Cáucaso é a faixa de 1.200 quilômetros que separa o Mar Negro do Mar Cáspio, onde se estendem em paralelo duas cadeias de montanhas, o Grande Cáucaso e o Pequeno Cáucaso, com um amplo vale a separá-las.
Ali passa parte da linha imaginária que separa a Europa da Ásia. Na Antiguidade, a mitologia grega situava no Cáucaso um dos pilares do mundo. Em uma de suas montanhas, Zeus teria acorrentado Prometeu. Na Idade Contemporânea, a região do Cáucaso se tornou um dos pilares geopolíticos da Rússia. Hoje, reservas de petróleo e gás servem de combustível para disputas territoriais, a maioria delas motivada por deslocamentos populacionais provocados pela tirania stalinista.
Com o fim da União Soviética, em 1991, as antigas repúblicas soviéticas se reconfiguraram como três “novos” Estados – Armênia, Geórgia e Azerbaijão – e mais uma parte da Federação Russa, composta por seis repúblicas autônomas que abrigam minorias étnicas. A reorganização dos sistemas político e territorial estão na base de múltiplos conflitos. Armênia e Azerbaijão disputam a região de Nagorno-Karabak, com troca de tiros e tomada de território há poucos meses. A Geórgia lida com o separatismo da Abhkazia e da Ossétia do Sul. A Rússia reprime separatistas na Chechênia para não perder nem um metro do espaço que ocupa na região, que lhe é vital.
O domínio sobre o Cáucaso é estratégico para a Rússia desde os tempos dos czares. A região foi conquistada entre os séculos XVIII e XIX, quando o império se expandiu para o sul em busca de saídas nos “mares quentes”, para escapar à prisão dos mares congelados do Ártico. Essa expansão foi baseada na “geografia da não-confiança”, uma doutrina desenvolvida por oficiais do Exército a partir das concepções racistas em voga. Em seu nome, populações do Cáucaso foram deportadas a fim de impedir a contestação do domínio russo.
A descoberta de jazidas de petróleo e gás natural, no final do século XIX, coincidiu com o período em que a industrialização incorporou essas matérias-primas como commodities, tornando a região ainda mais valiosa para o Estado russo. Nas terras ao sul, o rival era o Império Turco-Otomano e as disputas entre ambos, denominadas Guerras Russo-Turcas, estão nas raízes da Primeira Guerra Mundial (1914-18). Sobretudo, a disputa pelo Cáucaso está relacionada ao genocídio armênio.
Exumação de ossos das vítimas do genocídio armênio. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, o Império Turco-Otomano temeu a aliança entre armênios e russos
Com a Revolução Russa de 1917, o potencial energético do Cáucaso motivou a construção de hidrelétricas e a exploração extensiva dos campos de gás e petróleo. Sob Stalin, populações inteiras foram reassentadas a fim de que “confiáveis” russos étnicos assumissem os trabalhos.
A União Soviética manteve a prática de deportações para lidar com as muitas minorias étnicas que compunham a federação comunista. Com a ascensão do nazismo na Alemanha e seu discurso anticomunista, o Comitê Central tratou de proteger seus interesses no estratégico Cáucaso ordenando novas remoções de população para o Cazaquistão e a Sibéria. Os “povos punidos” foram removidos por seu “potencial de colaboração” com o inimigo, começando por cerca de 1,2 milhão de alemães soviéticos que viviam na região do rio Volga, próximos ao Cáucaso e à cidade de Stalingrado.
Operações posteriores conduzidas pela NKVD/KGB invocaram “crimes de traição” durante a Segunda Guerra Mundial. Assim foram atingidos os karachai, calmiques, chechenos, inguches, balcários e tártaros da Crimeia, deslocados para o universo paralelo do Gulag.
O ditador Josef Stalin e Laurenti Beria, chefe da NKVD, consideravam cruciais as “operações de limpeza de fronteiras”. Nesse sentido, nem a Geórgia natal de Stalin escapou. Vista como a fronteira mais sensível com a então recém-criada República da Turquia, abrigando diversos grupos de muçulmanos, as terras da Geórgia não deveriam ser ocupadas por “olhos e ouvidos” do inimigo, sobretudo enquanto ocorriam as operações da Segunda Guerra Mundial. O mesmo se aplicava às minorias localizadas em território russo, como chechenos e inguches, empurrados em 1944 para o Cazaquistão.
As deportações e reassentamentos destruíam antigos modos de vida, forjando a ferro e correntes apertadas o “novo homem soviético”. À transferência dessas etnias, seguia-se um processo de apagamento da memória por meio da substituição dos nomes originais de lugares e cidades por nomes russos.
Deportados chechenos, em 1944. Submetidos a um frio excruciante e a longas caminhadas pelas montanhas, morreram às centenas pelo caminho
No caso checheno, o processo foi cruel. Os agentes da NKVD cumpriram as ordens de remoção incendiando vilarejos e empurrando famílias para frente. Realizada no inverno, a operação deixou as pessoas à mercê de um sistema de trens incapaz de operar na neve, matando de frio e fome uma quantidade incalculável de gente. Depois, ossétios da Geórgia e russos ocuparam as terras “vagas”.
