Em 2021, enquanto os Jogos Olímpicos no Japão iniciaram-se com a celebração da diversidade, no Brasil de Jair Bolsonaro, o tenente da reserva e coordenador da Funai no Vale do Javari (AM), Henry Charlles Lima da Silva, aparece em uma gravação realizada em 23 de junho incitando indígenas da etnia Marubo a “meter fogo nos indígenas isolados”. O cidadão que tem por função a proteção dos direitos indígenas ainda disse: “Não estou aqui pra desarmar ninguém, também não estou aqui para ser falso e levantar bandeira de paz”.
Não é novidade, no governo Bolsonaro, a presença de militares ocupando cargos para os quais são totalmente despreparados. Em dois anos de governo, o tenente Lima da Silva já é o terceiro nome a ocupar esse posto na Funai. Os dois anteriores foram removidos após críticas pesadas, inclusive com intervenção do Ministério Público. É que suas credenciais não deixavam dúvidas sobre qual é o verdadeiro projeto do governo para os povos originários que habitam a Terra Brasilis: convertê-los todos ao cristianismo neopentecostal.
O presidente da República e a sua fiel “bancada da Bíblia” no Congresso Nacional advogam por políticas que violam o 18º artigo da Carta de Direitos Humanos da ONU, dedicado a defender a “liberdade de pensamento, de consciência e de religião”. Lembremos que a Funai foi posta sob a alçada do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela nada inofensiva Damares Alves. A ministra é uma das fundadoras da ONG Atini, investigada pelo Ministério Público por sequestro e tráfico de crianças indígenas.
Indígenas isolados na região do Vale do Javari, no Amazonas
Entidades internacionais têm emitido alertas para o alto risco que o atual governo representa para os povos originários, em especial para os grupos que permanecem apartados do contato com a nossa sociedade. Os chamados “isolados” são assim caracterizados pelo seu modo de vida, e isso inclui uma baixíssima exposição às doenças dos “homens brancos”. A Funai confirma a existência de 28 grupos isolados, mas é possível que existam mais de 70, sendo que que em mais de uma ocasião eles demonstraram não querer aproximações. A Constituição em vigor e leis internacionais reconhecem o direito desses grupos permanecerem distantes do contato com os “civilizados”.
O primeiro alerta vermelho lembra que contatar os “isolados” pode desencadear epidemias, com riscos irreversíveis de desaparecimento de etnias. Foi o que ocorreu com os Nambikwara, que contavam dez mil pessoas quando dos primeiros contatos e foram reduzidos a mil. Os demais morreram de sarampo, gripe, coqueluche e gonorreia, de acordo com dados levantados pelo Instituto Sócio Ambiental (ISA). É o que tem sido chamado pelos antropólogos de etnocídio.
“A espada, a cruz e a fome dizimaram a família americana” diz um poema do peruano Pablo Neruda que aborda a colonização do continente pelos europeus na Idade Moderna. No Brasil de Bolsonaro e das Forças Armadas “guardiãs da Amazônia”, cabe uma paráfrase: a espada dos militares bolsonaristas e a cruz do fundamentalismo cristão ameaçam dizimar os povos indígenas. Madeireiros ilegais, mineradores clandestinos e missionários estão de braços dados com o governo federal para eliminar as últimas barreiras à devastação da Amazônia brasileira, cujas terras indígenas totalizam um quarto da área.
A ameaça será concretizada se o Projeto de Lei 490, aprovado há pouco pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, for confirmado pelo plenário e, depois, pelo Senado. O PL 490 legaliza o garimpo, a extração de madeira, a agricultura industrial e outros projetos de “interesse nacional” em terras indígenas, sem sequer precisar da aprovação das comunidades locais. E mais, alterará as regras de “Restrição de Uso”, permitindo que as demarcações de territórios já realizadas ou em andamento venham a ser questionadas na justiça, reduzindo áreas ou eliminando-as totalmente.
Indígenas protestam contra o PL 490 em Brasília, em junho de 2021
A maior ameaça recai sobre os indígenas isolados, pois a lei permitirá contatos forçados em nome do “interesse nacional”, com o envio de equipes de contato organizadas por terceiros. “E quem seriam esses terceiros?”, indaga Fabrício Amorim, ex-funcionário da Funai e atualmente no Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, em reportagem publicada na National Geographic. “Missionários, é claro. O PL490 abre caminho não só para ruralistas, mas também para evangélicos com uma visão extremista de divulgar a palavra de Cristo aos povos isolados.”
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Igreja Católica, também protestou contra a escolha da Funai. “O governo Bolsonaro dá evidentes sinais de abandono à perspectiva técnico-científica, do respeito ao direito de existência livre desses povos, com seus próprios usos, costumes, crenças e tradições, em seus territórios devidamente reconhecidos e protegidos, para uma orientação neocolonialista e etnocida, de atração e contato forçados, com o uso do fundamentalismo religioso como instrumento para liberar os territórios destes povos à exploração por grandes fazendeiros e mineradores”. O Cimi reconhece como era danosa a forma de conversão forçada que marcou a história do catolicismo, atuando em defesa dos povos originários e da preservação de suas culturas.
