COREIA DO NORTE, CAMPEÃ EM VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

 

“O governo norte-coreano é um dos poucos regimes totalitários restantes no mundo. Mesmo Cuba, um dos outros regimes totalitários remanescentes, está começando a liberalizar sua economia, embora com relutância, enquanto mantém o controle total sobre seus sistemas políticos e sociais. Um regime totalitário nesse contexto pode ser definido como um governo onde todos os aspectos da vida humana são controlados e ordenados pelo Estado para promover os objetivos políticos da elite dominante. Em um Estado autoritário – embora repressivo e muitas vezes brutal – as pessoas geralmente têm algum controle sobre suas vidas privadas, desde que não ameacem a estrutura de poder e a ordem existente. O governo norte-coreano tem a notável distinção de ser um dos sistemas políticos mais brutais, repressivos e controladores desde o século passado.”  

Esse parágrafo faz parte da apresentação escrita por Robert Collins, especialista em Coreia do Norte, para um trabalho sobre o sistema de classificação social adotado no país, chamado songbun.

De fato, os cidadãos norte-coreanos não dispõem de liberdade de opinião, associação, religião, deslocamento ou identidade sexual. Não existem direitos da mulher e da criança. Não existe o devido processo legal. Não existe liberdade para sonhar.

Já o informe oficial anuncia que a República Popular Democrática da Coreia é um país socialista autossuficiente, com eleições periódicas (apesar de existir um único partido e os três governantes que o país conheceu pertençam à mesma família). Desde a implantação do regime comunista, em 1948, a ideologia estatal, denominada juche, prega o ideal de autossuficiência econômica e o isolamento político internacional. E é exatamente num país assim, pujante e invejado pelos inimigos, que a maioria do povo norte-coreano acredita viver.

Estatuas gigantes

“Grande Monumento da Colina Mansu”. à esquerda, o fundador da pátria e Eterno Líder, Kim Il Sung; à direita, seu filho, Kim Jong Il, o Querido Líder. O caçula, Kim Jong Un ainda não figura no panteão, mas é apenas uma questão de tempo. O culto cego ao líder é um traço dos Estados totalitários

 

Estado de exceção

O Armistício de Panmunjom, em 1953, apenas interrompeu a Guerra da Coreia. A situação de prontidão militar permanente resultou no fortalecimento das Forças Armadas frente ao corpo civil-burocrático do Partido dos Trabalhadores. Na Coreia do Norte, Exército, Partido e Estado são uma coisa só. Não existem brechas para a formação de dissidências políticas a partir de diferentes grupos de poder. 

O país possui o quarto maior contingente militar do mundo, atrás apenas de China, Índia e Estados Unidos. Na última década, com a chegada de Kim Jong Un ao poder, a Coreia do Norte intensificou os testes com armas nucleares e mísseis e já pode ser considerada uma integrante do restrito clube dos países nucleares – mesmo que os Estados Unidos insista em negar o fato.

Um traço peculiar do regime norte-coreano foi sua capacidade de fundir as conservadoras tradições confucionistas, disseminadas junto à população, às concepções políticas stalinistas, para criar o mais eficiente dos Estados totalitários vistos até hoje. Sua sobrevivência, três décadas após o fim da Guerra Fria, é a prova.

Desde meados dos anos 1990, quando a grande fome se instalou no país, os que não suportam a pressão e conseguem sair para a China, Coreia do Sul, Laos ou mesmo chegar aos EUA encontram profundas dificuldades de adaptação. O choque de realidade material e o tipo de relacionamento entre as pessoas é muito diferente e menos previsível do que o experimentado na Coreia do Norte.

TED -refugiada NK

Palestra da refugiada Hyeonseo Lee. Na tela, imagem de mulheres norte-coreanas aprisonadas por tentarem emigrar para a China

São os testemunhos desses refugiados/imigrantes que  ajudam a esclarecer como se organiza a sociedade e o regime norte-coreano, para além dos fantasiosos informes oficiais. Muitos refugiados escreveram livros ou foram assunto de reportagens que se tornaram livros, outros se tornaram palestrantes (procure na plataforma TED Talks).

