CÂMERAS CORPORAIS SÃO O PROBLEMA?

 

Rafael Pepe Romano 

(Bacharel em Direito, graduando em Ciências Sociais/USP e pesquisador de 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos)
7 de novembro de 2022

 

“Não vejo com bons olhos… e digo isso a partir de uma experiência pessoal: o único pré-candidato que já esteve com um fuzil na mão, trocando tiro, sou eu… minha bronca com ela é que, além de tudo, inibe a ação policial”. Tarcísio de Freitas, governador eleito de São Paulo, ainda era candidato quando, numa entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, foi questionado sobre o uso de câmeras nos uniformes policiais. Ele é capitão do exército na reserva, assim como o ainda presidente Jair Bolsonaro. Seu ex-chefe indicou-o ao governo do estado mais estratégico do país para ancorar a nova direita bolsonarista, conhecida por suas credenciais antidemocráticas e elogios a torturadores da ditadura militar. 

Bolsonaro armado

O presidente Jair Bolsonaro, que sempre deixou claro gostar mais de atirar do que de governar

A segurança pública é condição para o desenvolvimento das pessoas e da sociedade. No Brasil, desde a redemocratização, o tema retorna a cada eleição com grande potencial de mobilização eleitoral (desde Paulo Maluf e a Rota), mas pouca disposição real de enfrentar os problemas.

Somos o país com a segunda maior taxa de homicídios da América do Sul. Essa realidade contribui para a exploração do discurso do medo e a legitimação de múltiplas formas de violência arbitrária. Neste contexto inscreve-se o crônico problema da pobreza e da miséria, que afastam a paz social e acentuam o processo de deseducação política, levando ao desmantelamento da cultura de direitos humanos. 

Durante a campanha eleitoral, Tarcísio manifestou sua intenção de banir as câmeras corporais adotadas pela Polícia Militar paulista, embora tenha aparentemente recuado, depois da forte reação contrária à proposta. No segundo turno, deixou ventilar a notícia de que pretendia seguir o modelo adotado no Rio de Janeiro, no governo do impedido ex-governador Wilson Witzel e seguido pelo vice e sucessor Cláudio Castro. Sua proposta é extinguir a Secretaria da Segurança Pública, conferindo ao comandante-geral da Polícia Militar e ao delegado-geral de Polícia Civil o estatuto de secretários de estado. Significaria anular a mediação institucional, enfraquecendo a racionalização do uso da força.

O modelo está sujo de sangue. O governo de Castro, reeleito governador do Rio de Janeiro, outro aliado de Bolsonaro, acumula três das cinco operações policiais mais letais da história do estado. De acordo com levantamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense, Castro teve, em média, 4,5 mortos por chacina sob sua gestão, enquanto Witzel registrou 3,7 mortos. Esses números sombrios são motivo de exaltação em diversos perfis bolsonaristas nas redes sociais. A negação da Justiça e o endosso ao justiçamento é uma das manifestações do desprezo às regras civilizatórias basilares que pressupõem a ordem democrática.

Mas, voltemos a São Paulo.

 

Do Massacre do Carandiru à Chacina de Osasco

O histórico das últimas décadas no controle da letalidade pela Polícia Militar de São Paulo é caracterizado por avanços e retrocessos. Marcou época o horror do Massacre do Carandiru, de 1992, quando o governador Luiz Fleury autorizou a entrada da Tropa de Choque no Pavilhão 9 da penitenciária, numa operação que deixou 111 mortos, a grande maioria com sinais de execução. Os mortos no Carandiru foram apenas parte da soma de 1.470 civis vitimados por policiais em serviço durante a gestão Fleury. Por isso, o governo seguinte, de Mario Covas (1995-2001), cuidou de adotar importantes medidas de combate à violência policial.

Porém, com  o tempo, os controles foram sendo relaxados e a letalidade policial voltou a subir, até que em agosto de 2015, em resposta à morte de um colega de farda, dois policiais e dois civis executaram 23 pessoas nos municípios de Osasco e Barueri, que integram a Grande São Paulo. O caso teve repercussão internacional e os assassinos foram presos, julgados e – novidade! – condenados. 

