18 de março de 2024
Pobre Haiti, país assolado por terremotos devastadores e incapaz de se reerguer como sociedade minimamente funcional. Agora mesmo, uma força de mil policiais quenianos estava prestes a ser enviada ao país para ajudar a conter a crescente onda de violência. Estava…
Depois do assassinato do ex-presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021, na terça-feira passada (12/3) foi a vez do homem indicado para conduzir o governo provisoriamente como primeiro-ministro, Ariel Hènry, renunciar ao cargo. Ele foi obrigado a fazê-lo em meio à crônica guerra de gangues, após uma reunião da Comunidade de Nações do Caribe (Caricom) realizada na Jamaica no dia anterior pedir a sua renúncia.
Ariel Hènry, obrigado a renunciar por não convocar eleições
O argumento era a convocação de eleições, sempre adiadas por Hènry. A promessa de indicação de um conselho provisório de governo e a data para tais eleições ainda não se concretizou. A elite política haitiana não consegue chegar a consensos mínimos.
O impasse deve-se ao fato dos potenciais candidatos ao conselho provisório serem pessoas envolvidas com a justiça. Não por crimes de colarinho branco, um padrão latino-americano, mas por banditismo mesmo: alguns deles são líderes das gangues que estenderam seu controle para amplas áreas do país nos últimos dois anos. Hoje, 80% do território da capital, Porto Príncipe, está sob controle das gangues, incluindo as áreas de Delmas, Cité Soleil, Tabarre, Carrefour e Pétion-Ville.
Assiste-se à captura do combalido Estado haitiano por organizações criminosas que se apoderam das funções públicas, impondo a cobrança de pedágios nas estradas e portos e controlando o direito de ir e vir das pessoas. Algumas delas associaram-se a partidos políticos, tornando-se forças importantes no jogo político. Exigir a renúncia do ilegítimo Hènry foi uma forma de aparecerem como defensores da vontade do povo.
A ONU contabilizou, em 2023, 4.789 pessoas assassinadas, 1.698 feridas e 2.490 sequestradas. Em um ano, entre 2022 e 2023, o número de assassinatos mais que dobrou e aproximadamente 360 mil pessoas foram obrigadas a deixar suas casas para fugir de violência territorial, violência de gênero e ameaças diretas. O aumento expressivo do número de haitianos detidos na fronteira dos EUA nos últimos anos evidencia a crise do Estado haitiano. Na quinta-feira (14/3), o governo da vizinha República Dominicana barrou a entrada de milhares de cidadãos haitianos em busca de refúgio.
Nenhuma das políticas propostas ou apoiadas pela comunidade internacional resultou em solução, apenas em eterna dependência externa. O Haiti ruma para o caos enquanto o Estado derrete.
A Global Iniciative Against Transnational Organized Crime (GI-TOC) publicou um excelente relatório sobre as transformações ocorridas nas gangues do Haiti na última década. Uma de suas primeiras observações é que o cenário mudou completamente. Quem pensa em grupos com algumas dezenas de integrantes, de organização relativamente caótica, centrados na figura do líder violento (num paralelo com o Brasil, seria o personagem Zé Pequeno, do filme Cidade de Deus), já perdeu o bonde.
Há uma nova geração de criminosos que aprendeu com os erros de seus antigos líderes. Hoje, cada gangue conta milhares de componentes, o trabalho é dividido por funções e, a grande novidade, eles aprenderam que melhor que o enfrentamento permanente é a associação para somar forças e ampliar as áreas controladas. São descritos como federações ou “sindicatos”. Alguns deles surgiram associados a partidos, para depois ganharem vida própria. As mais poderosas gangues da atualidade, como a G-9 e a G-Pop, não existiam há uma década. Ao mesmo tempo, quase todos os dias, surgem novos bandos, com processos rigorosos de admissão.
G-9, coletivo de gangues liderado por Jimmy Barbecue, um dos candidatos ao poder no Haiti
O efeito mais importante da expansão das gangues é o fenômeno da territorialização. O relatório esclarece a mudança: “Uma evolução radical, indo de desorganizados atores dependentes de recursos provenientes de patronatos públicos ou privados, para violentos empreendedores hábeis em converter seu poder territorial em competência governamental. Esta mudança foi alimentada pelo acesso sem precedentes das gangues às armas de fogo (de grande calibre) e pela incapacidade do Estado haitiano de conter a sua expansão…”.
