ACENDE O ALERTA NA ARGENTINA

 

Rafael Pepe Romano

(Bacharel em Direito, graduando em Ciências Sociais/USP e pesquisador de 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos)
11 de dezembro de 2023

 

“Pode o subjugado falar? Pode o oprimido falar? Pode o desiludido falar?”. Lembrei-me dessas perguntas feitas pelo crítico literário Julián Fuks no prólogo de Jamais o fogo nunca, romance da chilena Diamela Eltit, naquele domingo, 19 de novembro, quando o candidato ultraliberal da coalizão La Libertad Avanza, Javier Milei, foi declarado presidente eleito da Argentina, junto com a sua parceira de chapa, Victoria Villarruel.

A nova vice-presidente, o que a faz também presidente do Senado, agita a batalha cultural da extrema-direita argentina, como defensora da ditadura militar (1976-1983). A inclusão de Villarruel na chapa presidencial fez com que a base eleitoral de jovens que seguiam Milei por meio das redes sociais ganhasse a adesão de pessoas mais velhas, identificadas com a direita reacionária.

Surpreendendo a todos, os resultados inverteram o veredito do primeiro turno. O derrotado peronista Sérgio Massa, do grupo Unión por la Patria, ex-ministro da economia de um país quebrado, ficou a uma distância de quase três milhões de votos, algo como 12 pontos percentuais atrás de Milei. O candidato da motosserra “contra tudo e contra todos” irrompeu em um país em crise: socialmente fragilizado, profundamente dividido e sem perspectivas. Jovens, trabalhadores precarizados e aposentados, “gente que o sistema está deixando de fora”, formaram a maioria dos eleitores que selaram a sua vitória. 

 

Fonte: Dirección Nacional Electoral

 

Depois da eleição presidencial mais incerta da história recente da Argentina, no 10 de dezembro, dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o novo presidente assumiu o mandato oficialmente. A data da posse foi escolhida há 40 anos, quando chegou ao fim a ditadura militar e o povo argentino elegeu livremente seu primeiro presidente civil após experimentar um dos regimes de exceção mais violentos do período.

A posse de Milei e Villarruel nessa data emite um triste sinal. O sinal de que os jovens – não por acaso, a base do eleitorado de Milei – estão se desconectando da traumática experiência do período militar. É o que se conclui quando a dupla eleita recebe apoio para a tentativa de promover o revisionismo histórico de um regime responsável, julgado e condenado pelo assassinato e desaparecimento de 30 mil pessoas, incluindo recém-nascidos.

 

40 anos na balança

Em 10 de dezembro de 1983, Raúl Alfonsín, eleito pela União Cívica Radical (UCR), tomou posse como o primeiro presidente civil eleito pelo voto popular, depois de sete anos de governos militares. Muito mais do que uma investidura presidencial, o momento significou a inauguração de um novo pacto político e social. Alfonsín teve consigo o desafio de unir o país levantando a bandeira dos direitos humanos, comprometendo-se a esclarecer a barbárie promovida pelo Estado durante os anos da ditadura, além de abrir os caminhos para que os militares respondessem, no banco dos réus e perante o povo, pelos crimes contra a humanidade cometidos naquele período.

Desde a volta à democracia foram condenados 1.146 militares. Os processos seguem até hoje: tramitam nos tribunais 643 peças, envolvendo 3.640 suspeitos de integrar o corpo da repressão argentina. A partir daquele momento, a Argentina selou o seu compromisso com a democracia, tornando-se referência em matéria de defesa dos direitos humanos nas arenas internacionais.

Os generais argentinos, totalmente desprestigiados, não puderam tutelar a transição, ao contrário do Brasil. A Lei de Anistia brasileira promoveu a conciliação por cima entre as elites civis e militares para evitar processos de transição traumáticos. Aqui, perdemos a chance de educar política e civicamente a sociedade brasileira para o significado de viver na democracia. A emergência do bolsonarismo como convergência real de diferentes segmentos na sociedade brasileira, com forte apelo aos meios militares, demonstrou que o significado da ditadura permanece mal compreendido por grande parcela dos brasileiros.

