Uma multidão invadiu o palácio presidencial e forçou o líder do país à renúncia e ao exílio. Foi o que ocorreu no Sri Lanka, nação insular da Ásia Meridional, em julho de 2022. Desde abril, junto com a chegada das chuvas de monção, o país de 22 milhões de habitantes foi tomado por ondas de protestos. A alta no preço dos combustíveis e alimentos empurraram a multidão para as ruas. O colapso econômico e o risco de desabastecimento derrubaram o clã político dos Rajapaksa.
São dois poderosos irmãos. Mahinda Rajapaksa, o mais jovem, afastou-se do cargo de primeiro-ministro no mês de maio, em meio à crise provocada pelas gigantescas manifestações. Gotabaya “Gota” Rajapaksa, o mais velho, foi obrigado a renunciar à presidência em 14 de julho, fugindo para Cingapura depois de um breve desvio pelas Maldivas.
Os irmãos Mahinda e Gotabaya Rajapaksa
Entre 2005 e 2015, Gota foi o homem mais poderoso do Sri Lanka. Como secretário da Defesa, reprimiu brutalmente a guerra civil que durava mais de três décadas. Nesses anos, o caçula Mahinda ocupava a presidência da república e protegia o irmão das acusações de execução em massa de civis. No discurso oficial, a dupla foi descrita como “heróis nacionais”, inserindo sua vitória na linguagem da “guerra ao terror”.
Derrotados nas eleições de 2015, os irmãos Rajapaksa conseguiram retornar ao poder depois que, na Páscoa de 2019, uma série de atentados terroristas organizados por um grupo jihadista resultou na morte de 258 pessoas. Sob a bandeira do nacionalismo cingalês e da luta contra o terrorismo, Mahinda voltou ao cargo de primeiro-ministro, seguido pela posse de Gotabaya como presidente, em novembro.
Dessa vez, contudo, os irmãos passaram a sofrer maiores pressões da comunidade internacional, que pede investigações independentes para esclarecer como se deu o fim da guerra civil do Sri Lanka, uma vez que se multiplicavam as denúncias de massacres contra civis. O conflito, que durou de 1983 a 2009, provocou o deslocamento forçado de cerca de 800 mil pessoas e deixou entre 80 e 100 mil mortos, segundo as Nações Unidas. Os dados levantados apontam para o aumento da violência nos últimos anos da guerra, época das operações orquestradas pelos irmãos Rajapaksa.
Em janeiro de 2021, o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) lançou um relatório exprimindo preocupações em relação à deterioração do panorama no Sri Lanka. Em março, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou a Resolução 46/1, solicitando ao Alto-Comissariado a abertura de uma investigação sobre crimes contra a humanidade cometidos no Sri Lanka. Países como Rússia, Cuba e Filipinas votaram contra a resolução, enquanto a Índia se absteve.
A ilha do Ceilão, antigo nome do atual Sri Lanka, ocupa posição estratégica nas rotas de comércio que, desde a Antiguidade, cruzam o Oceano Índico. Quando os europeus iniciaram suas navegações oceânicas, no século XV, portugueses e holandeses disputaram seu controle. Mas foi apenas em 1815, com a chegada dos britânicos, que a população da ilha foi totalmente submetida ao mesmo poder.
Os cingaleses, maioria dos habitantes da ilha, seguem a religião budista. A minoria tâmil, grupo étnico que habita as terras mais ao norte, como na península de Jaffna, segue a religião hinduísta, originária da Índia. Há, ainda, muçulmanos de origens diversas nas principais cidades. Os casamentos mistos e o sincretismo entre comunidades eram consideráveis.
Os tâmeis foram os que mais prosperaram sob a colonização britânica. O acesso à língua inglesa pela ação de missionários cristãos em Jaffna e os negócios com os tâmeis da Índia aumentaram sua presença no comércio, no ensino e na administração da ilha.
Reativamente, no final do século XIX, emergiu um nacionalismo cingalês que apresentava o Ceilão como um santuário do budismo contra a expansão hindu e muçulmana. Intelectuais como Anagarika Dharmapala (1864-1933) colocaram na mira tanto o colonialismo britânico como a presença tâmil no território do Ceilão. Narrativas budistas como Mahavamsa se tornaram panfletos xenófobos, projetando no passado longínquo o confronto com os tâmeis hindus.
A consolidação das identidades tâmil e cingalesa se deu sob o patrocínio britânico, em meio à sanha classificatória típica do colonialismo da época. Após a independência, em 1948, o centro do poder foi ocupado pelo Partido da Liberdade do Sri Lanka (SFLP), de centro-esquerda, representante da maioria cingalesa. Sua política marginalizou os tâmeis, da administração pública às universidades. O opositor de centro-direita, o Partido Nacional Unido (UNP) adotou gradualmente a mesma linguagem, ao longo das décadas seguintes.
Em 1972, a Constituição patrocinada pela primeira-ministra Sirimavo Bandaranaike instituiu o budismo como religião de Estado e substituiu o nome colonial Ceilão por Sri Lanka, de origem cingalesa, agora a única língua oficial do país. O ressentimento dos tâmeis se intensificou, assim como a virulência do supremacismo cingalês. A Lei de Prevenção ao Terrorismo, de 1978, tornou-se permanente a partir de 1982, servindo como instrumento para a repressão de dissidentes, em geral tâmeis.
