Conheça um pouco da história do grupo basco ETA – Euskadi Ta Askatasuna ou Pátria Basca e Liberdade -, transformado em símbolo de militância política e terrorista.
O País Basco ou Vasco é uma comunidade linguística e cultural construída desde tempos imemoriais. Seus vizinhos França e Espanha são comunidades nacionais muito mais jovens.
O povo basco é uma etnia presente na região noroeste da Espanha e sudoeste da França, cuja fronteira é demarcada pela cadeia dos Pirineus. Espremidos entre as altas montanhas e o mar do Golfo de Biscaia, supõe-se que sua origem sejam os grupos humanos do Período Neolítico que se uniram e criaram uma língua própria chamada Euskera, sem qualquer conexão com outra língua conhecida.
Quando os romanos conquistaram a Península Ibérica, no século II a.C, os bascos ou Euskal Herria, como eles se denominam, já se organizavam como comunidade e, ao longo dos séculos, enquanto os senhores nominais daquelas terras se sucederam, os bascos tiveram suas particularidades reconhecidas e respeitadas. Isso só mudou durante a ditadura franquista instalada após a derrota dos republicanos na Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Essa é árvore de Guernica atual, a quarta descendente do primeiro carvalho documentado. A árvore está presente na bandeira basca.
Foi ali no País Basco, que no dia 26 de abril de 1937 a aviação nazista bombardeou a comuna de Guernica. A cidade foi escolhida a dedo porque ali, desde o século XIV, existe uma árvore de carvalho sob a qual foi reconhecido o primeiro estatuto de autonomia do povo basco.
A derrota dos republicanos espanhóis, em 1939, deu o poder ao general Francisco Franco, um dos expoentes da ideologia fascista que tomou conta da Europa na década de 1930. A ditadura só acabou quando Franco morreu, em 1975. Nesse intervalo de tempo, o regime combateu todos os regionalismos presentes na Espanha e que haviam sido parte da crise que desembocou na Guerra Civil.
Com o franquismo toda liberdade foi suprimida. Nem bascos, nem catalães, galegos ou quem fosse… só existia uma Espanha unida e uma língua, o castelhano. As línguas regionais e dialetos foram proibidas, as celebrações de festas e costumes locais também. Não havia liberdade de pensamento ou opinião e o aparato repressivo sempre foi muito ativo e cruel.
Mas é claro que as coisas se mexiam abaixo da superfície. Em resposta à censura do euskera, os dialetos bascos foram padronizados na década sessenta facilitando a preservação da cultura e da manutenção da consciência de grupo dessa região chamada País Basco.
A história do ETA é significativa porque ela soma duas questões contemporâneas muito complexas. A primeira é o direito à luta pela autodeterminação – que, para o ETA, deveria ser de ruptura total com a Espanha para formação de um novo país -; a segunda foi a decisão do grupo de fazer do terrorismo seu principal instrumento de negociação na arena política.
Passados os anos, quando a aura romântica das lutas pela descolonização começou a dispersar, os integrantes do ETA, durante anos descritos como jovens idealistas oprimidos, pareceram cada vez mais antidemocráticos quando o franquismo acabou. O ETA é responsabilizado por 700 atentados; pela morte de quase 850 pessoas; por ferir milhares de outras (6.389 vítimas); além de 86 sequestros que resultaram em dez mortes.
Os crimes não foram negados, pelo contrário, na história do ETA a praxe é que a polícia fosse avisada pouco antes a fim de causar a máxima tensão, numa calculada manipulação do medo coletivo. Quando o grupo se desfez, houve um pedido de desculpas às vítimas e seus familiares.
ETA é a sigla de Euskadi Ta Askatasuna, que significa Pátria Basca e Liberdade. O grupo foi criado em 31 de julho de 1959 a partir de uma cisão do Partido Nacionalista Basco. Eram estudantes universitários dedicados à promoção da cultura basca sufocada pela ditadura.
Em pouco tempo o grupo começou a se organizar politicamente, realizando assembleias e diretrizes. As primeiras ocorreram em maio de 1962 e definiram a meta de um Estado basco independente e socialista. A nacionalidade era definida pelo domínio da língua euskera, e não por critérios étnicos, como pregava o Partido Nacional Basco estreitamente ligado à Igreja Católica.
O lema bietan jarrai (“seguir nas duas”) traduzia bem as contradições do ETA, que atuava na política com representação partidária e eleitoral, mas via o uso da força e da luta armada como inevitáveis.
Em 1964, o terceiro encontro do grupo aprovou o recurso à luta armada como tática política. A postura radical aprofundou a ruptura com outras agremiações bascas que não aprovavam a ação direta. A reorientação tática do grupo foi publicada na revista “La Insurrección”.
No final da década, auge da Guerra Fria e dos movimentos de descolonização, o ETA se declarou uma organização política marxista-leninista constituída de células paramilitares em luta contra o governo opressor da Espanha.
