Elaine Senise Barbosa
2 de maio de 2022
O Estado totalitário acredita que pode tudo, inclusive controlar fenômenos biológicos e demográficos. No contexto da pandemia de Covid-19, o governo chinês adotou uma abordagem absolutista em sua relação com a sociedade civil. A política “Covid-Zero” briga com a palavra “pandemia”: pan é um prefixo de origem grega para indicar “todos”. Todos os países tiveram (e terão) suas populações mais ou menos infectadas, como antes aconteceu com a gripe, a varíola ou o tifo – mas na velocidade do mundo de hoje.
Uma política voltada para zerar taxas de contaminação é absurda e fadada ao fracasso, sobretudo quando se considera a centralidade da China na economia mundial e o implacável influxo de estrangeiros. A única razão lógica para invocá-la é dar ao Estado e à sua gigantesca burocracia a autoridade policial para um vasto experimento de controle social que fere direitos humanos fundamentais dos cidadãos.
A pandemia eclodiu na China, em Wuhan, espalhando-se de lá para o mundo. Sob a política de Covid-Zero, os chineses foram poupados das ondas de contágios e mortes que se difundiram pelo resto do planeta – até a chegada da variante ômicron. Ironicamente, hoje, depois de intensas campanhas de vacinação, todo o mundo, menos a China, tornou-se capaz de conviver com um vírus que não será eliminado. A razão: Covid-Zero converteu-se em objetivo estratégico de Estado, a prova da proclamada infalibilidade do Partido Comunista Chinês e do seu líder, Xi Jinping.
O país foi posto em isolamento supostamente total desde o início de 2020. Se, no início da pandemia, ainda era possível justificar rigorosas quarentenas como a de Wuhan, isso mudou com o surgimento das vacinas. Contudo, os índices de vacinação no país permanecem inexplicavelmente baixos, especialmente entre os idosos.
Curioso que o mesmo governo que, há dois anos, exibiu pelas redes sua capacidade de construir um hospital em dez dias, seja incapaz de organizar uma campanha abrangente de vacinação. É possível confinar e calar as vozes das pessoas por semanas a fio, mas não é possível vaciná-las?
A bem da verdade, hospitais continuam sendo instalados a toque de caixa, embora a proximidade entre os leitos não tenha sentido do ponto de vista médico, mas faça bastante sentido para uma penitenciária. Mas por que a China prefere empenhar recursos imensos para controlar e isolar as pessoas ao invés de vaciná-las, a única intervenção realmente eficaz diante do vírus?
Instalação hospitalar em um prédio em Xangai. O panóptico em seu apogeu: do lado de fora há um olho que observa e vigia os confinados.
Vacinas? Não: lockdowns. A cidade de Xi’an, de aproximadamente 13 milhões de habitantes, foi completamente isolada do resto do país, e seus moradores quarentenados, em dezembro de 2021, quando uma testagem em massa indicou menos de cem casos positivos. Já em Yuzhou decidiu-se confinar mais de 1,1 milhão de pessoas após três casos confirmados de Covid. Até que o lockdown chegou a Xangai, metrópole cosmopolita e principal polo econômico da China.
Xangai, uma das cidades mais antigas do país, concentra em sua região metropolitana 25 milhões de habitantes. Sob lockdown draconiano desde o final de março, a imensa aglomeração urbana tornou-se foco de uma crise política que ameaça a credibilidade do Partido-Estado.
Poucos ainda acreditam nas estatísticas oficiais. Hong Kong, com população bem menor que a de Xangai, registra 9 mil mortos por Covid desde março. Em Xangai, os óbitos contam-se na casa de dezenas. A explicação encontra-se na manipulação das estatísticas. Em Hong Kong, todos os óbitos com teste positivo nos 28 dias anteriores são computados na coluna do coronavírus, mesmo se a causa mortis é outra (câncer, acidentes automobilísticos, suicídio…). Já em Xangai, todas pessoas com alguma comorbidade ficam fora da contabilidade de óbitos por Covid.
A política contamina as estatísticas. De um lado, trata-se de convencer a população da cidade formalmente autônoma de Hong Kong de que, talvez, só lhes reste o caminho do lockdown. De outro, em Xangai, é preciso registrar óbitos, para justificar o lockdown, mas eles devem ser escassos, para conservar o mito da infalibilidade da política de Covid-Zero.
Considerando-se o peso que o Estado chinês tem dado às novas tecnologias de controle da sua população, fica difícil não suspeitar que o que está em curso na China é um tremendo laboratório de engenharia social. Em Xangai, sob o pretexto de impedir que o vírus se espalhe, 25 milhões de cidadãos estão presos em suas casas ou em centros de isolamento. São monitorados permanentemente, dependem de sistemas coletivos de entrega de comida e precisam submeter-se a testes rápidos quase diários.
