OS PROCESSOS DE MANÁGUA

 

Demétrio Magnoli

7 de fevereiro de 2022

 

Os Processos de Moscou, a vasta farsa judicial stalinista de 1936-38, concluíram a degeneração da Revolução Russa em ditadura totalitária. Daniel Ortega, o tirano nicaraguense, repete o percurso, na escala menor da política centro-americana, com os Processos de Manágua. A sentença de 15 anos de prisão aplicada a Dora María Téllez em 4 de fevereiro sintetiza a tragédia.

Dora María Téllez (à esquerda), na Frente Norte da guerrilha sandinista, em 1979

Téllez entrou na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) nos seus tempos de estudante universitária e, diante da repressão da ditadura de Anastasio Somoza Debayle, passou à clandestinidade ao 21 anos, em 1976. Dois anos mais tarde, participou da pequena unidade guerrilheira que tomou o Palácio Nacional durante uma sessão parlamentar e obteve, em troca das vidas dos congressistas, a libertação de vários líderes sandinistas presos.

Depois, fez treinamento militar no Panamá e em Cuba, retornou à Nicarágua como comandante e envolveu-se em inúmeros combates armados. Atuou na Frente Sul, sob o comando de Éden Pastora, e depois na Frente Norte. Em junho de 1979, liderou a coluna sandinista que capturou a cidade de León, duas semanas antes da queda de Manágua. Sua condenação pelo regime de Ortega comprova, uma vez mais, a regra de que a revolução engole os mais destacados revolucionários.

Da guerrilha ao governo sandinista: entre 1979 e 1990, sob a primeira presidência de Ortega, Téllez chefiou o Ministério da Saúde e exerceu pressão pelos direitos das mulheres e da comunidade LGBT. Mas, após a derrota eleitoral da FSLN em 1990, ela rompeu com um partido que considerava irremediavelmente corrompido. Daí, com a mesma convicção dos anos da guerrilha, ergueu sua voz contra o antigo líder.

 

Renovação impossível

O Movimento de Renovação Sandinista (MRS) nasceu em 1995, sob a direção de antigas lideranças rompidas com a FSLN como Sergio Ramírez, Ernesto Cardenal e Dora Téllez. Ortega reconquistou a presidência por meio das eleições de 2006 e, pouco a pouco, seguindo o manual do chavismo venezuelano, destruiu a frágil democracia nicaraguense. Logo, o órgão eleitoral controlado pelo regime impugnou o registro legal do MRS, enquanto intensificava-se a repressão policial contra opositores de todos os matizes ideológicos.

Dora María Téllez em 2019, em entrevista ao jornal nicaraguense La Prensa

O ponto de ruptura chegou em 2018, com a onda de manifestações estudantis e populares contra o regime, que foi contida à custa de sangrenta repressão. Em junho de 2021, Téllez foi encarcerada, numa sequência de prisões que atingiu diversas lideranças oposicionistas, inclusive os principais desafiantes de Ortega nas eleições presidenciais. Uma das detidas, Cristiana Chamorro, despontava como candidata capaz de derrotar o ditador.

Téllez foi presa com base na chamada Lei de Soberania, uma das quatro leis de exceção criadas pela ditadura em 2020. A lei autoriza a detenção imediata de “traidores da pátria”, ou seja, de indivíduos cujas palavras sejam interpretadas pelo regime como crimes contra a segurança nacional. Na mesma operação, foram encarcerados todos os mais destacados integrantes da União Democrática Renovadora (Unamos), o partido que tomou o lugar do MRS: Ana Margarita Vijil, Suyen Barahona, Víctor Hugo Tinoco e Hugo Torres.

Hugo Torres, general da reserva, um dos mais antigos sandinistas, liderou um comando guerrilheiro que, em 1974, tomou a residência de um ministro de Somoza, forçando a libertação de um grupo de líderes da FSLN. Entre os libertados estava Ortega. Num vídeo gravado pouco antes de sua detenção, Torres declarou: “46 anos atrás eu arrisquei minha vida para libertar Daniel Ortega e outros prisioneiros políticos, mas é assim que a vida segue: aqueles que, antes, sustentaram elevados princípios, agora os traíram”.   

 

El Chipote, à beira da laguna

Os prisioneiros políticos foram enviados ao centro carcerário de El Chipote, cuja história de torturas forma uma linha macabra que conecta a ditadura de Somoza à de Ortega.

A prisão foi construída em 1931, ao lado do palácio presidencial de José María Moncada, à beira da laguna de Tiscapa. Meses depois, os edifícios foram danificados por um grande terremoto que destruiu Manágua. Em 1934, Anastasio Somoza García, patriarca de uma linhagem de ditadores ergueu ali La Curva, a residência do chefe da Guarda Nacional, e reconstruiu o palácio presidencial. Sob o palácio, cavaram-se sótãos dedicados à tortura de presos políticos.

Durante a ditadura somozista, passaram por El Chipote diversos sandinistas, inclusive Ortega. Sob a atual ditadura sandinista, o fundador do jornal La Prensa, Pedro Joaquín Chamorro, o ex-deputado Agustín Anaya, antigo aliado do presidente, além dos ex-presidentes Arnoldo Alemán (1997-2002) e Enrique Bolaños (2001-2007). Hoje, o complexo é local de suplício de líderes estudantis e opositores ex-sandinistas.

Fonte: La Prensa

A família de Téllez denuncia frequentes sessões de maus tratos, enquanto a de Vijil informou que a advogada de direitos humanos sofreu ataques de um guarda carcerário embriagado. Ortega só se distingue pelo nome de seus predecessores do clã dos Somoza.

Os Processos de Manágua não ocorrem num tribunal regular, mas nas instalações judiciárias de El Chipote. Os julgamentos sumários envolvem mais de 40 opositores, qualificados pelo regime como “delinquentes e criminosos”. Os juízes são amigos do ditador e o chefe de polícia, seu consogro. A família de Téllez foi proibida de acompanhar a sessão de julgamento.

A ditadura de Ortega não está só. Cuba e a Venezuela, obviamente, oferecem-lhe apoio diplomático. Mais chocante é o apoio explícito de uma parcela irredimível da esquerda latino-americana que, no Brasil, inclui o PT. Lula, candidato favorito às eleições presidenciais brasileiras, ainda não consegue pronunciar uma frase de denúncia contra o tirano nicaraguense. Até quando?

 

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