Entendermos a história do conceito de autodeterminação no pensamento político-jurídico contemporâneo é uma ferramenta importante porque os “direitos” não surgem naturalmente mas, antes, expressam o desenvolvimento das sociedades. Os direitos são historicamente construídos. Nesse sentido, o que se entendeu por “direito à autodeterminação” variou nos últimos dois séculos.
A compreensão que hoje temos sobre o direito à autodeterminação começou a ser moldada pela Carta das Nações Unidas de 1945. Nas décadas seguintes, o princípio foi reiterado em outras convenções, pactos e declarações, adicionando interpretações que refletiam os debates políticos no campo do direito internacional. Mas a história do conceito começa muito antes, associada ao desenvolvimento da economia capitalista e ao individualismo burguês durante a Idade Moderna. É a história de como indivíduos e comunidades adquiriram consciência política de si mesmos.
Norberto Bobbio (à direita) com o filósofo Aldo Capitini, em Perugia, Itália
Norberto Bobbio foi um conceituado professor de Filosofia do Direito e segue como uma referência fundamental anos após a sua morte. Em seu Dicionário de Política, verbete autodeterminação, diz:
“Geralmente entende-se por autodeterminação ou auto decisão a capacidade que populações suficientemente definidas étnica e culturalmente têm para dispor de si próprias e o direito que um povo dentro de um Estado tem para escolher a forma de governo. Pode portanto distinguir-se um aspecto de ordem internacional que consiste no direito de um povo não ser submetido à soberania de outro Estado contra sua vontade e de se separar de um Estado ao qual não quer estar sujeito (direito à independência política) e um aspecto de ordem interna, que consiste no direito de cada povo escolher a forma de governo de sua preferência.”
Bobbio também insiste em outra questão fundamental: não basta proclamar direitos para que eles sejam de fato reconhecidos; é preciso garantir que os direitos sejam cumpridos. Invocar um “direito” é sempre forte e expressa uma meta política, mas é preciso que as instituições reconheçam esses direitos e, mais do que isso, garantam sua aplicação. Portanto, quando se fala em direitos, deve-se atentar para a diferença entre direitos reivindicados, direitos legalmente reconhecidos e direitos efetivamente garantidos.
No início do século XVI, os reinos da Europa estavam organizados na forma de monarquias absolutistas sustentadas pela ideologia do direito divino dos reis. Naquela época, o povo nada mais era do que o conjunto dos súditos, ou seja, pessoas subordinadas à vontade dos governantes, possuidoras de obrigações e carentes de quaisquer direitos fundamentais.
Papa Gregório VII (1073-1085) lançou o dogma da infalibilidade dos papas para afirmar a precedência da Igreja (poder espiritual) sobre o Império (poder temporal)
Não havia ainda relação direta entre um território e um povo específico e o que as pessoas reconheciam como “sua nação” eram as vilas onde nasciam e morriam. A autoridade vinha de Deus e, por isso, tornou-se vital para os reis absolutistas controlarem as igrejas em seus reinos. Se o monarca aderisse a uma fé, mas os súditos não, isso seria fonte de contestação da autoridade real.
Para se afirmarem como reis de largos territórios, os novos senhores precisavam enfrentar as duas forças que, durante os mil anos da Idade Média, representaram a ordem e o mundo romano: a Igreja Católica e o Sacro Império Germânico. Ambos eram herdeiros de uma concepção imperial do poder, ou seja, expansionista e multiétnica. Observe-se que a palavra “católico” vem do latim e quer dizer universal.
Já os monarcas absolutistas tinham ambições mais limitadas, contentando-se em dominar os reinos. Por isso, uma das mais relevantes disputas jurídico-políticas entre os século XVI e XVIII girou em torno da questão das soberanias, ou seja, quem mandava onde?
Os reis precisavam se libertar da dependência administrativa e jurídica em relação ao clero católico. Assim, na época do Renascimento Cultural, entre os séculos XIV e XVI, os reis financiaram a criação de universidades e cursos de Direito em seus reinos. O conhecimento e administração das leis era o primeiro atributo de um governante.
O calvinista François Dubois representou o massacre dos huguenotes pelos católicos ocorrido durante a noite de São Bartolomeu de 1572, em Paris
O advento da Reforma Religiosa desencadeou as “guerras de religião” opondo católicos e protestantes. Durante dois séculos, esses conflitos produziram espetáculos de intolerância, brutal violência e morticínio indiscriminado de gente que não aceitava abrir mão da própria fé para agradar aos governantes.
Logo no início desse processo, em 1555, depois de três décadas de embates entre católicos e luteranos nas terras do Sacro Império Germânico, um acordo entre os príncipes protestantes e o imperador católico Carlos V estabeleceu uma regra de ouro com a qual todos se comprometiam: cada príncipe era livre e pleno – ou seja, soberano – para decidir qual religião seus súditos deveriam seguir. “Cuius regio, eius religio” (“a cada reino, sua religião”) foi o fundamento do Direito Romano que orientou a chamada Paz de Augsburgo.
A mistura entre disputas territoriais e conflitos religiosos atingiu seu ápice na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Ela envolveu boa parte dos reinos europeus e trouxe grandes prejuízos humanos e materiais para todos os envolvidos. Dela, emergiram duas questões: como estabelecer uma paz duradoura e, mais importante, como os Estados poderiam controlar a fé/consciência de seus súditos?
Hugo Grotius (1583-1645) foi um dos primeiros juristas a se preocupar com o regramento do sistema internacional de Estados
A Guerra dos Trinta Anos terminou com a assinatura da Paz da Westfália, tratado que simboliza o nascimento do Direito Internacional e deve ser visto como a resposta à primeira pergunta. O acordo, resultado de negociações e compromissos assumidos pelos Estados, estabeleceu limites de territórios e soberanias que se mantiveram basicamente intactos até as guerras napoleônicas, no início do século XIX. Os Estados começavam a ser reconhecidos como entidades políticas mais perenes que a vida de seus governantes.