 

Mortos no Carandiru

Alguns dos detentos do Carandiru mortos pela Tropa de Choque no massacre de 1992

Ativistas da área da Justiça e dos Direitos Humanos, bem como a pressão da sociedade civil em prol de um país digno, moveram adiante os debates sobre a violência policial que não cessa de crescer. O tema das câmeras corporais é elemento relevante nessa discussão, que não se circunscreve ao Brasil. 

Uma importante revista acadêmica dos EUA chamada Criminal Justice and Behavior publicou, em 2016, o estudo “Contagious Accoutability: A Global Multisite Randomized Controlled Trial on the Effect of Police Body-Worn Cameras on Citizens’ Complaints Against the Police” no qual utilizou um método randômico em dez departamentos de polícia nos EUA, durante 4.262 turnos de serviço. O resultado mostrou que as acusações de abuso policial caíram entre 44% e 100% depois da introdução das câmeras corporais. 

Os dados podem ser interpretados de duas maneiras: 1) a gravação gera um efeito controlador sobre os agentes que deixam de assumir uma conduta abusiva, porque estão sendo monitorados ou; 2) os casos de falsa denúncia caíram porque os reclamantes sabiam que seriam desmentidos e consequentemente penalizados por falsa acusação de crime. Em qualquer das hipóteses, o resultado é positivo.  

Depois, em 2017, uma outra importante revista chamada Policing, compilou 21 estudos que aconteceram em diferentes partes do mundo sobre o uso da câmera nos uniformes. Percebeu-se, como resultado, que as câmeras reduziram o comportamento agressivo de alguns policiais, sinalizando que elas são capazes de interferir na conduta do servidor público. A conclusão, porém, está condicionada ao poder do agente de ligar ou desligar a câmera. Outra pesquisa realizada pela Universidade de Cambridge revelou dados ainda mais significativos: no departamento de Polícia em Rialto, na Califórnia, o uso das câmeras fez diminuir em 87,5% o uso da força, levando à queda de 59% nas denúncias de abuso policial.

 

A quem a câmera espia?  

Os estudos controlados explicam porque a adoção de câmeras de segurança acopladas aos uniformes policiais é uma tendência. A Diretriz de julho de 2020 adotada pelo governo do estado de São Paulo, para a adoção das câmeras corporais por toda a corporação, foi resultado de experiências iniciadas a partir de 2016. A implantação de um piloto, com a aquisição de 120 câmeras em alguns batalhões, mostrou a complexidade da estrutura que esse tipo de medida exige. 

Fonte: Instituto Sou da Paz

As câmeras corporais são testemunhas de fatos. Tudo o que acontece numa ocorrência policial é gravado, armazenado e pode ser examinado pelo comandante, pela corregedoria policial, pelo Ministério Público, pelo defensor e pelo juiz. 

A experiência do uso do equipamento, implementado gradativamente nos últimos dois anos, trouxe uma cadeia articulada de benefícios: maior controle da atividade policial nas ruas, incluindo sua própria proteção, com redução do uso da força e valorização da negociação; maior preocupação com a prova judicial; melhor avaliação do serviço prestado e maior preocupação com o aprimoramento pelo treinamento das forças policiais. Tudo isso resulta em ganho de legitimidade na conduta dos agentes de segurança pública. 

Mas o impacto prático mais relevante foi a variação na série histórica do índice de Morte Decorrente de Intervenção Policial (MDIP), do Comando de Policiamento de Choque, do qual faz parte o batalhão das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a Rota. Depois do início do uso de câmeras pelos policiais desse grupo, em meados de 2021, desabaram os índices de letalidade associados a suas ações.

Os efeitos não se limitam à Rota. Nesses dois anos, os resultados têm sido muito positivos: recorde na queda da letalidade policial já em seu primeiro ano de implementação, em 2020. De acordo com dados do Instituto Sou da Paz, baseados em informações da Corregedoria da Polícia Militar do estado de São Paulo, a quantidade de mortes provocadas por policiais militares de São Paulo, em 2021, foi a menor desde 2013.