Os maiores defensores do PL 490 são os aliados do agronegócio e os fundamentalistas evangélicos que detêm quase todos os votos necessários para a aprovação do projeto. Mas, na opinião de outro ex-funcionário da Funai, o biólogo Daniel Cangussu, em depoimento ao site Repórter Brasil, “quando me perguntam quais as principais pressões territoriais para os isolados, respondo que não são os madeireiros, os garimpeiros e os povos do entorno. São os missionários.”
A “bancada evangélica” em culto realizado dentro da Câmara dos Deputados, em 2018
Há uma série de questões ambientais, econômicas e culturais relacionadas ao debate sobre como o Estado brasileiro deve tratar os povos originários. A Constituição de 1988 abandonou a antiga visão assimilacionista que pugnava pela incorporação dos indígenas “à comunhão nacional”. De 1988 para cá, pelo menos até 2018, o marco legal pautava-se pelo respeito à diversidade sociocultural e linguística dos ameríndios, bem como pela proteção de suas terras, com a devida demarcação dos territórios.
Fonte: Jornal O Tempo
O aspecto que nos interessa aqui é o da militância religiosa fundamentalista, que ignora as leis nacionais em nome da obediência às “leis de Deus”.
O Estado laico é uma das mais importantes conquistas das chamadas revoluções burguesas, de matriz iluminista. A separação entre Estado e religião é crucial para evitar perseguições, guerras e intolerância generalizada e é uma garantia de liberdade de crença individual. Se o Estado tem uma religião, a máquina pode entender (como entendeu na Idade Moderna europeia) que aqueles que professam uma crença distinta da oficial são pessoas potencialmente subversivas e devem ser tratadas como tal.
O problema que vem se manifestando nas últimas décadas em diversos países do Ocidente é como lidar com o funcionário público que coloca sua fé acima das leis do Estado ao qual serve. Nos Estados Unidos, por exemplo, estão chegando aos tribunais vários processos movidos por LGBT+ contra funcionários estaduais que se recusam a aplicar as leis que reconhecessem seus direitos, como casamento e adoção.
No Brasil, o governo federal resolveu mandar às favas a laicidade do Estado desde que “Deus” virou lema de governo. O presidente Bolsonaro teve apoio decisivo da maior parte das igrejas evangélicas para se eleger e, hoje, esse grupo é ainda sua maior referência eleitoral. Há pouco, vimos o vice-presidente Hamilton Mourão ser enviado a Angola em visita oficial – ou seja, paga com dinheiro público – a fim de pedir ao presidente angolano que a Igreja Universal possa voltar a atuar no país…
Mas, para que atravessar o oceano se há uma Amazônia repleta de “pagãos” a serem convertidos? Hoje, grupos evangélicos originários dos Estados Unidos e pastores neopentecostais brasileiros disputam palmo a palmo uma das últimas fronteiras para o missionarismo, especialmente o de tipo romântico, que se lança ao desconhecido, descobre “selvagens” e “salva almas para Deus”. É a versão cínica das aventuras do Dr. Livingstone na África. Os pastores de hoje seguem falando em “espíritos demoníacos”, “maldições”, “fogo purificador” para se referirem à cultura do “outro”.
Perpera Suruí, antigo pajé da tribo paiter suruí, já convertido por uma igreja pentecostal na qual atua como zelador. Sua história foi retratada no filme Ex-Pajé, de 2018
Uma organização fundamentalista destacada é a norte-americana Missão Novas Tribos (MNT) e sua sessão no Brasil, da qual faz parte outa entidade, a Jovens com uma missão (Jocum), que tem atuação intensa junto às aldeias. Assim eles se apresentam: “Por determinação inquestionável, arriscamos nossas vidas e jogamos tudo por Jesus Cristo até alcançarmos a última tribo, independentemente de onde essa tribo possa estar”. A entidade foi criada há 70 anos e coleciona denúncias que incluem aliciamento, trabalho escravo e assassinato puro e simples (afinal, o que são alguns recalcitrantes mortos diante da glória de converter toda a tribo?). Devido às denúncias, a MNT mudou a marca fantasia e agora se apresenta como Ethnos360.
O nível de etnocentrismo é tal que esses missionários, em 2021, ignoram que o que praticam é crime: assédio, coerção, aliciamento. Na primeira página do site do MNTB, celebra-se a aquisição de um helicóptero destinado a alcançar os índios isolados. Sem apoio governamental eles estariam tão à vontade para abertamente violarem as leis do país?
Daniel Cangussu contou, na entrevista citada antes, que logo no início do governo Bolsonaro, ele foi obrigado a levar o senador Magno Malta e sua então auxiliar Damares Alves a um grupo isolado, apesar dessa solicitação contrariar sua prática profissional. Eis o ponto: será legítimo que em um Estado laico o presidente e seus apoiadores disponham da máquina pública para fazer proselitismo religioso, ainda mais expondo setores da população que são protegidos exatamente por suas fragilidades biológicas e diferenças culturais?
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