O atual presidente do Senado italiano, Ignazio Benito La Russa, é do partido herdeiro direto do Fascismo, o Irmãos da Itália. Recentemente, ele disse que a Constituição não se opõe ao Fascismo. Mas é o contrário: ela é, justamente, produto da luta antifascista que fundou a República.
Adolph Hitler se tornou chanceler da Alemanha em 1933 e rapidamente buscou se aproximar de Mussolini, que já acumulava uma década de poder. Coube ao Duce postura inicialmente mais distante, provocada pelas ambições nazistas sobre a Áustria, um país muito ligado à Itália pelo catolicismo. Não por acaso, o primeiro encontro entre os dois ditadores ocorreu em Veneza, em junho de 1934, motivado por tensões entre a Igreja Católica e o regime nazista. O clero católico alemão era alvo de uma campanha de difamação junto à opinião pública promovida pelos nazistas e o Vaticano esperava que Mussolini usasse sua suposta influência para cobrar o chanceler alemão. Era parte das responsabilidades decorrentes do Tratado de Latrão. Mussolini, contudo, evitou o assunto durante o encontro.
Após a invasão da Etiópia, contudo, a Itália se isolou internacionalmente, facilitando a aproximação com a também isolada Alemanha. Em outubro de 1936 foi a vez de Mussolini visitar Berlim para assinar o tratado de amizade que posteriormente daria origem ao Eixo. No ano seguinte a Alemanha assinou o pacto anticomunista com o Japão, ao qual a Itália aderiu em novembro. Em março de 1938 os alemães fizeram o anschluss, anexando a Áustria ao Terceiro Reich.
Em setembro, na Conferência de Munique, o Duce teve seu momento de glória no cenário mundial, embora o celebrado “apaziguamento” tenha resultado muito mais do recuo anglo-francês e do sacrifício da Tchecoslováquia, obrigada a aceitar a ocupação dos Sudetos. Mussolini, sempre pragmático, rendeu-se aos fatos: as velhas potências não agiriam para conter Hitler. Os dois líderes interpretaram aquelas ações como sinal da decadência das “raças” anglo-francesa, que não suportariam novos desafios. Esse pensamento norteou o Pacto do Aço, assinado em maio de 1939, para garantir ajuda militar recíproca e imediata em caso de guerra.
Hitler e Mussolini em junho de 1940. Quando eles se achavam os donos do mundo.
A eclosão da Guerra Civil Espanhola, em 1936, e o pedido de ajuda enviado pelo então coronel Francisco Franco à Berlim e Roma resultou no envio de forças ítalo-germânicas para combater os republicanos espanhóis, parcialmente apoiados pela União Soviética.
Os alemães bombardearam o vilarejo basco de Guernica em 26 de abril, mas os italianos despejaram suas bombas sobre Barcelona entre 16 e 18 de março. Mussolini justificou a ação como resposta à reabertura das fronteiras entre França e Espanha, anunciada pelo governo do socialista francês Leon Blum, e por onde entrariam suprimentos soviéticos a serem enviados para as forças da Frente Republicana.
Avião da Aeronáutica Militar (a Força Aérea Italiana). Esse modelo foi usado na Etiópeia e na Espanha
O primeiro raid aconteceu às dez horas da manhã de 16 de março. Depois, em intervalos de três horas, as bombas caíram até a manhã do dia seguinte. Foram lançadas 44 toneladas de bombas sobre a cidade. Com tecnologia de fusível atrasado, os artefatos eram concebidos para atravessarem os telhados antes de explodirem. Na última noite, os bairros da classe trabalhadora foram especialmente destruídos. Os ataques deixaram 1.300 mortos e dois mil feridos. Nenhum alvo militar foi atingido.
Novamente acusações, provas e testemunhos contra os fascistas italianos foram ignorados nos julgamentos do pós-guerra. Os crimes cometidos pelas forças italianas nunca foram punidos e mal são lembrados.
Em 1939, o governo fascista voltou suas forças contra a Albânia, país que vinha recebendo investimentos italianos desde 1925. O objetivo era controlar o acesso ao Mar Adriático e manter uma cabeça de ponte nos Bálcãs. De lá as tropas italianas partiram para a Grécia, em outubro de 1940.