A maioria tenta refazer suas vidas anonimamente e as redes de apoio comunitárias são fundamentais. Entidades como a Human Rights Watch, o Committee for Human Rights in North Korea, o Liberty in North Korea, comitês da ONU e, principalmente, o Ministério para a Unificação (Coreia do Sul) desempenham um trabalho crucial de recepção, custeio e apoio a essas pessoas.

As mulheres representam a ampla maioria de refugiados. Na Coreia do Sul, respondem por 72,1%, sendo que mais da metade delas (57,2%) têm entre 20 e 30 anos de idade.

Seu trunfo e sua fraqueza decorrem exatamente da condição feminina, pois além de serem obrigadas a prestar favores sexuais a guardas de fronteiras, existem redes de prostituição interessadas em explorá-las. Como a maioria escapa pela fronteira com a China (cuja polícia captura e repatria essas pessoas, sabendo que estão sujeitas até a fuzilamento), o mercado de casamentos é outra possibilidade. Faltam mulheres e os homens chineses que vivem na inóspita região da fronteira não estão preocupados com as origens de suas esposas. Muitas refugiadas passaram anos como fugitivas, sofreram violências e foram submetidas a trabalhos forçados antes de chegarem à Coreia do Sul, onde enfrentam discriminação por sua origem.

A chegada da pandemia de Covid-19, em 2020, agravou o isolamento da Coreia do Norte e piorou o acesso externo à informações. As poucas agências humanitárias que atuavam no país ainda não obtiveram permissão para voltar. O desconhecimento geral sobre a dramática situação vivida pelos norte-coreanos comprova a eficácia do regime instituído pela família Kim, que pode cometer crimes contra a humanidade em larga escala sem enfrentar mobilização internacional.

  

O princípio da desigualdade

Em 1957, o Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte decidiu submeter toda a sociedade a um sistema de classificação baseado em antecedentes familiares, chamado songbun. A “Resolução e Projeto de Orientação Intensiva” criou três grupos e cinquenta subgrupos. De acordo com o “Eterno-Líder” Kim Il Sung, a “classe leal” constituía 25% da população norte-coreana, a “classe vacilante”, 55% e a “classe hostil”, 20%. Em imagem popular, o regime os descreve como “tomates”, “maçãs” e “uvas”: vermelhos por fora e por dentro; vermelhos só por fora; impossível ficar vermelho.

O songbun determina toda a vida do indivíduo: o lugar onde deve viver (a capital, Pyongyang, é para privilegiados); oportunidades de educação e trabalho; ingresso no Partido; acesso a alimentos; relações pessoais. Efetivamente, o país que se declara comunista desde 1948 criou a mais desigual das sociedades. É uma forma de organização que remete muito mais à imobilidade das sociedades de castas, com seus privilégios hereditários.

Gráfico de privilégios/songbun

Representação gráfica do sistema oficial de desigualdades impostas pelo songbun

O songbun justifica a discriminação e os abusos humanitários. Graças a ele, o Estado norte-coreano submete um terço da população, de mais de 25 milhões de habitantes, a condições de superexploração do trabalho, especialmente nos campos de trabalho forçados espalhados pelo país, que o governo nega existirem.

O artigo 2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma, especificamente, que todo indivíduo tem direito aos direitos descritos na declaração sem distinção de raça, origem social ou nascimento.

A Coreia do Norte, que é membro regular da ONU, deveria se comprometer com esses princípios e garantir ao povo todos os direitos contidos nesse documento. No entanto, graças ao apoio de outras ditaduras que controlam o Conselho de Direitos Humanos, a efetividade dessa cobrança é praticamente nula. Mas o nível de violação dos direitos humanos no país é de natureza tal que deveria ser tratado como questão de interesse internacional.

A Agência Central de Notícias da Coreia do Norte publicou, em 6 de março de 2009, a seguinte nota: “Não há nenhuma ‘questão de direitos humanos’ neste país, pois todos levam uma vida extremamente digna e feliz”.

 

Estado Policial

Os primeiros anos da República Popular Democrática da Coreia foram marcados pela implantação dos modelos econômicos e governamentais importados da União Soviética e aplicados por seus agentes. Ainda em 1945, começou a ser organizada a polícia secreta, para perseguir os opositores do Partido dos Trabalhadores e seus aliados soviéticos. 