As gangues controlam o mercado de bens básicos como água e energia (o óleo que chega pelos portos) e os preços não param de subir. A inflação torna o custo de vida altíssimo e a fome ronda a maioria da população, penalizando mais uma vez as crianças de forma desigual.
Os coletivos de gangues atuam em diferentes atividades, como sequestros, venda de remédios desviados de programas de ajuda humanitária, imposição de pedágios, venda de proteção. Cada subgrupo concentra-se mais em alguma delas. As gangues afirmam seu poder quando obtêm controle territorial, o que depende de armas cada vez mais pesadas, e também causa violentíssimas disputas entre grupos rivais. É esse clima de insegurança permanente que empurra famílias inteiras para longe de suas casas e, quando podem, para fora do país.
As transformações ocorridas nas atuação das gangues e a ousadia com que atuam não podem ser dissociadas do seu entrelaçamento com máfias políticas instaladas nas estruturas de um Estado em frangalhos. De acordo com o relatório da GI-TOC, são líderes políticos que “proporcionam patrocínio e financiamento, contatos dentro das polícias e do sistema judicial, e ligações capazes de traficar armas de alto calibre ou drogas”.
Palácio Nacional, antiga sede de governo, destruído pelo terremoto de 2010 e não recuperado. Imagem emblemática da falência do Estado
O Exército haitiano, um poder associado à longa ditadura dos Duvalier, foi abolido na década de 1990. A ordem pública depende de forças policiais cujos efetivos e armamento são inferiores aos das gangues. Daí que setores da população civil resolveram se organizar localmente para formar grupos armados de autodefesa. A ação coletiva dessas “brigadas” ou “bases” tem sido nomeada Bwa Kale. Confrontos entre membros de gangues e Bwa Kale já deixaram centenas de mortos.
Os grupos vigilantes controlam ruas e bairros e atuam em parceira mais ou menos explícita com a polícia. Utilizam amplamente as redes sociais para a rápida mobilizaçao de seus componentes. Suas armas são porretes, machados, armas comuns e aparecem fazendo a segurança de atividades políticas locais, atividades religiosas ou esportivas. Frequentemente revidam contra ataques das gangues a um bairro ou indivíduos. Nessas batalhas sem lei, registra-se alto índice de violência sexual e de gênero.
Aqueles que se identificam com o movimento Bwa Kale descrevem-se como defensores da ordem e da lei num país sem Estado, e sua forma de atuação característica são os linchamentos. Na capital, foram registrados mais de 600 casos dessa natureza desde abril de 2023. Grafites com as palavras Bwa kale têm sido vistos na entrada de bairros e ruas, copiando a mesma forma de demarcação territorial usada pelas gangues em suas áreas.
E, como era de se esperar, alguns líderes do Bwa Kale começam a se destacar como lideranças políticas. Um exemplo é Jean Ernest Muscadin, um policial que atua no distrito de Miragoâne há dois anos e conta com alto índice de aprovaçao junto à população local, que não se importa com críticas aos métodos de atuação do agente, acusado de violar direitos humanos. Muscadin já aproveitou para prorrogar seu mandato para além do tempo previsto.
Porto Príncipe, capital haitiana
A escalada da violência mobiliza mais uma vez a comunidade internacional, via ONU, para tentar controlar a crise. Contudo, uma ação de intervenção militar no Haiti hoje teria que ser totalmente distinta da que ocorreu entre 2004 e 2017, com as forças da Minustah. Depois do fracasso da Minustah, a população teme interferências da comunidade internacional. Além disso, as gangues prometem confrontar qualquer força estrangeira.
Como agir mediante o novo cenário?
Em 2022 os EUA, a União Europeia e o Canadá adotaram sanções econômicas contra os líderes das gangues e seus negócios. Em outubro do ano passado o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução autorizando a formação de uma Missão Multinacional de Segurança (Multinacional Security Support, MSS) não vinculada à ONU. O governo dos EUA, temendo uma onda avassaladora de emigração, oferece ajuda financeira ao país que assumir a operação.
A principio o Quênia aceitou enviar mil homens para a MSS, com a missão de apoiar a Polícia Nacional Haitiana Contudo, com toda a confusão em torno da renúncia de Hènry, o Judiciário queniano bloqueou o envio dessa força. A última informação é que o Quênia aguardará a realização de eleições no Haiti a fim de enviar forças que operem a favor de um governo com um mínimo de legitimidade. Não há indícios de eleições no horizonte.
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