A análise preliminar do índice MDIP indica uma redução significativa na média de casos de letalidade policial, maior do que  40% nas companhias da Polícia Militar que receberam as câmeras em maio de 2021. Essa redução sinaliza que o uso das câmeras evitou pelo menos 30 casos de letalidade policial entre junho e novembro de 2021. A contraprova do benefício das câmeras acopladas aparece na diferença, nos três últimos anos da série, entre as mortes em horário de serviço ou horário de folga, quando muitos policiais costumam fazer trabalho extra (bicos”) como seguranças privados.

Fonte: Instituto Sou da Paz

A câmera corporal é salvaguarda do povo porque serve de proteção às garantias fundamentais de cada um, inscritas nas leis. É salvaguarda da polícia porque ao policial é concedido muito poder e, quem o tem, precisa ser vigiado e cobrado. O controle sobre quem utiliza a arma em nome do Estado é tão importante quanto a prisão de alguém que comete um crime. Mais grave do que aquele que comete um crime, é a violação da lei por aquele que tem a obrigação de coibi-lo.

O uso da nova tecnologia ainda tem estigmas a serem superados. Mas é fundamental ressaltar que as câmeras corporais são responsáveis pela queda de morte dos próprios policiais em serviço. 

 

O poder da palavra

Na política, palavras convertem-se em atos. Em um ambiente salutar, as palavras movem diálogos e a política racionaliza o debate permeado por concordâncias e discordâncias, ajudando a conter a violência. Em um ambiente doente, as palavras erguem muros entre as pessoas e geram violência.

A forma como as lideranças se posicionam a respeito ao uso da força, sejam os comandantes das polícias, o secretário ou o governador, tem impacto direto na atuação das polícias. Por isso, os governos estaduais influem, direta e indiretamente, no controle sobre a letalidade policial.

Em 2019, no primeiro ano de mandato do então governador João Doria, eleito afirmando que, com ele, a polícia atiraria para matar, a profecia se cumpriu. Era a madrugada do dia 1º de dezembro quando a Polícia Militar entrou na comunidade de Paraisópolis para interromper um baile funk. O resultado foi um massacre que levou à morte de nove jovens, encurralados em uma viela. Doria  respondeu à repercussão negativa mudando de posição em relação ao tema da conduta das polícias, com o que também buscava se diferenciar de Bolsonaro, seu aliado nas eleições de 2018. 

A difusão do bolsonarismo junto às forças de segurança pública, no entanto, mostra a contaminação da ação policial pela política. No período entre 2020 e 2021, marcado pela pandemia de Covid-19 e lockdowns generalizados, verificou-se acelerado crescimento do número de mortos pela polícia de São Paulo, embora tenha ocorrido significativa redução dos crimes patrimoniais. Nesse período, intensificou-se o debate sobre a brutalidade policial. 

PMs usam câmera corporal

Foto de divulgação: uma Polícia Militar diversa em sua composição, porta câmeras corporais para a proteção de todos. Agora, falta a propaganda se tornar realidade

Muitas situações de flagrante abuso da força por parte de policiais vieram a público enquanto o episódio de George Floyd, nos EUA, mobilizou a comunidade internacional sobre o assunto. Exatamente dois anos depois, o brasileiro Genivaldo de Jesus dos Santos, em Sergipe, morria em uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) transformada em câmara de gás. A ação foi filmada por populares, já que a PRF não utiliza câmeras corporais e sua adoção é rechaçada pelo governo Bolsonaro. O silêncio absoluto do presidente da República diante do assassinato policial de Genivaldo é um dos símbolos das tragédias do Brasil miliciano e bolsonarista.

Quase simultaneamente, ocorreu a estarrecedora chacina no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, quando as forças policiais mataram 29 civis aleatoriamente. Bolsonaro, mais uma vez, manteve-se em silêncio cúmplice. Afinal não é segredo que o presidente sempre defendeu isentar de qualquer tipo de responsabilidade o policial que mata em serviço… Puro populismo penal.

 

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