Kim Il Sung e Kim Jong Il

Kim Il Sung e o então jovem Kim Jong Il em uma reunião do Partido

Contudo, após a morte de Stalin, em 1953, o novo governo soviético passou a falar em “distensão” e Kim Il Sung decidiu cortar os laços que uniam os aparatos de segurança dos dois países. Além de se libertar da tutela soviética, Kim assumiu de forma muito mais direta o controle sobre toda a máquina partidária. A partir de 1973 a polícia secreta converteu-se em Departamento de Proteção Política do Estado (Bowibu) e tornou-se independente dos outros órgãos de Estado, reportando-se diretamente ao Líder.

A primeira sucessão na Coreia do Norte coincidiu com o período do fim da Guerra Fria. Embora Kim Jong Il já participasse ativamente de vários órgãos de governo, a partir de 1994 ele endureceu  a repressão interna para afirmar sua liderança. Começou por expurgar várias altas autoridades e prosseguiu ampliando o controle sobre a Bowibu, que chegou a dirigir diretamente. Atualmente, o órgão responde pelo nome oficial de Departamento de Proteção do Estado e uma de suas funções mais importantes é administrar o vasto complexo de campos de prisioneiros políticos.

Segundo artigo de um especialista: “A família Kim entende perfeitamente que a Bowibu é a pedra angular de seu poder. Assim, a polícia secreta sempre teve prioridade no abastecimento (de alimentos) e seu chefe se reporta diretamente ao Líder Supremo. Isso, no entanto, não significa que este não seja um trabalho perigoso. Afinal, a maioria de seus líderes não morreu de morte natural.”

 

Espiar e delatar

A eficácia do totalitarismo guarda relação direta com a capacidade do governo de instilar  medo e desconfiança em todos os níveis de relações pessoais. Todos.

Fuga do Campo 14 - capa

O livro que conta a história de Shin In Geun 

Shin In Geun nasceu e cresceu em um campo de trabalhos forçados, o Campo 14, por conta do songbun negativo de seus pais. Ele narra a raiva que sentia da mãe quando criança porque, além de tratá-lo com muita brutalidade, competia com ele pela comida escassa. Quando Shin desconfiou que a mãe estivesse favorecendo o irmão, denunciou os dois ao seu professor.

A escola do Campo 14, como no resto do país, era uma máquina de propaganda destinada a fazer amar os líderes da família Kim e a odiar os “bastardos americanos e sul-coreanos”. E também a ensinar as crianças a delatarem os pais e amigos.  

Para os que não estão presos, o controle se dá por meio de duas “funções”: o inminban e o banjang. O primeiro corresponde a grupos de 20 famílias vizinhas, que devem se vigiar mutuamente e delatar atividades suspeitas às autoridades e agentes da Bowibu. Cada inminban tem um chefe eleito, o banjang, geralmente mulheres de meia-idade, que dão avisos oficiais e entram na casa de todos para fiscalizar as vidas privadas.

Hyeonseo Lee, outra que conseguiu sair da Coreia do Norte, narra sua história no livro A mulher com sete nomes. Um trecho:

“No dia em que sua família se mudou, o banjang entregou a eles os retratos do Grande Líder, Kim Il Sung, e de seu filho, o Querido Líder, Kim Jong Il. Os retratos devem ser pendurados em todas as casas norte-coreanas, e cada família recebe um pano branco especial para limpá-los. O pano não pode ser usado para limpar mais nada, e os retratos devem ser pendurados no ponto mais alto da casa. Uma vez por mês, funcionários do governo vestindo luvas brancas vinham inspecionar os retratos e garantir que estivessem limpos e em conformidade. Qualquer um encontrado com retratos empoeirados ou tortos é punido. Histórias de atos heroicos de salvamento de retratos são populares na Coreia do Norte, e anualmente, nos aniversários dos Líderes, todos se alinham diante dos retratos e fazem uma longa e profunda reverência.”

