Por um breve momento, uma das ditaduras mais longevas da África no pós-Guerra Fria pareceu ter um fim inesperado. Idriss Déby Itno, no comando do Chade desde 1990, morreu em 16 de abril, poucas horas depois de confirmada sua sexta reeleição, em um pleito boicotado pela oposição em protesto contra o autoritarismo do regime.
Os militares logo deram a versão oficial dos fatos: o presidente foi ferido enquanto liderava suas tropas na repressão a rebeldes que marchavam em direção à capital com o intuito de derrubá-lo. Entretanto, não houve brecha para otimismo, pois a morte de Déby foi seguida por uma mudança inconstitucional e violenta. Um pronunciamento militar colocou seu filho no poder.
Mahatma Idriss Déby Itno, um general de 37 anos, ocupava o cargo de Chefe da Guarda Presidencial do próprio pai antes de sua ascensão abrupta. Pela Constituição, o líder do parlamento deveria assumir no caso de morte do chefe de Estado, organizando novas eleições em até três meses. Todavia, o herdeiro logo demitiu os integrantes do governo anterior e fechou provisoriamente o parlamento. Ao anunciarem a morte do ditador, os militares prometeram que Mahatma, apelidado de “Kaka”, ficará no poder por 18 meses, durante os quais preparará eleições “livres e democráticas”.
No funeral, o presidente francês Emmanuel Macron dirigiu-se diretamente ao caixão: “Você viveu como um soldado, e morreu como um soldado, com armas na mão”. Completou: “Você deu sua vida pelo Chade e em defesa de seus cidadãos”.
Desde a independência, o Chade é visto como um baluarte de estabilidade pelo Ocidente, em meio a uma vizinhança conturbada, que inclui a falida Líbia, o Sudão e a República Centro-Africana (RCA). Assim como seu antecessor, Déby compreendeu como atrair apoio ocidental: colocar-se como esteio firme na luta contra um inimigo maior: no momento, o jihadismo. Tal compromisso serviu como salvo-conduto para a manutenção de um front interno de repressão contra qualquer forma de oposição.
N’Djamena, a capital, é a sede das tropas francesas vinculadas à Operação Barkhane, que conta com o apoio do Níger, Mali, Burkina Faso e Mauritânia, para combater grupos jihadistas que atuam no Sahel. Uma mão lava a outra: tanto em 2008 como em 2019, tropas francesas foram essenciais para proteger Déby das investidas de forças rebeldes, enquanto tropas do Chade foram movimentadas para combater o Boko Haram no nordeste nigeriano em 2015.
O francês Macron (à esquerda), no funeral de Idriss Déby, ao lado do novo governante do país, o filho do finado presidente, Mahatma Idriss Déby Itno
As fronteiras do Chade foram desenhadas pelo imperialismo francês. Pivô entre os domínios que a França consolidava no Magreb e na Africa Ocidental e Equatorial, o Chade emergiu independente em 1960.
O território chadiano compreendia a metade oriental da bacia hidrográfica do Lago Chade, hoje reduzido a aproximadamente 10% de seu volume original. O recuo de suas águas, dispersas em inúmeros pequenos lagos menores entre os territórios da Nigéria, Níger, Camarões e Chade, dá espaço a uma das piores crises socioambientais da África atual. É no rastro dessa miséria regional que o Boko Haram arregimenta seus adeptos.
O ex-presidente François Tombalbaye, em visita a Israel, em outubro de 1959
Ao Chade restou uma vasta parte ao norte, desértica e empobrecida, herdeira de antigos reinos muçulmanos ligados ao comércio transaariano de escravos. No sul, nas savanas do Sahel, encontra-se uma zona parcialmente cristã e ressentida em relação ao passado de submissão às garras do tráfico.
Os sara, etnia majoritária da porção meridional, foram favorecidos pelos franceses na montagem da incipiente administração pública organizada durante a colonização. Com a saída dos franceses, não demorou muito para que as etnias do norte, em geral islâmicas e de influência árabe e berbere, se rebelassem contra esse privilégio.
A hegemonia sara deslizou então para o comando das Forças Armadas em meio à euforia da independência. Atualmente, os sara são considerados uma etnia sob risco de massacre.
François Tombalbaye, um sara, foi empossado como presidente e logo se revelou um líder autocrático. Em 1965 iniciou-se uma guerra civil. A partir daí o norte desértico se tornou campo de manobra de facções revoltosas das forças armadas, prenhe também de dissensões violentas, de base étnica, entre os próprios rebeldes. Tombalbaye acabou assassinado por militares dissidentes em 1975.
A guerra civil terminou apenas em 1979, com a formação de um governo de união nacional apoiado pela vizinha Líbia. O ditador líbio, Muammar Kadhafi, reivindicava a chamada Banda de Aozou, território do Chade de 115 mil km², e esperava que o novo governo atendesse seus interesses bastante específicos, o que não ocorreu. Preocupados com as investidas cada vez mais tenazes da Líbia na direção do Chade, o Ocidente patrocinou a ascensão de um novo líder: em 1982 o ministro da defesa, Hissène Habré tomou o poder.
Habré comandou o Chade até 1990. Ao fim de seu regime, um dos mais brutais da África pós-colonial, uma Comissão de Informação contabilizou aproximadamente 40 mil oposicionistas mortos. A organização Human Rights Watch oferece, em relatório, uma descrição da repressão cruel que ocorria nas prisões.