Contra a resistência grega, a brutalidade fascista. A destruição material foi vasta, com uma generalizada política de pilhagem, incluindo alimentos para as forças de ocupação. O custo em vidas humanas foi trágico, com episódios infames como a execução de 11 mil civis. Esses confiscos levaram milhares à morte por inanição, fato condenado pelo papa Pio XII, que responsabilizou diretamente o governo fascista pela tragédia.
Soldados italianos incendeiam casas em uma vila na Croácia
Os britânicos reagiram ocupando as ilhas gregas, em novembro, para cortar as comunicações italianas com a Líbia. A nova situação obrigou Hitler a intervir nos Bálcãs, deflagrando ainda em novembro um plano de ocupação da Grécia continental.
A resistência grega à presença italiana fez com que a Iugoslávia se tornasse alvo do 3º Reich, pois além de assegurar um corredor terrestre para a passagem de suas tropas, também forneceria recursos materiais importantes para a guerra. A invasão começou em 6 de abril de 1941 e o país, internamente dividido entre monarquistas e nacionalistas radicais, foi rapidamente controlado. O território conquistado foi dividido com a Itália, que recebeu o sul da Eslovênia, com Liubliana, Dalmácia, Montenegro e, a partir da Albânia, o Kosovo e parte da Macedônia.
Esta registrado que apenas da província de Liubliana as forças fascistas deportaram mais de 25 mil pessoas ou 7,5% de sua população. Essas pessoas foram levadas para campos de concentração, criados pelos ocupantes fascistas, onde foram registradas altíssimas taxas de mortalidade. O rol de destruições de casas, aldeias e fuzilamentos de civis às centenas alimentou a resistência iugoslava. Mas nenhum sobrevivente iugoslavo recebeu qualquer compensação do Estado italiano depois da guerra. Ao ingressar no bloco comunista, os crimes de guerra e contra a humanidade cometidos na Iugoslávia foram sacrificados no altar da aliança política das potências ocidentais com o governo italiano.
Com a ocupação da França pelo exército alemão, em 1940, e o isolamento britânico no continente, o Grande Conselho Fascista acreditou poder controlar o Egito e o estratégico canal de Suez. O comando das operações foi entregue ao marechal Graziani, que retornou à Líbia para esse fim. Em 9 de setembro, beneficiados pela fraqueza inicial das tropas britânicas, os italianos ocuparam algumas cidades egípcias. A resposta britânica chegou com o verão, a partir de ofensivas em território líbio que neutralizaram os italianos, enquanto Hitler mandava o AfrikaKorps para defender a Tripolitania.
Ao mesmo tempo, a conquista do Chifre da África era fundamental para o controle do Sudão e do Egito. Embora inicialmente os italianos obtivessem alguma vantagem, suas fragilidades eram patentes. Dois terços das tropas de 300 mil homens eram etíopes e faltavam equipamentos adequados (um problema permanente na guerra, que expunha a ineficácia da ordem industrial fascista). Ainda assim, as tropas italianas atacaram o Sudão, em 4 de julho, o Quênia, dia 15, e a Somália britânica, em 3 de agosto. Mas o controle das ilhas gregas pelo Reino Unido dificultou a fixação de uma linha de abastecimento via Mediterrâneo, deixando as tropas italianas na defensiva.
Partisans etíopes com as armas retiradas dos italianos entram em Adis Abeba em maio 1941
No início de 1941 os britânicos voltaram ao Chifre da África. A presença de Hailé Selassié na Inglaterra facilitou a organização de batalhões de voluntários etíopes (Gideon Force) para lutar contra as tropas do Eixo. Após violentos combates, os italianos perderam a Eritréia e Somália (Mogadício caiu em 25 de fevereiro e Adis Abeba, em abril). Em novembro de 1942 as tropas se renderam. Foi o fim do império colonial italiano. Na Etiópia, Selassié foi reconduzido ao trono.