Numa outra passagem:

“Começar a escola em Hamhung é difícil para Hyeonseo. Durante esse período, ela aprende sobre o “tempo de purificação da vida”, um sistema de autocrítica praticado nas escolas no qual cada aluno se levanta, acusa alguém de algo e depois confessa algo. Ninguém está isento. Na maioria das vezes, Hyeonseo e um amigo planejam acusar um ao outro de alguma ofensa de baixo nível, como negligenciar seus estudos, mas as acusações podem ser perigosas. Certa vez, um menino da classe de Hyeonseo acusou outro menino de ter muitos luxos e perguntou onde sua família conseguiu dinheiro para comprar aquelas coisas. O professor repassou a acusação ao Bowibu e três gerações da família do menino foram presas, como traidores.” 

         

UM PAÍS FAMINTO

A Coreia do Norte possui um relevo bastante montanhoso e apenas cerca de 20% de seu solo é arável. Ainda assim, o inverno rigoroso só permite uma colheita por ano.  O fato é que o país nunca foi autossuficiente em alimentos e sua sobrevivência dependia de importações subsidiadas e empréstimos vindos de outros países comunistas.

Por isso, o desaparecimento da União Soviética, em 1991, teve efeitos desastrosos para os norte-coreanos. Sem a ajuda comercial de Moscou, que incluía 75% das importações de combustível, ocorreu rápido declínio na produção e importação de alimentos. Sem eletricidade para operar as bombas, as minas de carvão ficavam inundadas, piorando a crise de energia e abastecimento. O auge da crise chegou com uma sequência de secas e inundações que desorganizaram de vez o já bastante ineficaz sistema de produção baseado na planificação estatal e pouquíssima mecanização.

mulheres sentadas

O resultado foi um prolongado quadro de desabastecimento entre 1994 e 1998 responsável por uma terrível situação de fome, desnutrição e até relatos de canibalismo. Como sempre, quando se trata de regimes fechados, as estimativas apresentam ampla variação: os mais otimistas sugerem algo em torno de 240 mil vítimas, mas muitos sugerem mais de um milhão de mortos por fome e desnutrição.  

O Programa Alimentar Mundial considera 600 gramas de cereais por dia como menos do que uma “ração de sobrevivência”. A partir de relatos de refugiados, as agências humanitárias calcularam a dieta alimentar dos norte-coreanos naquele período: 

      • Trabalhador industrial privilegiado  – 900 gramas/dia
      • Trabalhador comum                             – 700 gramas/dia
      • Trabalhador aposentado                      – 300 gramas/dia
      • Crianças de 2 a 4 anos                          – 200 gramas/dia

A situação era agravada pelo fato da distribuição de alimentos se basear no songbun de cada família, o que significa que trabalhadores e prisioneiros foram especialmente afetados. Outra consequência terrível, no médio e longo prazos, foi o prejuízo irrecuperável para o desenvolvimento físico e mental das crianças e jovens. “O retardo mental causado pela desnutrição infantil precoce desqualifica cerca de um quarto dos recrutas potenciais das forças armadas na Coreia do Norte (…).” (Fuga do Campo 14, p. 40).

As escolhas políticas desse período também agravaram a situação. A onda de expurgos e prisões  promovidas por Kim Jong Il nos anos 1990 destinava-se a reafirmar sua autoridade e ele escolheu não ceder às pressões reformistas. O bloco soviético europeu havia desmoronado, enquanto na China as reformas de Deng Xiao Ping promoviam a abertura do país ao mundo exterior para atrair investimentos e tecnologia. Certamente, o debate sobre reformas foi travado pelo Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte e tinha seus defensores no alto escalão. Mas Kim Jong Il bloqueou qualquer possibilidade de mudança e também algumas ofertas de ajuda externa. Ele não se comoveu com a fome. 

 

A fome venceu o medo  

Desesperados pela fome, muitos norte-coreanos decidiram se arriscar a atravessar a fronteira com a China para buscar comida. Detalhe interessante, que dá a medida do grau de controle psicológico que o regime tem sobre os seus cidadãos: o rio Yalu, que marca a fronteira entre os dois países, tem cerca de onze metros de extensão e não é muito profundo. O medo é que impede uma fuga em massa.

Jangmadang market

Janmadang, o mercado informal

A fome dos anos 1990 deu origem aos janmadang, pequenas tendas onde se comercializa alguma comida e outros bens importados contrabandeados, geralmente da China. Esse ensaio de mercado privado se espalhou pelo país e, na prática, passou a ser tolerado pelas autoridades, que inclusive se beneficiam diretamente. Com frequência, os janmadang são administrados por mulheres, especialmente aquelas pertencentes a songbuns mais elevados, que podem contar com maior proteção para os negócios e passar a fronteira mais facilmente.

