UM GRITO DIFERENTE ECOOU NA CHINA

 

Demétrio Magnoli

5 de dezembro de 2022

 

Protestos não são novidade na China. Diariamente, registram-se dezenas de protestos fragmentários no vasto território chinês. Num país em que os cidadãos não podem falar pelo voto, eles gritam nas ruas. Contudo, no último fim de semana de novembro, ouviram-se manifestações inéditas, que pediam liberdade de expressão, a renúncia de Xi Jinping e o fim do monopólio de poder do Partido-Estado.

Fonte: The Guardian, 28/11/2022

A explosão de protestos nasceu em Urumqi, cidade da província ocidental do Xinjiang, onde se concentra a minoria uigur, causada pela política de Covid-Zero. Lá, um incêndio num bloco residencial provocou a morte de diversos moradores – e a população atribuiu a demora no socorro ao lockdown parcial imposto na área. Dali, espalharam-se para Xangai, Pequim e outras metrópoles, além de universidades das mais diversas províncias. 

O regime totalitário chinês aprendeu a conviver com protestos de rua. Ao longo das últimas décadas, tornaram-se habituais manifestações provocadas por insatisfações locais. Geralmente, os mais numerosos são protestos ligados a questões habitacionais, pois a carência de moradias é um problema agudo num país que experimenta acelerado ritmo de urbanização. Mas ocorrem também manifestações trabalhistas, atos contra fraudes e corrupção das autoridades municipais e por uma variedade de outros motivos.

Contam-se às centenas os protestos populares dos seis últimos meses. Mais de 70 deles foram provocados diretamente pela tensão social associada às ondas de lockdowns que atingem grandes e pequenas cidades. Como regra, porém, os manifestantes apontam o dedo para figuras menores da administração estatal, poupando a elite que controla as rédeas do poder.

Agora foi diferente. “Dêem-me liberdade ou me dêem a morte”, ouviu-se nas ruas, junto com “queremos liberdade”, enquanto centenas de pessoas exibiam folhas de papel em branco, sinalizando o veto à palavra dos cidadãos. Um deles, com a tal folha em branco nas mãos, explicou: “Penso que numa sociedade justa, ninguém deve ser criminalizado pelo que diz. Não deve existir uma única voz na nossa sociedade – precisamos de uma variedade de vozes.”

Desde 1989, ano das imensas manifestações pela democracia na Praça da Paz Celestial, a palavra política estava praticamente ausente das ruas chinesas. Mas quase três anos de totalitarismo sanitário romperam o silêncio.

 

Covid-Zero, a sociedade sitiada

Folhas de papel em branco, símbolo dos protestos de novembro na China

“Meus amigos e eu vivenciamos o lockdown de Xangai e o chamado punho de ferro do Estado caiu sobre todos nós”, contou um manifestante na metrópole do leste chinês. As tensões acumuladas pela política de Covid-Zero converteram-se em desafio direto ao regime.

Covid-Zero sintetiza a meta impossível de cortar totalmente as infecções, interrompendo a circulação do coronavírus. A imensa maioria dos países adotou estratégia diferente, baseada em restrições sanitárias mais ou menos rígidas destinadas a achatar a curva de contágios, a fim de proteger os sistemas de saúde e ganhar tempo até fabricação e aplicação de vacinas.

Austrália, Nova Zelândia e Cingapura escolheram a mesma estratégia da China, mas projetaram uma saída, após a vacinação em massa. O regime chinês, porém, converteu a política de Covid-Zero em um totem intocável, apresentando-a como prova da eficiência de seu modelo político e, ainda, utilizando-a como ferramenta de aprofundamento do controle social.

O advento da variante ômicron, no final de 2021, destruiu a estratégia de Covid-Zero. Mais infecciosa, a ômicron impôs ao regime chinês o recurso a sucessivos lockdowns, em ondas que se desenrolaram por diversas regiões e pelas maiores metrópoles do país. Os lockdowns foram acompanhados por testagens em massa, às vezes diárias, de populações urbanas inteiras, junto com o isolamento dos infectados e de seus contatos próximos. Nada disso, porém, foi capaz de cortar a transmissão do vírus.

Um grito diferente ecoou na China

Fonte: Comissão Nacional de Saúde da China

No final de abril de 2022, durante o lockdown de Xangai, quase 500 mil chineses estavam sob observação médica, isolados em instalações do governo ou em suas residências. O controle posterior dos contágios durou poucos meses. Em novembro, o contingente submetido a isolamento aproximou-se de 1,3 milhão.

Só um sistema totalitário armado com tecnologias da era da informação, seria capaz de implantar medidas sanitárias tão rigorosas por tanto tempo. Mas, até na China, a supressão prolongada de liberdades cotidianas básicas tem um limite. Os protestos de massa do final de novembro assinalaram o limite.

Encantado pelos níveis de controle social propiciados pela pandemia, o regime chinês fracassou na missão de vacinação. Os imunizantes chineses, baseados em técnicas rotineiras, são menos eficazes que as revolucionárias vacinas ocidentais de RNA mensageiro (mRNA). Mas, por razões de prestígio, a China recusou-se a adquirir vacinas estrangeiras.

Os funcionários chineses conseguiram a proeza de testar cidades inteiras diariamente, em ciclos de lockdown. Contudo, não completaram o esquema vacinal de todos os cidadãos testados. Atualmente, apenas 68% do grupo etário com mais de 60 anos e cerca de 40% dos idosos de mais de 80 anos receberam três doses das vacinas anti-Covid. O resultado é que algo em torno de 250 milhões de chineses idosos permanecem vulneráveis a quadros graves de Covid-19.

 

Sem saída

A China enfrenta um difícil dilema. De um lado, a política de Covid-Zero tornou-se um fardo pesado demais. De outro, abandoná-la significa, potencialmente, abrir os portais para uma convulsão sanitária.

Covid-Zero é insustentável, tanto na esfera da economia quanto na da política. A economia chinesa patina num lodaçal de baixas taxas de crescimento devido ao congelamento parcial das atividades imposto pelos lockdowns. Desse modo, rompe-se o contrato social implícito que sustenta a ditadura: o intercâmbio de crescimento econômico e elevação da renda pelo monopólio de poder do Partido-Estado. Além disso, como mostraram os protestos de massa, o totalitarismo sanitário já não pode ser mantido sem o uso permanente de repressão violenta.

Desistir da estratégia de Covid-Zero?

Uma saída abrupta representaria o reconhecimento, internacional e doméstico, de um fracasso histórico. O regime, que se exibe como infalível, teria grande dificuldade para admitir que falhou.

Há mais que prestígio político em jogo. Justamente devido à estratégia de Covid-Zero, os chineses não experimentaram as ondas de infecções pelo coronavírus que conferiram alguma imunidade às populações de tantos outros países. Ao mesmo tempo, a vacinação incompleta e pouco eficaz deixa centenas de milhões de chineses suscetíveis ao risco de internação e óbito.

Segundo alguns modelos estatísticos, o levantamento completo das restrições sanitárias provocaria um pico de 45 milhões de casos diários de Covid-19, junto com a demanda de mais de 400 mil leitos de terapia intensiva (quase sete vezes a capacidade existente) e, em poucos meses, mais de 600 mil óbitos. Por isso, a rápida anulação das restrições sanitárias poderia provocar turbulências sociais ainda maiores, além de uma prolongada estagnação econômica.

Sistemas totalitários são capazes de agir celeremente em situações de emergência. Mas, ao contrário das democracias, tendem a adotar soluções insustentáveis, no horizonte de longo prazo. A saída costuma ser a violência estatal desenfreada.

 

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