Era dia 7 de junho, ano de 1968, quando o jovem militante Txabi Etxebarrieta atirou e matou um guarda civil depois de ser parado na estrada. Horas depois o próprio Txabi foi abatido num confronto com a Guarda Civil, o que faz dele o primeiro militante a matar e o primeiro a morrer na história do ETA.
Meses depois, decididos a vingar a morte do companheiro, o ETA assassinou o inspetor Melitón Manzanas, famigerado torturador e chefe da polícia secreta franquista, na cidade basca de San Sebastián. Foi o primeiro atentado planejado pelo grupo.
A repercussão tornou o grupo conhecido na Espanha, mas o assassinato do chefe de governo Luís Carrero Blanco, em Madri, dia 20 de dezembro de 1973 trouxe projeção mundial. A ousadia do grupo coincidiu com o adoecimento do velho caudilho e a decrepitude do regime. Franco morreu dia 20 de novembro de 1975.
Atentado com dinamites que matou o chefe do governo franquista Luís Carrero Blanco.
Em seu leito de morte, o último expoente da era dos fascismos indicou a monarquia como solução para a existência do Estado espanhol. E assim o jovem príncipe Juan Carlos de Bourbon foi trazido do exílio para Madri.
Em gesto de pacificação e reconciliação para uma Espanha pós-ditadura, o novo governo decretou anistia geral a todos os presos políticos, incluindo os militantes do ETA, dia 15 de outubro de 1977. Dias depois (25, 26 e 27) ocorreram uma série de reuniões em Madri, no Palácio de La Moncloa, com representantes de todas as forças políticas espanholas, incluindo aquelas reprimidas pelo franquismo.
Ali foi costurado o pacto político para a redemocratização espanhola. A essência do acordo previa a transformação da Espanha em uma monarquia parlamentarista, com a contrapartida de ninguém falar em república e separatismo. Estava aberto o caminho para a discussão sobre o reconhecimento da autonomia constitucional do País Basco.
Palácio de la Moncloa, sede do governo espanhol, onde foi assinada a série de tratados que deram nome ao Pacto.
O chamado Pacto de La Moncloa pôs fim à censura prévia e restaurou a liberdade de imprensa; reafirmou os direitos civis e políticos de todos os cidadãos, incluindo liberdade de expressão, reunião e associação política. Dois anos depois foi aprovado o Estatuto de Autonomia do País Basco, ou Estatuto de Guernica, no qual foi reconhecida ampla autonomia política para a região.
A redemocratização provocou reações contraditórias nos militantes do ETA, pois enquanto os demais partidos nacionalistas bascos ganharam força por meio do voto popular, o braço político da organização, o Herri Batasuna (Unidade Popular), não alcançou 1% dos votos. Isso fez com que os dirigentes dobrassem a aposta na luta armada, acusando o governo central de não ser mais do que uma “ditadura antibasca”.
Para o ETA só haveria cessar fogo quando Madri reconhecesse cinco pontos irrenunciáveis: 1) a legalização de todos os partidos políticos; 2) anistia total aos presos políticos; 3) promoção de melhorias de vida para os trabalhadores bascos; 4) retirada das forças policiais e da Guarda Civil das terras bascas; 5) um estatuto que reconhecesse o euskera nas quatro províncias do País Basco.
Na prática, o que se almejava era a independência total e de fim da democracia liberal, e talvez fosse exatamente o problema da organização para uma parcela cada vez maior da população basca. Nesse sentido, o método de financiamento do grupo era a imposição de um “imposto revolucionário” a ser pago por comerciantes e empresários bascos e quem se negasse era ameaçado e, em muitos casos, assassinado.
Os anos oitenta e início dos noventa viram o ETA se tornar cada vez mais radical, violento e isolado. Dependendo cada vez mais do pânico provocado por atentados aleatórios, a direção adotou a tática de “socialização do sofrimento”, passando a atacar também civis anônimos e pequenas autoridades municipais. Como explica o sociólogo Jerónimo Ríos Sierra em um ensaio dedicado ao ETA, tratava-se de fazer com que as vítimas dos atentados experimentassem os horrores e injustiças infligidos aos militantes etarras e seus familiares.
Mas o resultado foi o oposto do esperado, provocando dissensos mesmo na base militante, enquanto o apoio às ações do grupo declinava da sociedade.
Ao aumento da violência etarra, o governo espanhol não só endureceu as leis criminais, como deflagrou a “guerra suja” contra a organização e seus apoiadores. Nesse período, Grupos Antiterroristas de Libertação (GAL), apoiados e promovidos pela cúpula do Ministério do Interior, atuando à margem da lei e contra os preceitos do Estado de direito realizaram diversas ações de emboscadas e sequestros de dirigentes com o fim de eliminá-los. Essas ações custaram a vida de muita gente, inclusive pessoas que sequer eram ligadas ao ETA.