Calcula-se que mais de cinco milhões de pessoas dependam, direta ou indiretamente, dessa economia extraoficial. Assim, alguns norte-coreanos passaram a ostentar vestimentas chinesas; a ouvir o K-Pop – a jovem música sul-coreana que embala os jovens e fala a sua língua; a assistir filmes em celulares chineses e conteúdos que circulam em pen-drives.

Os pen-drives são atração irresistível quando o que existe é um único canal de televisão que transmite propaganda oficial de exaltação a Kim Il Sung, Kim Jong Il e Kim Jong Un.

A resposta do governo para evitar dissidências tem sido fechar vários desses pontos e aumentar os controles e a criminalização sobre o acesso ou posse de material estrangeiro, incluindo pena de morte. Assistir a filmes e programas de TV contrabandeados do exterior pode levar a 10 anos de prisão nos campos de trabalho forçado. O regime combate duramente o consumo de mídia estrangeira, pois mina sua propaganda anti-Coreia do Sul e o discurso de que a Coreia do Norte é o mais perfeito país do mundo.

Sendo contrabandeados, os produtos vendidos nos janmadang desapareceram após o fechamento de fronteiras imposto pela pandemia, tanto na Coreia do Norte quanto na China. Muita gente ficou sem essa fonte de abastecimento e sem acesso ao próprio trabalho e sobrevivência. Esse é um agravante para a Coreia do Norte, que também sofre com a crise global que vem impactando negativamente o custo de vida. Existe grande temor nas agências humanitárias e entre observadores de direitos humanos de que o país esteja caminhando rapidamente para outra grave crise de fome.

 

Campos de trabalho forçado

“Os campos de trabalho forçado da Coreia do Norte já duram duas vezes mais tempo que o Gulag soviético e cerca de doze vezes mais que os campos de concentração nazistas. Não há controvérsia sobre a sua localização. Fotografias de alta resolução, feitas por satélites, acessíveis no Google Earth para qualquer pessoa que tenha conexão com a internet, mostram vastas áreas cercadas que se esparramam entre as montanhas escarpadas da Coreia do Norte.” (Fuga do Campo 14, p. 22).

Campo de Prisioneiros - NK

Um dos campos de trabalho forçado da Coreia do Norte. A tecnologia de foto-satélite tem sido fundamental para referenciar as denúncias das organizações de direitos humanos

 

São raríssimos os casos de pessoas que conseguem escapar desses campos e relatar o que viram e viveram por lá. Hoje, a a partir de seus testemunhos, a Associação Coreana dos Advogados, de Seul, elaborou uma síntese da vida cotidiana nesses campos:

“Todos os anos, alguns prisioneiros são executados em público. Outros são surrados até a morte ou secretamente assassinados por guardas que praticamente têm carta branca para maltratá-los e estuprá-los. Em sua maioria, os detentos trabalham na agricultura, na extração de carvão, na confecção de uniformes militares ou na fabricação de cimento, subsistindo com uma dieta de fome de milho, repolho e sal. Perdem os dentes, as gengivas ficam pretas, os ossos se enfraquecem e, quando chegam à casa dos 40 anos, ficam arqueados na altura da cintura. Como recebem um conjunto de roupas uma ou duas vezes por ano, em geral trabalham e dormem vestindo trapos imundos, levando a vida sem sabão, nem meias, luvas, roupas de baixo ou papel higiênico. Jornadas de trabalho de 12 a 15 horas são obrigatórias até que os prisioneiros morram, em geral de doenças relacionadas à desnutrição, antes de completar cinquenta anos.”

Mais:

“Na maioria dos casos, os norte-coreanos são enviados para os campos sem nenhum processo judicial, e muitos morrem sem saber do que foram acusados. São retirados de suas casas, em geral à noite, pela Bowibu. Muitas vezes, um transgressor é preso com os pais e os filhos. Kim Il Sung estabeleceu a lei em 1972: ‘Inimigos de classe, sejam eles quem forem, devem ter sua semente eliminada por três gerações’.” (Fuga do Campo 14, p. 23/24).     

