No centro de Buenos Aires, uma multidão se juntou na avenida Córdoba para acompanhar a apuração dos votos do primeiro turno da eleição para presidente da Argentina. No início da noite de domingo, 22 de outubro, o eleitorado militante do candidato da extrema-direita, Javier Milei, não parava de ganhar corpo e forma no comitê montado pelo partido Libertad Avanza. E também ganharam voz, gritando: “a casta tem medo!”.
À distância de uma caminhada de 15 minutos está a Casa Rosada, sede do governo argentino. Às 17:30, prestes a fecharem as urnas, a polícia da capital recebeu uma denúncia anônima: uma ameaça de bomba. O perímetro foi isolado pelo esquadrão especializado e logo se descartou o risco de um atentado.
Javier Milei, o candidato da motosserra, “contra tudo e contra todos”, o mais votado nas primárias que antecederam a votação da semana passada, surpreendeu novamente indo para o segundo turno da eleição presidencial, mas em segundo lugar.
Fonte: Dirección Nacional Electoral
O mais votado foi Sergio Massa, o candidato peronista da coalizão Unión por la Patria. Atual ministro da economia de um país quebrado, Massa alcançou quase 2 milhões de votos de vantagem frente a Milei. A coalizão macrista de centro-direita Juntos por el Cambio, com a candidata Patricia Bullrich, terminou em terceiro lugar e se apresenta dividida entre “mudar e defender a pátria do peronismo e do kirchnerismo” e proteger o país de uma ameaça à democracia.
Eu estava em Buenos Aires. A suspeita de um atentado à bomba traduziu a tensa atmosfera que senti naquele dia, reflexo de um longo processo no qual a violência política encontrou terreno fértil.
Há praticamente um ano, em setembro de 2022, a vice-presidente e duas vezes primeira mandatária da Argentina, Cristina Kirchner, sofreu uma tentativa de assassinato. As investigações ainda estão em curso, mas há indícios de que o atentado teve a participação do grupo extremista Revolução Federal, criado em 2015 por um grupo de jovens que se envolveram brevemente na campanha presidencial de Mauricio Macri mas se decepcionaram com seu governo.
O Revolução Federal ganhou visibilidade a partir de protestos chamados de “Marchas das Tochas”. Seus integrantes marcharam algumas vezes pelo centro da capital, conclamando pessoas a “perseguir políticos e jornalistas que foram cúmplices do retorno do kirchnerismo – e acabar com eles”.
Não parou nas tochas. Os manifestantes traziam guilhotinas feitas à mão e cartazes com a frase “Todos presos, mortos ou exilados”. Frente de Todos é a atual coalizão de peronistas e kirchneristas que governa o país. A grafia da palavra “Todos” é a mesma, caso haja dúvidas de quem se trata.
Jonathan Morel, de 23 anos, é fundador do grupo. Ele afirma que não existem apenas jovens entre os seus seguidores, mas trabalhadores precarizados, desempregados e aposentados, “gente que o sistema está expulsando e deixando sem nada”.
Apoiadores chegando ao último ato de campanha de Javier Milei. Ao fundo, a Bandeira de Gadsen, símbolo da extrema-direita nos EUA
Javier Milei é deputado nacional por Buenos Aires e conseguiu capturar melhor do que ninguém a reivindicação genérica por liberdade, gestada durante as duras restrições impostas pela pandemia. Também conseguiu traduzir a repulsa gerada pela profunda crise econômica que abala o país, socialmente fragilizado e sem perspectivas.
Milei articulou promessas simples e fáceis de entender, perfeitas para viralizar em redes e videozinhos de Tik Tok: dolarização para acabar com a inflação de 140% ao ano, vouchers para acabar com a rede pública de ensino e permitir a livre escolha de onde estudar, redução da carga tributária para empreender. Por essa via, o candidato autodeclarado “libertário” capturou um imenso ativo político a partir do descontentamento geral: encarnar o anseio por uma ruptura profunda, capaz de restaurar a prosperidade passada.