Ainda menos afortunados são os que residem nas vizinhanças de alguém que testou positivo. Muitos deles foram apartados de seus filhos doentes ou obrigados a abandonarem suas casas deixando as portas abertas para procedimentos de desinfecção. Outros, os que testam positivo, são transferidos para centros de isolamento carentes de condições sanitárias básicas ou hospitais improvisados em edifícios de escritórios esvaziados.
Quando instalou-se a pandemia, os cientistas responderam em velocidade inédita, formulando vacinas altamente eficazes. Os chineses participaram do esforço global. Depois de terem ocultado o surgimento do novo vírus, a China desenvolveu as vacinas Sinopharm e Sinovac/Coronavac, utilizadas em dezenas de países.
Contudo, o governo chinês recusou-se a aprovar e importar as vacinas com tecnologia mais avançada e maior eficácia protetiva aprovadas pelas agências reguladores dos EUA e da Europa. Além disso, não concluiu a imunização dos mais idosos, que fazem parte do grupo de maior risco para a Covid.
Fonte: Comissão Nacional de Saúde
O Estado totalitário precisa controlar, acima de tudo, os fluxos de informação. Na China, a mídia estatal ou semi-estatal repercute a voz do Partido-Estado. A muralha da censura das redes sociais faz o resto. Quando, no início do lockdown de Wuhan, vozes independentes começaram a acusar o governo pela morte do jovem médico Li Wenliang, o primeiro a lançar o alerta sobre o novo vírus, os exércitos de censores das redes restabeleceram o silêncio.
Hoje, Xangai desafia o silêncio. Desde a semana passada, um vídeo de seis minutos intitulado “Vozes de Abril”, produzido por habitantes anônimos de Xangai, rompeu a casca da censura. Ali, a crítica ao governo e à condução da emergência sanitária expande-se como condenação de um sistema de poder avesso aos direitos dos cidadãos.
“Vozes de Abril”, difundiu-se nas redes sociais chinesas WeChat e Weibo, e continuou driblando criativamente a malha da censura. Foi visto por dezenas de milhões de chineses. Algumas de suas mensagens: “Nós não comemos há dias”; “Este vírus não pode nos matar. A fome pode”; “Nem o telhado do hospital para onde fomos transferidos está pronto”.
No rastro do vídeo, as redes encheram-se de vozes de protesto contra as arbitrariedades sem fim. Um cidadão questiona as cercas erguidas em torno de casas e blocos residenciais: “Isso não é um perigo em caso de incêndio? Como as pessoas poderão escapar se portas e grades estão trancadas?”. Outro fala de respeito e direitos: “É desrespeitoso com os direitos das pessoas usar barreiras de metal para cercá-las como animais domésticos”.
A pressão de baixo manifesta-se, de algum modo, no interior do Partido-Estado. A agência oficial Xinhua noticiou um comunicado no qual Zang Tiewei, porta-voz da Comissão de Assuntos Legislativos do Congresso Nacional do Povo, delimita poderes:
“Sem a aprovação do governo popular local ou acima do nível do condado, nenhuma unidade ou indivíduo deve tomar medidas rígidas de isolamento, como fechar portas para isolar aldeias ou comunidades, e não deve adotar métodos rudes, como trancar portas e bloquear passagens para implementar isolamento domiciliar e controle rígido; exceto para aqueles que foram isolados para tratamento ou medidas de observação médica, outros proprietários ou inquilinos que tomaram medidas de proteção e cooperaram com as verificações de temperatura não devem ser impedidos de voltar para casa.”
Zang Tiewei disse também que é necessário tomar decisões prudentes de acordo com a lei, impedir a “simplificação” e “padronização” das medidas de controle sanitário, “minimizando o impacto na produção e na vida das pessoas e criando condições para o restabelecimento da ordem social normal e da produção o mais rápido possível.”
Xi Jinping corre contra o tempo. No Congresso do Partido Comunista Chinês de setembro, o líder espera garantir um inédito terceiro mandato. Até lá, a narrativa de triunfo da política de Covid-Zero não pode ser desafiada, pelo vírus ou pela insatisfação popular.
A irônica mensagem de um usuário do microblog Weibo diz: “Do weibo.com: boas notícias! Completamente resolvido o problema das compras de mantimentos em Xangai”, junto com a imagem de “sem resultados” na página eletrônica de busca.
Mas a ômicron não aceita ordens de ninguém. Os casos positivos começam a se acumular em Pequim. Na capital, sede do poder político, a perspectiva de um lockdown provoca corridas a supermercados e armazéns. Lá, desenha-se a próxima batalha da guerra sanitária total declarada por um poder estatal que não reconhece limites ou direitos.
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