Dia 12 de julho de 1997, o ETA sequestrou o jovem vereador basco, Miguel Ángel Blanco, do conservador Partido Popular. O objetivo era negociar a libertação dos 460 prisioneiros etarras espalhados pelas prisões espanholas, longes de seus familiares. A negativa de Madri em negociar foi respondida com dois tiros na cabeça da vítima. Fartos da violência do grupo, seis milhões de pessoas saíram às ruas em toda a Espanha durante quatro dias para exigir o fim das ações do ETA. Apoiadores históricos da organização condenaram publicamente o assassinato a sangue frio.
Manifestação popular contra o ETA, em Portugalete, no País Basco, 28 de junho de 1978. (Arquivo Municipal de Bilbao. Fondo de La Gaceta del Norte)
Em 2003, quando a Suprema Corte espanhola decidiu pela ilegalidade das organizações partidárias Batasuna, Euskal Herritarrok e Herri Batasuna por seus vínculos com o ETA, a organização sofreu um duro golpe. Isso significava menos canais de diálogo com quaisquer autoridades e, principalmente, maiores dificuldades para obter financiamento para as suas operações e atentados.
O atentado à bomba realizado na estação Atocha, em Madri, por simpatizantes da Al-Qaeda, no dia 24 de março de 2004 reconfigurou o sentido das ações terroristas como instrumento de luta política. O ETA entendeu que o novo terrorismo, de caráter religioso e fundamentalista, provocava repulsa absoluta na opinião pública e, portanto, não asseguraria mais nenhum tipo de simpatia ou apoio à causa independentista.
30 de dezembro de 2006: o ETA explode um carro-bomba no Terminal 4 do Aeroporto Internacional de Madri-Barajas, atingindo três dos quatro andares do mais novo prédio do terminal. Duas pessoas morreram e dezenove ficaram feridas.
Contudo, ainda havia etarras que não aceitavam depor as armas, resultando em subdivisões cada vez mais numerosas no interior do grupo. Os dissensos se manifestaram claramente nos diferentes anúncios de cessar-fogo e entrega de armas, que não se cumpriram, em 2005 e 2006.
Após o atentado no aeroporto de Madri, o primeiro-ministro José Luís Zapatero descartou qualquer possibilidade de conversa futura. Restava evidente a incapacidade da organização em avaliar concretamente suas forças e os objetivos políticos almejados.
A partir de 2008 o cerco começou a se fechar. Multiplicaram-se as operações policiais, muitas delas com a cooperação da polícia francesa, levando à prisão lideranças políticas e militares do ETA, como Javier Lopez Pena e Garikoitz Aspiazu Rubina.
O último atentado etarra em território espanhol aconteceu no dia 9 de agosto de 2009. Em março do ano seguinte o ETA fez sua última vítima, um policial francês, morto durante uma perseguição na região metropolitana de Paris.
Nos anos seguintes, repetem-se as tentativas frustradas de acordo, incluindo a Conferência de Aiete, realizada em 17 outubro de 2011. Nessa ocasião, Kofi Anan, então Secretário Geral da ONU, pediu o fim da luta armada e a entrega das armas pelo grupo basco.
Três dias depois o ETA anunciou o fim da luta armada, mas as divisões internas faziam com que pequenos atentados continuassem a ocorrer aqui e ali, até que em março de 2017 eles anunciaram um desarmamento “total e sem condições”.
No dia 8 de abril ocorreu o ato do desarmamento, em Baiona, na França, com participação da Comissão Internacional de Verificação (CIV) e dos chamados “artesãos da paz”, com destaques o jurista Michel Tubiana (presidente da Liga dos Direitos Humanos da França) e o ativista basco Mixel Berhocoirigoin. Nesse dia a polícia francesa recebeu uma lista da geolocalização dos esconderijos de armas pertencentes ao ETA.
Delegação internacional na Conferência de Aiete para promover a resolução do conflito basco. Na foto estão: Jonathan Powell, Gerry Adams, Bertie Ahern, Kofi Annan, Gro Harlem Brundtland and Pierre Joxe.
Em fevereiro de 2018, o que restava da organização começou a votar pela autodissolução. O ato final veio no dia 20 de abril do mesmo ano, quando o último líder etarra, Arnaldo Otegi, fez um pronunciamento público no qual reconhecia a derrota política do ETA e seus objetivos, estendendo um pedido de perdão às vítimas do grupo. Dias depois, 3 de maio, foi divulgada a “carta final”, seguida do desmantelamento de todas as suas estruturas de apoio.
Arnaldo Otegi, ex-membro do ETA, hoje é líder do partido independentista EH Bildu.
Parcelas da sociedade civil espanhola, contudo, avaliam que o pedido de perdão tenha sido muito superficial e cobram ações mais efetivas em favor das vítimas e seus familiares. O então primeiro-ministro Mariano Rajoy, do Partido Popular Espanhol, declarou que o ETA não desfrutará da “impunidade por seus crimes”.
Aparentemente, a conciliação não parece uma possibilidade real no curto prazo.
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