Angela Merkel governa a Alemanha desde novembro de 2005. Nas próximas semanas, assim que se formar a nova coalizão, deixa o cargo de chanceler (primeira-ministra) e se aposenta. Dependendo da data exata da inauguração do próximo gabinete, poderá superar seu antecessor e mentor, Helmut Kohl, tornando-se a mais longeva chefe de governo do país.
“Se a Europa falhar na questão dos refugiados, não será a Europa que desejamos”, alertou Merkel em 2015. Ela abriu as portas de seu país à onda de refugiados da guerra síria e chamou as demais nações da União Europeia a acompanhá-la: “Não quero entrar numa competição na Europa sobre quem pode tratar pior essas pessoas”. O gesto da líder que agora desaparece de cena foi a iniciativa mais ousada na defesa dos direitos humanos adotada por um estadista europeu desde a Segunda Guerra Mundial.
Angela Merkel é empossada pela primeira vez na chefia de governo da Alemanha, em 2005
Merkel desafiou, no seu ato de heroísmo moral, advertências que surgiam de todos os lados. Ross Douthat, colunista do The New York Times, classificou como “tolo” aqueles que acreditassem na possibilidade da Alemanha “absorver pacificamente uma migração nessa dimensão e escala de diferença cultural”.
A palavra chave aí não é dimensão: Israel, por exemplo, absorveu ondas migratórias relativamente maiores, sendo a mais recente a transferência de russos entre 1991 e 1995. Mas, naquele caso, os imigrantes eram judeus estabelecendo-se num Estado judeu, não muçulmanos deslocando-se para uma nação majoritariamente cristã. O ponto explícito de Douthat, como de tantos outros, era a diferença cultural.
Henry Kissinger, ex-assessor de Richard Nixon e ex-secretário de Estado de Gerald Ford, uma referência no debate geopolítico, profetizou uma catástrofe: “Abrigar um refugiado é um ato humanitário, mas receber um milhão de estrangeiros é colocar em risco a civilização alemã”. Kissinger não disse, mas deixou implícito na referência à “civilização” que o perigo residia no ingresso de um milhão de muçulmanos.
“O Islã faz parte da Alemanha”. A frase pertence ao ex-presidente alemão Christian Wulff, que a pronunciou em 2010, mas foi repetida por Merkel em janeiro de 2015, em repúdio a manifestações anti-imigração deflagradas em Dresden e outras cidades alemãs. Registre-se: a chanceler endossou a afirmação de Wulff apenas um dia depois de marchar em Paris, ao lado do então presidente francês François Hollande, numa homenagem multitudinária às vítimas de atentados jihadistas.
A abertura das portas aos refugiados sírios representou uma inigualável vitória moral alemã. Na crise dos refugiados que se iniciou em 2015, nenhum outro país europeu desempenhou papel similar. No restante da União Europeia, com a exceção solitária da Suécia, os governos exercitaram a xenofobia, desafiando os tratados internacionais sobre asilo para impedir a entrada dos sírios que abandonavam uma pátria calcinada.
Fonte: Migration Policy Institute
A França e a Itália, em especial, viraram as costas ao apelo de Merkel. O Reino Unido, ainda na União Europeia, nem mesmo figurou entre os quatro maiores receptores europeus de refugiados. Enquanto isso, a população de refugiados na Alemanha saltava de menos de 220 mil em 2014 para 670 mil em 2016 e perto de 1,2 milhão em 2019, dos quais cerca de 900 mil eram sírios.
No início, alemães das mais diversas cidades recepcionaram de braços abertos os refugiados. “Quando seus trens pararam na reluzente estação de Munique, homens, mulheres e crianças exaustos foram recebidos por um mar de cartazes que diziam ‘Benvindo à Alemanha’, erguidos por cidadãos que aplaudiam nas plataformas”, relata Kati Marton numa biografia de Merkel que acaba de ser lançada.
Os alemães mantêm uma relação intensa, angustiada, com sua história nacional. A mancha do nazismo não será jamais apagada, mas a vasta maioria da sociedade alemã procura compensá-la – e revelar que a nação aprendeu. Voluntários transformaram escolas e armazéns em dormitórios provisórios para os refugiados. O governo agiu rápido, distribuindo-os para inúmeras cidades, a fim de evitar a formação de guetos étnicos nas periferias dos maiores centros urbanos.
Mas a reação organizou-se com igual velocidade, na Alemanha e fora dela. As pressões sobre a chanceler originavam-se não só da oposição, mas do interior de seu próprio partido. O primeiro-ministro húngaro Viktor Orban aproveitou a oportunidade para erguer-se como defensor da “civilização cristã europeia”, inspirando partidos da direita nacionalista em todo o continente. Na Itália, Matteo Salvini, o líder da Liga, batia os tambores da xenofobia. No Reino Unido, os defensores da retirada britânica da União Europeia cavalgaram o momento para triunfar no referendo do Brexit, em junho de 2016.