No final de 1941, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill decidiu concentrar os ataques sobre a Líbia. As forças ítalo-germânicas resistiram por mais de um ano sob o comando do general Rommel, cujas tropas alcançaram o Egito mas foram derrotadas na Batalha de El-Alamein, entre outubro e novembro de 1942. Nesse momento, já com a presença dos EUA no conflito, começou o desembarque anglo-americano no norte da África.
As forças do Eixo ainda resistiram na Tunísia até maio de 1943, quando a superioridade de armamentos dos Aliados se impôs e eles capitularam. A retomada do controle sobre o Mediterrâneo, vital para a Inglaterra, abriu caminho para o desembarque anglo-americano na Sicília no mês de julho.
Dia 25 de julho, sentindo a mudança da maré, o Grande Conselho Fascista demitiu Mussolini. O rei Vítor Emanuel III nomeou o marechal fascista Pietro Badoglio para chefiar o novo governo. Sua missão mais importante era negociar secretamente a rendição junto aos Aliados. O acordo assinado foi divulgado em 8 de setembro (Armistício de Cassibile). Mussolini foi declarado criminoso de guerra e Roosevelt emitiu ordens expressas para prendê-lo.
A reviravolta levou o governo alemão a iniciar uma operação para controlar a Itália. Dias depois de ser preso, Mussolini foi resgatado da cadeia por um comando nazista e levado à pequena cidade de Saló. Ali instalou-se a farsa de um governo fascista que, supostamente, resistiria ao avanço anglo-americano.
A República Social Italiana – mais conhecida como República de Saló – existiu de 13 de setembro de 1943 a 25 de abril de 1945. Protegidos pelos alemães, os fascistas mais intransigentes, que guardavam o radicalismo original, voltaram a falar em república, socialismo e ateísmo, além de ética do sacrifício, espírito guerreiro e morrer com honra. Sem punição no fim da guerra, Saló tornou-se referência para os grupos de extrema-direita organizados na Itália nas décadas seguintes.
No tratado de rendição assinado em 1943, uma cláusula específica revogava todas as leis raciais e ordenava a libertação de todos os judeus detidos em um dos 43 campos de concentração espalhados pela Itália. Foi então que começou, de fato, a perseguição aos judeus italianos para enviá-los a Auschwitz. Nas áreas controladas pelos alemães, as comunidades foram dissolvidas em questão de meses. Os nazistas deportaram 8.564 judeus-italianos para os campos de concentração.
As tropas aliadas entraram em Roma em 4 de junho de 1944 e Badoglio foi substituído no comando do governo pelo socialista moderado Ivanoé Bonomi. As forças alemãs e fascistas resistiram até 25 de abril de 1945, quando capitularam. Ao tentar fugir para a Suíça, Mussolini foi capturado pelos partisans e fuzilado em 28 de abril.
Il Duce, Clara Petacci, a última amante, e apoiadores de Mussolini, mortos e justiçados na Piazzale Loreto, em Milão, por membros da resistência italiana.
Encerrada a guerra, os italianos votaram pelo fim da monarquia e pela instauração de uma república parlamentar, proclamada em 18 de junho de 1945. A nova ordem era representada por inúmeros ex-combatentes antifascistas. O Partido Democrata Cristão (DCI) – que liderou todos os governos da Itália na figura do Primeiro-Ministro Alcides de Gasperi, até 1953 – assumiu o compromisso de extraditar os acusados por crimes de guerra.
O acordo de paz, ratificado pelo Parlamento italiano em 1947, estabelecia em seu Artigo 45:
1. A Itália tomará todas as medidas necessárias para assegurar a apreensão e entrega para julgamento de:
(a) Pessoas acusadas de terem cometido, ordenado ou de serem cúmplices em crimes de guerra e crimes contra a paz ou a humanidade; (b) Nacionais de qualquer Potência Aliada ou Associada acusados de ter violado sua lei nacional por traição ou colaboração com o inimigo durante a guerra.