O Ocidente fazia vistas grossas a tal violência, pois Kadhafi lhes parecia muito mais ameaçador. O ditador líbio acalentava um projeto expansionista transaariano e o Chade se tornou a principal frente desse avanço territorial. O apoio militar francês foi essencial para expulsar as tropas líbias, o que só se concretizou em 1987.
Hissène Habré durante o seu julgamento na Câmara Africana Extraordinária
Com o fim da guerra, a cúpula militar do Chade se dividiu, com um grupo se rebelando contra o ditador. O ministro da defesa, Idriss Déby, da etnia zaghawa, até então perseguida pelo governo, tomou o poder em dezembro de 1990.
Hissène Habré exilou-se no Senegal e o país passou a sofrer forte pressão internacional, inclusive da Corte Internacional de Justiça, órgão vinculado às Nações Unidas, para que organizasse algum tipo de julgamento do ex-ditador, ou optasse por extraditá-lo para um outro país onde isso fosse possível.
As cobranças surtiram efeito: em 2013 foi aberta uma inédita Câmara Africana Extraordinária, corte resultante de um acordo entre o Senegal e a União Africana, buscando condenar pessoas que tivessem cometido violações ao direito internacional no Chade entre 1982 e 1990. Em julho de 2016, Habré foi condenado à prisão perpétua, acusado de crimes de guerra, crimes contra a humanidade, incluindo tortura, além de acusações diretas de estupro.
A imagem de líder rebelde exibida por Idriss era só uma narrativa conveniente para alguém que havia participado intimamente do regime de Habré. Nas três décadas em que comandou o país, Déby instituiu procedimentos democráticos superficiais, que pouco disfarçavam a hegemonia de seu partido, o Movimento Patriótico de Salvação (MPS).
O presidente Idriss Deby Itno em sua autoproclamação como “Marechal do Chade”, um título da hierarquia do exército criado exclusivamente para ele
Uma Conferência Nacional surgiu apenas em 1993 para criar uma nova Constituição. As eleições presidenciais foram realizadas três anos depois, com Déby eleito por larga margem de votos, êxito repetido no pleito de 2001. O limite inicial de dois mandatos presidenciais que a Constituição previa foi anulado em 2004 abrindo espaço para que o presidente se encastelasse no Palácio Rosa, sede do poder presidencial.
Com o início da exploração do petróleo no Chade, já no século XXI, consolidou-se a rede de corrupção que ronda a cúpula do poder, enquanto a maior parte da população continua na pobreza: a taxa de mortalidade infantil é uma das mais altas da África: 856 óbitos a cada 100 mil nascidos vivos.
Idriss Déby venceu novamente as eleições em 2006, 2011, 2016, mas apoiou a aprovação de um projeto constitucional, em 2018, que restabeleceu o limite de dois mandatos. Havia um porém significativo: a nova lei não valeria retroativamente e cada mandato duraria 6 anos. Ou seja, Déby estava livre para concorrer a mais duas eleições e se manter no poder até 2033. Ele se candidatou em 2021, numa campanha presidencial novamente marcada por intensa repressão à oposição.
Protesto anti-Déby em 2016
O governo proibiu manifestações da oposição em fevereiro passado, em nome da emergência sanitária vinculada à pandemia da Covid-19, antes mesmo que as candidaturas fossem divulgadas. Desde então, protestos pacíficos convocados por sindicatos, partidos políticos e organizações não-governamentais foram dispersos, principalmente na capital. A repressão contou com as forças de segurança efetuando prisões arbitrárias, além de casos reportados de tortura aos detidos, inclusive em março, quando a campanha presidencial já havia sido iniciada oficialmente.
Em 28 de fevereiro, a casa de um dos críticos ao governo de Déby, Yaya Dillo, foi sitiada pelas forças de segurança. O oposicionista, ex-integrante do governo, denunciou relações suspeitas entre o governo e a fundação comandada pela primeira-dama, Hinda Déby Itno. Acusado de difamação e calúnia, Dillo recebeu ordens de prisão. Na troca de tiros depois do cerco à sua casa, morreram sua mãe e outros familiares.
Para evitar que a oposição utilizasse o atentado a Yaya Dillo como mote de novas manifestações, o governo acionou outro dispositivo de repressão à oposição: restringir o sinal de internet. Esse tipo de manipulação não era inédito. Entre julho de 2020 e março de 2021, as redes sociais estiveram bloqueadas pelo governo por “razões de segurança”, num contexto de suposta ameaça terrorista.
O novo presidente, Mahatma Déby Itno, inaugura a dinastia Déby
As restrições foram afrouxadas no início da campanha eleitoral. Entretanto, a partir daí, foram os meios de comunicação tradicionais que passaram a ser censurados. Nas primeiras semanas de março, a Alta Autoridade de Mídia e Audiovisual proibiu debates políticos nas rádios e redes de televisão. As campanhas oposicionistas tiveram que se abrigar nas redes sociais, em um país onde o acesso a essas plataformas já é relativamente restrito pelo custo excessivo e qualidade medíocre do sinal de internet.
Segundo a organização não-governamental NetBlocks, dedicada a monitorar a liberdade de acesso à internet, o Chade é um dos campeões desse tipo de prática, também recorrente nos últimos anos em outros países africanos como Benin, Gabão, Eritreia, Libéria, Malaui, Mauritânia e Zimbábue.
Agora, sucedido pelo filho, o destino do Chade parece inalterado. Mahatma Idriss Déby Itno, de apenas 37 anos, um dos líderes mais jovens do mundo, deve seguir as práticas do finado pai.
Assim, os 16 milhões de habitantes do Chade, país que ostenta o terceiro pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo, continuam submetidos à ditadura militar dos Déby.
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