-se a modernização em alguns setores da sociedade enquanto reprime-se da maneira mais tirânica qualquer reivindicação por direitos, especialmente quando feitas por mulheres.
As organizações de direitos humanos têm acompanhado a situação com preocupação e denunciam o cometimento de inúmeras irregularidades. Em 2020, contamos a história de Loujain al-Hathloul, presa por defender o direito das mulheres dirigirem desacompanhadas. A ativista foi solta em 2021 graças a uma campanha internacional, mas está proibida de sair do país.
Agora, o jornal britânico The Guardian trouxe à luz a saga das irmãs al-Otaibi, três jovens que usaram as redes sociais para expressar suas frustrações pela falta de liberdade das mulheres sauditas e levantar hashtags feministas. Há anos elas sofrem com a perseguição estatal. Há pouco, um tribunal saudita achou razoável condenar uma delas por terrorismo.
O acesso à educação é o primeiro passo para a emancipação das mulheres
Maryam, Fawzia e Manahel al-Otaibi pertencem a uma geração que cresceu enquanto a monarquia saudita fazia movimentos de modernização e abertura. A efetiva escolarização das crianças, por exemplo, que cresceu aceleradamente a partir dos anos 1990, fez com que, hoje, mais da metade dos estudantes universitários do país sejam mulheres, com muitas oportunidades de viagens ao exterior e intercâmbios.
As irmãs puderam escolher ir ao cinema em sua infância e adolescência, pois tal meio de comunicação foi proibido na Arábia Saudita até o início desse século. Elas aprendiam a andar e a falar enquanto o país realizava sua primeira eleição, em 2005, e se tornaram adultas vendo as mulheres votarem e serem eleitas pela primeira vez para os conselhos municipais, em 2015.
Filhas de pais liberais, desde crianças as três irmãs se rebelavam quando se sentiam inferiorizadas. “Os professores sempre nos castigavam porque nos recusávamos a aceitar a ideia de que um homem é melhor que uma mulher e que devemos ouvir e obedecer”, conta Fawzia, a irmã auto-exilada em Edimburgo.
Em 2016, quando ganhou força a campanha #IAmMyOwnGuardian, contra o sistema de tutela masculina sobre as mulheres, as irmãs al-Otaibi estiveram entre as primeiras a publicar a hashtag. A tutela determina, por exemplo, a necessidade de permissão do marido, pai ou tutor para conduzir automóvel, casar ou viajar.
Maryam, a mais velha, desafiando a versão das autoridades de que a campanha era uma farsa, decidiu fazer as postagens com seu nome verdadeiro e foi presa rapidamente. Poucos dias depois, Fawzia também foi levada para a delegacia para “prestar esclarecimentos”. Enquanto isso, Manahel usava as redes sociais para denunciar as detenções. A história repercutiu internacionalmente e as irmãs foram soltas.
A partir de então, a campanha de intimidação e pressão sobre toda a família, sobretudo pai e mãe, cruzou os limites da força e das leis para silenciá-las. Literalmente. Fawzia conta que “pediram a nossos pais que nos matassem”, a fim de acabar com as causadoras da vergonha à família al-Otaibi.
Em 2019, Fawzia publicou um vídeo onde aparecia dançando em um show em Riad, a capital saudita, vestindo calça jeans e boné de beisebol. O ato rendeu-lhe detenção e multa. No reino fundamentalista, é crime não usar, em locais públicos, a abaya (vestimenta semelhante a um vestido solto que cobre todo o corpo).
Como a maioria dos árabes, os sauditas seguem a vertente sunita do Islã, que é diferente do Irã xiita. Contudo, os regimes saudita e iraniano não se diferenciam muito quando se trata de manipular a religião para oprimir as mulheres e impedi-las de usarem a roupa que quiserem.
Manahel ao fundo, Fawzia de boné, Maryam à direita. “Eles destruíram a minha família por causa de alguns tweets sobre os direitos das mulheres”, diz Fawzia
Por isso, assim que foi liberada pelas autoridades, Fawzia não pensou duas vezes e decidiu sair do país. E só conseguiu partir porque a regra para viagens ao exterior para mulheres desacompanhadas havia acabado de mudar, com permissão concedida (em tese, na prática não é bem assim, no caso de pessoas marcadas politicamente).
Enquanto isso, Manahel, que se tornou instrutora de fitness com muitos seguidores nas redes sociais, continuou a postar seu apoio aos direitos das mulheres e fotos em trajes de ginástica. Em 2022 Fawzia tentou voltar, mas desistiu após receber um telefonema da polícia saudita assim que cruzou a fronteira de carro. No dia seguinte, a jovem soube pelo advogado que Manahel havia sido presa.
Manahel al Otaibi só queria ser uma menina comum
Manahel está presa desde então, sob o pior tratamento. No ano passado, a família ficou quatro meses sem qualquer contato ou notícia da jovem. Quando conseguiram um telefonema, Manahel estava com a perna quebrada, resultado de agressões, e sofrendo humilhações.
Seu caso foi levado a um tribunal comum e depois encaminhado para um tribunal especializado em crimes relacionados ao terrorismo. Ela foi acusada de liderar uma campanha de propaganda para rebelar as jovens contra os princípios religiosos e os costumes e tradições sauditas. Em abril, Manahel foi condenada a 11 anos de prisão.
“Pela primeira vez, odiei o fato de ter nascido mulher no meu país. Um país que destruiu a mim e à minha família, e transformou nossas vidas em um inferno insuportável pelo crime de sermos mulheres que querem o nosso direito à vida. É um sentimento que não consigo nem descrever”, desabafou Fawzia.
Na semana passada, autoridades sauditas confirmaram numa declaração à ONU que Manahel tinha sido condenado por “crimes terroristas”.
A terceira irmã, Maryam, também passou a sofrer perseguições policiais e judiciais. Foi forçada a abandonar o seu emprego e está proibida de deixar o país desde 2022. Embora não esteja presa, existe um mandado de prisão em aberto contra ela. Por isso, está psicologicamente aterrorizada e teme desaparecer a qualquer momento.
A pergunta que cabe a todas as pessoas no mundo é se podemos admitir tamanha distorção de conceitos e fins? Pessoas que expressam ideias não-violentas de crítica ou oposição a um regime podem ser tratadas como terroristas (o que, na prática, torna a presa ou preso desprovido de direitos)? Porque “terrorismo” funciona como palavra mágica que ditaduras (e, às vezes, até democracias) em todo o mundo invocam para cruzar as fronteiras da legalidade. Em 2024, é admissível mulheres serem tratadas como o pior dos inimigos por terem a pretensão de serem donas de suas próprias vidas?
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