Mapping Killings - dossiê NK

Organizações como a Transitional Justice Working Group, da Coreia do Sul, acompanham e mapeiam os crimes delatados pelos refugiados. Reúnem provas que um dia serão usadas em tribunais contra a família Kim

O governo sul-coreano estima existirem cerca de 154 mil prisioneiros. O governo dos EUA e grupos de direitos humanos falam em 200 mil presos. Os testemunhos descrevem tortura, fome permanente, execuções, estupros, abortos forçados. Em muitos dos relatos, choca percebermos que estavam tão condicionadas pelo regime a se sentirem culpados que dificilmente aparece algo que sugira revolta pela “injustiça” ou por “direitos”.

Esses campos, que em tudo violam as “Regras Nelson Mandela” ou Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros, da ONU, são a prova cabal de que o governo norte-coreano não apenas comete crimes contra a humanidade mas faz disso uma mola mestra de seu funcionamento.

As Regras Nelson Mandela foram adotadas pela Assembleia Geral da ONU em dezembro de 2005 e estabelecem padrões para o tratamento de prisioneiros a partir da ótica dos direitos humanos. Entre outras coisas, estabelecem limites de presos por cela; cobram instalações e materiais adequados para higiene pessoal, roupas de cama e vestimentas, alimentação balanceada e serviço médico, separação entre mulheres e homens e agentes mulheres para lidar com mulheres presas.

 

Quem financia as armas nucleares?

A Human Rights Watch advoga que é necessário conectar o tratamento da questão nuclear com as preocupações relativas a direitos humanos. A organização mostra que parte dos recursos que financiam a política militarista do país vem exatamente dessa junção de controle absoluto sobre o tempo do trabalho com campos de prisioneiros condenados à morte lenta.

Em outras palavras, temos que perguntar como é possível a um país miserável pagar os custos do desenvolvimento nuclear? Parece evidente que a resposta está na superexploração do povo, que vive para e pelo regime, sem direito a individualidade ou sentimento próprio. É da fome e falta de expectativas de milhões de pessoas que a dinastia Kim extrai os recursos econômicos para financiar o seu poder há quase 80 anos.  

Nesse sentido, as políticas humanitárias dirigidas ao país – que muitas vezes têm na origem a preocupação em impedir que o desmoronamento do regime provoque uma maré de emigração – precisam ser avaliadas também em seus efeitos de fornecer oxigênio para a sobrevivência desse mesmo Estado totalitário. 

Orfanato na NK - inauguração

Foto distribuída pela agência estatal norte-coreana. Kim Jong Un inaugura um orfanato em 2021. A notícia dizia que vários orfanatos estavam sendo inaugurados. Mesmo sem levar em conta a montagem grosseira dessa foto, a pergunta é: por que existem tantos órfãos? Seriam esses orfanatos campos de trabalho forçado infantil?

 

Há outra fonte de financiamento que não pode ser esquecida. No mundo globalizado, os Estados e suas instituições estão cada vez mais conscientes da existência de uma economia paralela, que lava dinheiro e financia tudo o que for classificado como ilegal, de terrorismo a prostituição infantil.  Sabe-se, por exemplo, que “desde Kim Jong Il, uma forma de obtenção de dinheiro pelo Estado é fraudar companhias de seguro internacionais com ‘desastres’ comuns como inundações, desabamento de minas, acidentes de trem. Esse dinheiro era para uso pessoal do ditador e parte dele era usado para comprar artigos de luxo que alimentam a fidelidade da elite coreana, estimada entre 100 mil e 200 mil pessoas.” (Fuga do Campo 14, p. 56/57).

Na Era Kim Jong Un acelerou-se o processo de desenvolvimento nuclear, o que exige o dispêndio de recursos maiores e, portanto, em mais exploração do povo e mais apostas em expedientes ilegais. Enquanto isso, a comunidade internacional dedica pouca atenção ao país e basicamente desconhece a gravidade da situação à qual milhões de pessoas são submetidas. Apenas em 2014 a Assembleia Geral da ONU aprovou um documento acusando o governo norte-coreano de crimes contra a humanidade. O isolamento internacional, contudo, continua a lhe poupar constrangimentos.

 

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