Um pogrom anti-tâmil, o Julho Negro, em 1983, desencadeou a guerra civil que se estenderia até 2009. De um lado, as forças do governo, em nome da maioria cingalesa e budista. De outro, os rebeldes, nutridos pela minoria tâmil e hindu. O Exército do Sri Lanka (SLA) combateu o movimento guerrilheiro dos Tigres de Libertação do Eelam Tâmil (LTTE), que invocavam o direito à autodeterminação para reivindicar a criação de um Estado próprio ao norte da ilha. A diáspora tâmil instalada na Índia patrocinava a resistência armada ao regime cingalês. A região do Tamil Nadu, lugar de origem da etnia tâmil, no sul indiano, chegou a servir de base para treinamento militar.
Fonte: The New York Times, 23/4/2019
A violência do Estado cingalês também atingiu, entre 1987 e 1990, a Frente de Libertação Popular (JVP), organização marxista-leninista que atuava no sul do país. Estima-se entre 40 e 60 mil o número de pessoas, em sua maioria civis cingaleses, mortos por suposta simpatia em relação aos rebeldes. Na década seguinte, o conflito contra os Tigres Tâmeis serviu como instrumento para reprimir dissensões políticas entre a maioria cingalesa.
Já os Tigres Tâmeis apostaram na limpeza étnica. Em outubro de 1990, ordenaram que todos os muçulmanos se retirassem das zonas sob seu controle, forçando um êxodo de 75 mil pessoas. Ao terror de Estado patrocinado pelo Exército do Sri Lanka, os guerrilheiros tâmeis responderam com atos terroristas destinados muito mais à propaganda da causa, como era comum à época, do que às conquistas militares.
Seu ato de maior repercussão ocorreu em maio de 1991, quando uma bomba matou o ex-primeiro-ministro indiano Rajiv Gandhi, neto do fundador da atual República da Índia. Em 1993, o alvo foi o presidente do Sri Lanka, Ranasinghe Premadasa, morto em um atentado suicida. O enfrentamento militar promovido pelo exército entre 1995 e 1996 provocou a retirada dos Tigres Tâmeis da península de Jaffna, marcando o início do recuo territorial.
O cenário global de “guerra ao terror” vocalizado por Washington após os atentados do 11 de setembro de 2001 criou um cenário internacional favorável às operações militares do exército cingalês contra os rebeldes tâmeis. Foi dessa brecha que se valeram os irmãos Rajapaksa para escalar a violência das operações de repressão.
Em 2008, os Tigres estavam cercados na região de Vanni, com cerca de 300 mil civis coagidos a acompanhá-los. Essa massa de gente foi pega no fogo cruzado do conflito. O governo vetou a cobertura do conflito pela imprensa foi vedada pelo governo, ocultando as violações em massa de direitos humanos cometidas a mando dos Rajapaksa.
Quando a guerra civil terminou, em 2009, vieram à luz os abusos cometidos pelos Rajapaksa, que responderam se aproximando da China. O Sri Lanka foi inserido no grande empreendimento econômico e geopolítico chinês, a Nova Rota da Seda.
O maior símbolo dessa aliança é a Colombo Port City, investimento da China Harbour Engineering Company (CHEC) para criar um megalomaníaco centro financeiro, corporativo e imobiliário na zona portuária da capital. O acordo, selado em 2014 com uma visita do líder chinês Xi Jinping, concedeu 43% da área da nova cidade para a multinacional chinesa por 99 anos. Uma mão lava a outra: a China votou contra a resolução 46/1 do Conselho de Direitos Humanos ONU, que exprimia preocupação em relação à situação dos direitos humanos no Sri Lanka.
Manifestação popular na capital, Colombo, em abril de 2022
Internamente, os Rajapaksa estavam aumentando a repressão. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, a pressão exercida pela polícia sobre os jornalistas aumentou. Em 2021, o presidente Gota tornou ainda mais abusiva a Lei de Prevenção ao Terrorismo. Segundo a Human Rights Watch, os Rajapaksa apostavam na crescente perseguição às minorias tâmil e muçulmana para expulsá-los.
Apesar disso, o governo não foi capaz de controlar a crise política que explodiu no início desse ano, precipitada pelo enorme endividamento do país, que é aprofundado pelos gastos decorrentes das parcerias com os chineses. O descontentamento popular em relação à corrupção e ao autoritarismo puseram fim ao reinado político dos dois irmãos.
A queda dos Rajapaksa não significa o fim de sua influência. O novo primeiro-ministro, Dinesh Gunawardena, é o antigo chanceler do governo deposto. Em 2021, ele já havia condenado a insistência da ONU em investigar crimes contra a humanidade cometidos na guerra civil do Sri Lanka. Já o presidente em exercício, Ranil Wickremesinghe, decretou estado de emergência logo após a renúncia de Gota, ampliando o espaço para a repressão das manifestações. A coalizão de poder que sustentava o governo dos Rajapaksa continua sendo a maior bancada no parlamento. Nela se misturam notas de populismo, de nacionalismo cingalês e de fundamentalismo budista.
Dessa onda de protestos que resultou na deposição de um governante, um fenômeno destacou-se positivamente: os recentes protestos ocuparam espaços públicos das cidades do Sri Lanka, como o Galle Face Green, maior parque urbano de Colombo, espaço de misturas culturais. É um sinal de superação política, mesmo que lenta, dos discursos étnicos que atormentam a história da nação insular.
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