Diversas comissões de inquérito foram realizadas e listas de acusados foram elaboradas, enquanto os italianos continuavam a reverenciar seus militares como heróis. Documentos orientaram funcionários a falsificarem provas contra agentes públicos destacados. O historiador Filippo Focardi encontrou esses documentos, emitidos pelo Ministério das Relações Exteriores italiano, além de telegramas diplomáticos, e contou ao The Guardian como a mentira foi construída.
Nos últimos meses da guerra, quando as atenções se voltavam para a construção de uma nova ordem europeia, Roosevelt enviou um telegrama para Churchill: “O problema do crime de guerra pode ser retomado mais tarde, e acredito que todas as demandas das Nações Aliadas que não são essenciais para o presente devem ser adiadas com o objetivo de tirar a Itália da guerra o mais cedo possível”.
De fato, dos objetivos declarados nos primeiros acordos, passando pelo acordo ratificado em 1947, o que aconteceu realmente com as centenas de processos com acusações de crimes de guerra foi, primeiro, a embromação burocrática e, depois, a anistia geral, assinada por ninguém menos que Palmiro Togliatti, o histórico líder do Partido Comunista Italiano e ministro da Justiça em 1945. A Itália simplesmente não julgou ninguém.
E mais, em sinal de boa-vontade, gradualmente EUA, Reino Unido e Grécia abriram mão de pedir qualquer tipo de justiça ou reparação aos italianos. A Iugoslávia – onde foi registrado o maior número de crimes de guerra cometidos pelos italianos e mais de setecentos homens foram indiciados – ficou sem força política para cobrar punições depois da ruptura entre Josip Broz Tito, o líder comunista iugoslavo, e Stalin, em 1947.
Por fim, o novo governo da Itália ganhou o direito de apresentar denúncias no Tribunal da ONU na condição de vítima! E o fez.
Assinatura do Tratado de Roma, em 1957, criou a Comunidade Econômica Europeia, precursora da União Europeia. A Itália, que já estava na OTAN, apagou o passado fascista soldando-se à Europa Ocidental.
Como na França pós-Vichy, a historiografia oficial italiana jogou luz sobre os partisans ou partigianos – os combatentes clandestinos- e sombra sobre os responsáveis pelos crimes fascistas. Mussolini, justiçado pelo povo, recebeu toda a carga negativa, enquanto os demais foram tratados de maneira benévola. Mas essa artimanha só pode funcionar, porque a nova República italiana esteve muito empenhada em reconstruir os laços com os Aliados e se reposicionar no cenário internacional. E muito importante, o empenho do Vaticano, em termos de influência diplomática, para que esse passado fosse esquecido junto com as ambiguidades da Igreja e seu clero.
As instituições de memória narram essa “história dos vencedores”, demonstrando que a sociedade italiana ainda não fez uma revisão crítica do passado fascista. Predomina o silêncio sobre uma ideologia que incentivava exércitos a cometerem crimes de guerra e crimes contra a humanidade em série. Exemplo: apenas em 1996 o governo italiano admitiu ter usado gás tóxico na invasão da Etiópia.
Pelo contrário, no pós-guerra a elite buscou minimizar a violência colonial para embarcar no mito da “missão civilizadora”, destacando o papel construtor de infra-estruturas, escolas e hospitais. Os italianos passaram a se descrever como cúmplices relutantes, igualmente ameaçados pela violência do regime e seus camisas-pretas. Em todas as cidades, placas exaltam a memória dos partigiani. É o oposto do processo de “desnazificação” realizado pelo Estado alemão.
A amnésia sobre os crimes de guerra cometidos pelo regime italiano representa talvez o maior erro cometido pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial. Primeiro, porque a leniência na aplicação das leis de guerra enfraqueceu a proposição de justiça feita pelos Estados Unidos; segundo, porque ignorou as vítimas dos italianos – especialmente etíopes e iugoslavos – que ficaram sem justiça penal, nem reparações; terceiro, porque ao abrir mão das investigações envolvendo os italianos e conceder anistia de fato a criminosos de guerra já indiciados, as potências vencedoras pavimentaram o caminho para a anistia generalizada promovida pelo governo da novíssima República da Itália.
Agora, setenta anos depois, esse passado insepulto ameaça retornar.
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