No caso, há diferenças em relação à Argentina. Pude constatá-las acompanhando o processo eleitoral. Na Argentina, “se rompió la grieta”, ou “abriu-se a fenda”. A expressão se tornou comumente utilizada para falar sobre a atual situação social do país. O país deve os tubos para o FMI; em 2023, a inflação está na casa dos 140% ao ano; mais de 40% da população vive na linha da pobreza, enquanto piora a qualidade dos serviços públicos essenciais como saúde e educação. A sucessão de governos durante o período democrático, peronistas em sua maioria, tão controversos e diferentes entre si, falharam em enfrentar as sucessivas crises que atravessaram o país, ganhando contornos mais graves com o passar dos anos. O resultado é a constatação de que a Argentina está mais desigual e mais pobre.

Fonte: Banco Mundial

A ascensão desse novo personagem da  “nova direita” mundial, é melhor explicada pelo cenário de longa crise do que por um saudosismo do passado autoritário, como visto no Brasil. No dia do triunfo de Milei, fui para a “fenda”, onde muitos portavam a frase da campanha: “É a única solução”.

Era uma festa bastante masculina, em sua maioria composta por homens jovens e de meia idade empenhados em encarnar virilidade. Com rock pesado tocando ao fundo, soltavam rojões, faziam performances pendurados em postes e dançavam sobre bancas de jornal. Exibiam-se para cinegrafistas da imprensa que cobria a comemoração. Mostravam os muques e batiam no peito quando vinha o grito grosso: “viva la libertad, carajo!”.

A motosserra símbolo da campanha também se fazia presente, aos montes. Caixões feitos de papelão anunciavam o enterro da “casta” (política). Insultos misóginos contra a ex-presidente Cristina Kirchner prenunciavam a hipótese (talvez remota) da sua prisão com a chegada do novo governo. Diferentemente do que se viu no Brasil, nenhuma organização coletiva pediu “intervenção militar, já” ou “Forças Armadas, salvem a nação”.

Disseram-me que aquela festa era incomparavelmente maior do que a feita após a vitória da Argentina na Copa do Mundo de 2022, o que não é verdade. Naquele ambiente catártico e delirante, evidenciou-se o surgimento de um fenômeno disruptivo semelhante ao visto no Brasil de 2013 quando, no caldo de manifestações e insatisfação geral, uma direita mais radical e organizada começou a ganhar espaço.

 

Um basta a tudo o que está aí

Milei ascendeu construindo um discurso de indignação e ódio. A fenda aberta pela crise permitiu a ele capturar e traduzir os desejos e angústias das massas: o anseio por uma ruptura profunda, capaz de resgatar a prosperidade de um passado distante. O apelo à polarização é uma característica dos atuais movimentos da direita com credenciais antidemocráticas: a responsabilização das “elites políticas” pelo sofrimento da “maioria”. Na Argentina falam na “casta”, que sintetiza “os políticos que nos roubam”, responsáveis pelo caos econômico e por “dar” direitos às minorias.

Apoiadores do presidente Javier Milei comemorando a sua vitória. Ao fundo, a motosserra, símbolo de promessa para acabar com tudo

Ressentimento coletivo. Foi o que me veio à cabeça quando vi pessoas usando chapéus de bobo da corte, junto a um homem vestido e maquiado como o protagonista de Coringa, o filme de 2019.

No filme, o ator Joaquin Phoenix interpreta um comediante fracassado, Arthur Fleck. Oprimido e renegado pela sociedade, dentro do seu delírio, ele inicia um caminho de ascensão a partir das suas emoções reprimidas: após assassinar três homens em pleno metrô, o revólver a ele apresentado vira um gatilho. Na sua fantasia, a ação arrebenta em um movimento em seu apoio, desdobrando-se numa comoção popular violenta contra a elite da fictícia Gotham City, cuja ausência absoluta de regras somatiza a ruptura social em curso.