Nas análise do filósofo Roberto Romano: “Variam as doutrinas que fundamentam as três confissões cristãs, e geram atitudes diferenciadas face ao poder civil. As divisões teológicas e disciplinares se prolongam em atos políticos. Na busca de garantir o espaço público e a legalidade a seu favor, as igrejas produzem manifestações pacíficas, rebeliões, guerra, sempre na lógica da exclusão, algo que se manifesta como perigo para todo e qualquer Estado. Desde a Reforma, nota-se, de um lado, a radicalização sempre maior das igrejas e seitas, com frutos deploráveis e, de outro, o realismo dos governantes que procuram manter sua soberania acima das divisões de seus governados – protestantes e católicos – e tentam separá-los dos beligerantes. Em Westfália, após muitas violências, a separação entre Igreja e Estado está garantida, pelo menos no plano prático e na diplomacia.” (“Paz da Westfália (1648)” IN: História da Paz, p. 69-70).
Das dores, experiências e reflexões provocadas pelas guerras de religião surgiu a filosofia Iluminista: a proposta de separar Estado e Igreja (laicização); a concepção de um poder político compartilhado e eleito por iguais; a crença na existência de “direitos humanos naturais” (vida, liberdade e resistência à opressão).
O filósofo Immanuel Kant explicou que Iluminismo era “Esclarecimento” pelo uso da Razão, e que o conhecimento e as ciências conduziriam o ser humano à liberdade individual. Era o livre-arbítrio no seu sentido pleno.
Bobbio explicava que “No plano histórico (…), a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado Moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano. A inversão de perspectiva, que a partir de então se torna irreversível, é provocada, no início da era moderna, principalmente pelas guerras de religião, através das quais se vai afirmando o direito de resistência à opressão, o qual pressupõe um direito ainda mais substancial e originário, o direito do indivíduo a não ser oprimido, ou seja, a gozar de algumas liberdades fundamentais: fundamentais porque naturais, e naturais porque cabem ao homem enquanto tal e não dependem do beneplácito do soberano (entre as quais, em primeiro lugar, a liberdade religiosa).” (A Era dos Direitos, p. 8).
As negociações entre os representantes das 13 colônias que originaram a Declaração de Independência, aprovada dia 4 de julho de 1776, em pintura de John Trumbull
Quando os representantes das ex-colônias inglesas se reuniram na Filadélfia, em 1787, para escrever a sua Constituição – a prova máxima do “contrato social” iluminista – eles expressaram sua crença na capacidade de homens livres, iguais aos olhos de Deus, escrevendo “Nós, o povo…”. Foi essa a semente da ideia contemporânea de autodeterminação.
Com a Revolução Francesa, resistir à opressão tornou-se definitivamente um direito. No lugar do súdito, o cidadão portador de direitos naturais inalienáveis. Em 1789 o povo francês proclamou a legitimidade de derrubar o rei marcando a ruptura com a aura divina dos governantes.
Emergia uma nova postura, de auto afirmação do indivíduo perante o Universo. As coletividades reorganizaram as formas de governo e de sociedade apoiadas na ideia da livre adesão de indivíduos e coletividades ao “contrato social”. As revoluções liberais estabeleceram um novo paradigma ao associarem a autodeterminação ao princípio democrático de decisão da maioria.
Quando o governante deixou de ser um “ungido de Deus” e a legitimidade política passou a depender da aprovação de setores cada vez mais amplos da sociedade, o romantismo e o nacionalism0 cumpriram o papel de idealizar a Nação e o Povo e garantir essas maiorias. “À medida que os antigos meios – predominantemente religiosos – de assegurar a subordinação, a obediência e a lealdade se desagregavam, a necessidade, agora manifesta, de algo que os substituísse foi atendida pela invenção das tradições, pelo uso de antigos e experimentados suscitadores de emoções como a coroa, a glória militar e outros meios novos, tais como o império e a conquista colonial.” (Eric Hobsbawm. A era dos impérios, p. 153-154).
A Liberdade Guiando o Povo foi pintada por Eugène Delacroix, em 1830, sob o impacto das revoluções liberais ocorridas naquele ano em diferentes reinos da Europa
A tomada de consciência dos povos em sua luta por autodeterminação contra as monarquias absolutistas, que caracteriza a política europeia do século XIX, produziu uma nova ideologia política: o nacionalismo. Com ele, emergiu a ideia de que existe uma coletividade de pessoas livres que decide seu destino político.
O novo entendimento fez multiplicarem-se as demandas por independência territorial, em prejuízo dos impérios teocráticos de origens medievais que insistiam em sobreviver. Grupos insurgentes na Grécia, Bulgária, Romênia e Sérvia se livraram do domínio do Império Turco-Otomano. Idealistas invocaram a “nação” para unificar a Itália e a Alemanha em oposição ao Império Austro-Húngaro. Estudantes vindos das escolas criadas pela nova economia industrial e urbana criaram movimentos como a “Jovem Irlanda”, a “Jovem Itália”, a “Jovem Grécia”.
Ao mesmo tempo, a expansão imperialista levava os europeus a lerem da mesma maneira todos os modelos de organização político-territorial existentes nos demais continentes, empregando padrões que obscureciam ou destruíam outras experiências de organização social em nome da fé cristã. De todas as ações, a aplicação das regras do darwinismo social ajudou a inventar classificações raciais e étnicas que justificavam o poder de uma minoria ocupante sobre grandes maiorias exploradas. Era o “fardo do homem branco”.
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