Merkel cedeu ao realismo político em 2016, dobrando-se à vontade da União Europeia de firmar um acordo com a Turquia destinado a barrar a entrada de novas ondas de refugiados. A Turquia, que funcionava como rota principal da migração, recebeu duas parcelas de fundos europeus, no valor de 3 bilhões de euro cada, para impedir a passagem dos refugiados rumo à Grécia.
Pelo acordo, o governo turco aceitava a transferência de migrantes irregulares apreendidos em território grego. Além disso, aventou-se vagamente o reinício das sempre infrutíferas negociações de adesão turca à União Europeia. Como resultado, a Turquia chegou a abrigar quase 3,7 milhões de refugiados sírios em 2018, um número que não se reduziu muito de lá para cá.
Mesquita no Palácio de Schwetzingen, na Alemanha. A mesquita, completada em 1795, destinava-se a alardear a tolerância religiosa iluminista da nobreza alemã da época
Os turcos étnicos, quase todos muçulmanos, formam a maior minoria na Alemanha. São algo entre 4 milhões e 7 milhões, segundo diferentes estimativas, pois o censo alemão não classifica os indivíduos segundo a etnicidade. A imigração de turcos começou no século XIX, a partir do Império Turco-Otomano, e prossegue até hoje, a partir da Turquia ou dos Bálcãs. Muito antes da grande migração síria, o Islã faz parte da Alemanha.
Contudo, em março de 2018, o novo ministro do Interior alemão, Horst Seehofer, concedeu entrevista ao jornal Bild para dizer que “o Islã não faz parte da Alemanha”, uma nação “esculpida pelo cristianismo”.
Seehofer pertence à União Social-Cristã (CSU), partido regional da Baviera que mantém parceria permanente com União Cristã-Democrata (CDU) de Merkel. Sua entrevista, destinada a estabelecer um polo de tensão dentro do próprio governo, delineava uma estratégia política e eleitoral. Tratava-se de disputar o eleitorado atraído pelo discurso anti-imigrantes e islamofóbico da Alternativa para a Alemanha (AfD), partido da extrema-direita alicerçado nos estados da antiga Alemanha Oriental.
Nas eleições federais de 2013, a CDU/CSU obteve 41,5% dos votos. Em 2017, enquanto os refugiados sírios estabeleciam-se na Alemanha a votação do bloco democrata-cristão reduziu-se para 33%. Finalmente, em setembro de 2021, desabou para 24%, numa derrota histórica. É impossível não enxergar na abertura aos refugiados uma das causas relevantes para o fracasso eleitoral. No fim, sob esse ponto de vista, Merkel perdeu.
Contudo, há uma vitória maior na derrota político-eleitoral. “Nós podemos fazer isso”, disse a chanceler em 2015 – e tinha razão. As catástrofes previstas por Kissinger e muitos outros nunca se concretizaram.
De modo geral, com as exceções de praxe, os refugiados sírios integraram-se à sociedade alemã. O governo de Merkel recusou o canto de sereia do multiculturalismo e exigiu que os imigrantes aprendessem a língua alemã – e eles aprenderam. Não se transformaram, como se temia, numa massa de desempregados depende de ajuda estatal. De fato, a maioria encontrou lugares no mercado de trabalho, adicionando mão de obra jovem à envelhecida população alemã.
Um “verso para os refugiados”, postagem do escritor sírio Lukman Derky em mídia social
No Ano Novo de 2016, num surto de violência, uma multidão de imigrantes do Oriente Médio e da África do Norte atacaram mulheres na cidade alemã de Colônia. O evento forneceu munição à xenofobia e à islamofobia. Na verdade, porém, aquele foi um evento singular: desde 2015, a Alemanha experimenta redução na criminalidade étnica e, também, um declínio na quantidade de atentados jihadistas.
A AfD perdeu terreno consistentemente. Em 2017, no seu ápice, o partido extremista obteve 12,6% dos votos e 94 cadeiras no Bundestag, o parlamento federal. Há pouco, em setembro, sua votação caiu para 10,3%, o que proporcionou-lhe 83 cadeiras. Os tema da imigração e dos refugiados sírios tiveram pouco impacto numa eleição que levará ao poder uma coalizão de centro-esquerda liderada pelos social-democratas.
Merkel deixa a cena, mas seu legado permanece. A chanceler provou que tinha razão em 2015.
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