Os eleitores  de Milei, vestidos como o protagonista do filme, sinalizam o mesmo desejo de romper com a estrutura, a casta: o peronismo com o seu tipo de trabalhismo sindical que inclui uns e exclui outros; o kirchnerismo; a burocracia corrupta; os políticos que nos roubam… 

 

“Se resolve com tirania”

A vice, Villarruel, era uma figura política pouco conhecida até pouco tempo, mas não para as organizações de direitos humanos e as casernas. Foi ela a responsável por conectar Milei à extrema-direita internacional. Conhecida por sua agenda ultraconservadora, Villarruel reivindica para si a defesa do legado militar e já anunciou a intenção de reverter políticas de memória e reparação. Filha de um tenente-coronel influente, é também sobrinha de Ernesto Guillermo Villarruel, ex-chefe da II Divisão de Inteligência do Regimento de Infantaria do Exército. Ele foi condenado na Justiça por ter feito sua parte dos crimes contra a humanidade durante a ditadura. 

Na Argentina, as Forças Armadas protagonizaram seis golpes de Estado entre 1930 e 1976. Com uma agenda irmã àquela de Jair Bolsonaro no Brasil, Donald Trump nos Estados Unidos e o partido Vox na Espanha, a união entre o presidente e a vice passou pelo acordo de que ela nomearia os ministros da Segurança e da Defesa. Diversas vezes, ao longo da campanha, Victoria acenou para o aumento do orçamento e privilégios militares.  

Com discursos, atos e bandeiras próprias, surgem indícios de um projeto distinto daquele vencedor nas urnas com Milei. A vice, com sua biografia e histórico político, parece ter a intenção de reativar a relevância das Forças Armadas no tabuleiro institucional, indicando uma equipe armada para postos federais estratégicos ocupados por civis desde a democratização. O governo do La Libertad Avanza apresenta debilidades políticas fundamentais. Sem maioria nas duas casas do Congresso Nacional e sem governadores próprios nas províncias, poderia apelar aos militares, as polícias e  setores mais conservadores da sociedade na tentativa de angariar apoio. Algo semelhante às manobras bolsonaristas no Brasil. Mas, presidente e vice, se atritaram na formação do novo ministério.

Milei aponta para uma agenda diferente, porém preocupante. Ele escolheu Rodolfo Barra, militante ativo do Movimento Nacionalista Tacuara, para ocupar o posto de procurador-geral do Tesouro. O Tacuara é um grupo abertamente nazista que atuou na Argentina entre o final dos anos 1950 e início dos 1960, época em que Barra participou de um ataque a uma sinagoga, em 1965.

O novo procurador-geral do Tesouro foi ministro da Justiça durante o governo do peronista neoliberal Carlos Menem (1994-1996). Caiu depois de sua história pregressa vir à tona. Agora, com passado já conhecido, assumirá a chefia de um órgão semelhante à Advocacia Geral da União no Brasil. Sua função será assessorar o Estado nas questões do orçamento público e de controle de legalidade jurídica das ações do Poder Executivo.

As correlações de força podem ter mudado. A coalizão macrista Juntos por el Cambio apresentou Patricia Bullrich como candidata. Bullrich ficou em terceiro lugar no primeiro turno. No segundo, abraçou Milei contra o peronista Massa. O novo presidente também privilegiou indicações à direita mainstream, do real fiador da sua campanha, o ex-presidente Mauricio Macri.

O presidente Javier Milei e sua vice, Victoria Villarruel

Mas a briga de Villarruel também está no discurso. Pouco antes do segundo turno, a nova vice-presidente disse em um programa de TV: “Massa quer assumir um país devastado. E como pensa em resolvê-lo se não com uma tirania?”. Aos exatos 40 anos de convivência democrática, a Argentina terá o desafio de defender e preservar os seus acordos mínimos, sustentadores do pacto civilizatório.

Na pergunta de Julián Fuks sobre se é possível o subjugado, o oprimido e o desiludido falarem, outro é o continente, outro é o tempo, outro é o trauma histórico. Não desponta nenhuma resposta concreta para essas perguntas fundamentais. A conclusão de agora é a de que Milei e Villarruel foram eleitos não por um voto de oposição, mas por aquele dado pela “gente que o sistema está deixando de fora” e contra “tudo o que está aí”, o âmago da tragédia latino-americana.

 

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