Ao mesmo tempo, Milei é um misógino que apela a um tom juvenil e muito masculino para rejeitar os “excessos de progressismo”, como ele chama os direitos em matéria de gênero, a tolerância à diversidade sexual ou ao pluralismo conquistados nesses quase 40 anos de vigência democrática na Argentina.
Apesar da sua face conservadora, o curioso é que Milei não é um representante típico da família tradicional. Com seus cachorros, sua irmã e um relacionamento amoroso recente, o candidato não projeta uma imagem convencional. Ele encarna a masculinidade tóxica de grupos que compõem o submundo das redes, em busca de um ideal de liderança viril e salvadora. Por isso, sua motosserra é um símbolo tão revelador.
Desejos e angústias populares constroem imagens que permitem criar uma identificação massiva – esse parece ser o fenômeno que explica Milei. Sua bandeira anti-pluralista faz parte de um movimento internacional no qual a direita com credenciais antidemocráticas atua para desmantelar os mecanismos clássicos de decisão popular. Foi o caso dos Estados Unidos e foi o caso do Brasil. Os governos de Donald Trump e Jair Bolsonaro foram derrotados nas urnas depois de quatro anos e promoveram ações violentas a fim de contestar a decisão da maioria dos eleitores. As pontas não estão soltas: agora, Milei já ataca o sistema eleitoral argentino que, junto com o do Brasil, é um dos mais transparentes da região.
Javier Milei (à esquerda), o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o ex-candidato chileno José Antonio Kast fazem o gesto de arminha
O deputado federal Eduardo Bolsonaro, um entusiasta de Milei desde o primeiro momento, foi prestigiar o comitê do “hermano” durante a tensa apuração dos votos. No evento, vetado à imprensa internacional, o filho de Jair Bolsonaro obteve repercussão na mídia, que começou a transmitir seu discurso para todo o país.
Enquanto falava da crise argentina, Eduardo aproveitou para introduzir um tema caro à direita populista: o livre acesso e uso de armas de fogo por civis, bandeira que Milei também defende. Diante disso, o canal noticioso C5N interrompeu imediatamente a transmissão. Um de seus jornalistas presentes diagnosticou: “foi por isso que os brasileiros tiraram o seu pai do poder, felizmente”.
O discurso do Bolsonaro filho ajuda a compreender o fenômeno contemporâneo dos movimentos da “nova direita”, articulados em contextos de frustrações derivadas de crises econômicas e sociais sucessivas. Uma característica que pode ser identificada no discurso da ultradireita, típico dos populismos atuais, é a responsabilização das “elites políticas” pelo sofrimento da “maioria”. Agora, na Argentina, “casta” é a expressão que sintetiza os “políticos que nos roubam”, responsáveis pelo caos econômico e por “dar” direitos a minorias. Os tais “progressismos exagerados”…
Foi o estalo que me deu enquanto conversava com Camila, uma mulher trans do interior da província de Córdoba. Ela me contou, durante a festa de rua do comitê de Massa, ter sido hostilizada tempos atrás na sua cidade, quando foi retificar o seu documento nacional de identificação. Só tirou-o porque trata-se de uma garantia legal: na Argentina, a lei de identidade de gênero está em vigor desde 2009 e garante que travestis e transexuais podem escolher seu sexo no registro civil. Concluiu a história dizendo que o interior argentino permanece bastante conservador. Em Córdoba, Milei foi o mais votado.
Milei e o Bolsonaro não são iguais, mas representam uma ameaça real à democracia. Os dois se colocam fora do campo democrático ao associarem universalmente a política à corrupção e, também, ao relativizarem os regimes militares que vigoraram nos seus países. Assim como Bolsonaro, Milei disse haver “uma visão torta da história” sobre a brutal ditadura argentina de 1976 a 1983, que teria cometido muito menos assassinatos políticos do que atestam os registros históricos.
O julgamento dos responsáveis pela tortura e desaparecimento de pessoas que aconteceu logo após aquele período e a política de memória coletiva sobre as violações de direitos humanos, fazem parte da história nacional argentina. O pacto do “Nunca Más”, pode ser um componente importante para explicar, ao menos em parte, o relativo fracasso de Milei no turno inicial. E essa memória mostra, também, ser capaz de influenciar o comportamento das forças políticas.
Caminhei até o comitê do Unión por la Patria. Pessoas comemoravam nas janelas e nas ruas. Antes de Massa falar para os eleitores e simpatizantes que o esperavam entre as avenidas Corrientes e Dorrego, falou Axel Kicillof, governador reeleito da província de Buenos Aires. Ele foi o ministro da economia durante o segundo mandato de Cristina Kirchner (2011-2015).
Enquanto Kicillof centrava o seu discurso no papel do Estado para a inclusão social, aproveitei para conversar com algumas pessoas, a ampla maioria proveniente dos bairros populares do conurbado bonaerense. São pessoas que têm sobrevivido de bicos, sem trabalho formal, submetendo-se a salários de cerca de 6 mil pesos (algo como US$ 7), por jornadas de 8 horas de trabalho, como é o caso do cozinheiro Luís Villalba.
Algumas delas, identificadas com o peronismo, criticaram a maneira como Cristina conduziu o país durante seus oito anos à frente do governo. Todas citaram o fracasso do sucessor, Macri, responsabilizando-o pelo atual endividamento externo da Argentina frente ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que agudizou a crise econômica.
A imprensa chegava para registrar a multidão que se juntava para comemorar o resultado de Sergio Massa no primeiro turno
Constatei que os pobres urbanos têm uma visão bem mais cética a respeito da política partidária e seus atores. Por outro lado, apesar do apoio angariado por Milei entre os setores populares, não há uma visão fechada anti-Estado.
Os eleitores de Massa criticam o funcionamento concreto dos serviços públicos, como as escolas intermitentes com o corte de aulas e os hospitais que não oferecem consultas, e questionam os funcionários públicos e as lideranças políticas. Contudo, enxergam os recursos garantidos pelo Estado como fundamentais para a sua subsistência.
As baterias estavam muito fortes quando os holofotes se acenderam e Massa apareceu para os seus eleitores, agradecendo a todos os argentinos que foram às urnas expressar a sua decisão naquele domingo. Em seguida, empenhou-se em falar sobre o futuro.
Ele sintetizou o projeto nacional de desenvolvimento representado pelas forças aglutinadas na sua candidatura com as palavras “abraço, campo e indústria”: Estado generoso, indutor e promotor do desenvolvimento. Peronismo clássico.
Alguns me perguntaram como me sentia e o que percebia diante daquela festa aliviada, catártica. Disse me lembrar da noite em que Bolsonaro foi rechaçado nas urnas pelo povo brasileiro. Vinha beijo, vinha abraço, como se fosse uma forma de mostrar a importância do que aqui aconteceu em 2022. Por coincidência, depois, veio a música “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso e cantada por Gal Costa, pelas bandas militantes que animavam o ato. No fim, a derrota parcial e provisória de Milei foi mais um triunfo da democracia do que do peronismo.
Ao final, Massa chamou todas as forças democráticas para compor um governo de unidade nacional, caso seja eleito. Mais tarde, quando eu estava no topo de um prédio na avenida Corrientes, observando e filmando a festa peronista, soube que os apoiadores de Milei, no centro, organizaram estouros de rojões em massa, em alusão aos tiros de armas de fogo, gritando o que marcou a campanha: “viva la libertad, carajo!”.
Que os hermanos tenham sorte e coragem diante do que está à frente, porque só a política (democrática!) será capaz de enfrentar os problemas da Argentina e, consequentemente, a motosserra da barbárie.
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