Já na borda do Mar Negro, a valiosa península da Crimeia havia sido ocupada pelos alemães entre 1941 e 1944, dividindo os tártaros ali residentes entre colaboracionistas e resistentes. Para a NKVD, eram todos “elementos antissoviéticos”. Assim 191 mil tártaros da Criméia foram deportados. No verão de 1945, a população da península havia recuado de 875 mil para cerca de 380 mil.
Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, com a URSS levantando a bandeira da vitória, a máquina de produção de “culpados” e “banidos” atingia certos limite. Não havia mais uma situação de ameaça capaz de justificar ações arbitrárias em nome da “segurança”, mas o regime precisava, mais do que nunca, prosseguir com os projetos de ocupação e exploração dos grandes vazios demográficos soviéticos.
Em 1947 um decreto anunciou que, “após o confinamento”, os “inimigos de Estado” deveriam ser enviados para “assentamentos em áreas remotas”. Outras disposições do governo prorrogaram penas ou impuseram banimento eterno para alguns casos. As punições por tentativas de fuga das frentes de trabalho nos Gulag foram endurecidas, com servidão penal de 20 anos ao invés dos 8 anos de prisão.
A morte do grande ditador interrompeu o funcionamento da máquina de transformar minorias em inimigos
A morte de Stalin, em março de 1953, mudou o curso dessa história. Seu sucessor, Nikita Krushev, denunciou os crimes de Stalin no XX Congresso do PCUS, em 1956. A dimensão do Grande Expurgo sobre a “velha guarda bolchevique”, as deportações étnicas e o tamanho do Gulag foram denunciados para o colegiado de todos os partidos comunistas da União Soviética. A partir de então, os números demonstram significativa queda de transferência de populações, sugerindo que a repressão étnica deixaria de ser uma política de Estado.
Em poucos anos, diferentes decretos reconheceram direitos para grupos de reassentados especiais, incluindo o direito de retorno. Em 1956, poloneses, calmiques, gregos, búlgaros, armênios, tártaros da Crimeia, balcários, turcos mesquéticos, curdos, khemshins, chechenos, inguches e karachais foram contemplados de alguma forma. No entanto, a restauração dos direitos desses povos foi desigual, pois nem a todos se concedeu o direito de retorno.
Os rearranjos demográficos trouxeram outras questões: havia territórios que haviam sido ocupados por outras populações; havia territórios estratégicos que não deveriam sair do controle central; e havia o problema das autonomias regionais pré-existentes relacionadas às etnias. Em alguns casos, a autonomia foi restaurada, mas não o território original por completo.
Família de tártaros deportados da Crimeia, em 1960. A essa minoria foi negado o direito de retorno. A Criméia é estratégica demais para não ser povoada por uma maioria russa
Dessa forma, os “povos punidos” foram divididos em três grupos. O primeiro, composto pelos karachais e balcários, era constituído pelos totalmente reabilitados: eles retornaram às suas terras e recuperaram seus status territoriais e administrativos. O segundo, composto pelos chechenos, inguches e calmiques eram os parcialmente reabilitados: seus direitos civis e autonomia administrativa não foram acompanhados de restauração territorial. Finalmente, turcos mesquéticos, alemães e tártaros da Crimeia tiveram seus direitos civis restaurados mas não conseguiram o direito de retorno.
Era previsível que o Cáucaso se tornaria uma área problemática, afinal, o nível de ressentimento é muito alto. Particularmente, o segundo grupo guarda um elevado potencial de conflitos motivado por reivindicações territoriais. Mas enquanto existiu a União Soviética e o mesmo único Partido Comunista governou as 15 repúblicas, as elites locais foram absorvidas pelo aparato político, viabilizando um arranjo institucional e legal desses governos locais.
Boris Yeltsin (ao centro) liderou a população de Moscou na reação à tentativa de golpe contra Gorbachev, em agosto de 1991. Então, o aparato político que sustentava a URSS se dissolveu
A errática política de liberalização promovida por Mikhail Gorbachev a partir de 1985, com a glasnost, abriu a porta para que os nacionalismos de minorias étnicas ganhassem espaço no debate público. O fim da URSS, em 1991, deveu muito à emergência desse novo ator. A manutenção de uma entidade política tão complexa quanto a URSS decorria do equilíbrio entre as formas de controle (o partido único, o Gulag, a ditadura) e métodos de cooptação das elites não-russas, via patrocínio e clientelismo.
O novos movimentos separatistas se apresentavam como resposta a anos de repressão do governo central, em Moscou, mas serviam principalmente como afirmação do poder das nomenklaturas (as elites burocráticas do PCUS), no momento em que elas começaram a ser desafiadas por novas forças políticas locais. Em 1990, as antigas lideranças comunistas, travestidas de nacionalistas, se agruparam em torno de Boris Yeltsin, o presidente eleito da Rússia, para combater o antigo regime. Em dezembro de 1991 nascia a Comunidade de Estados Independentes (CEI).
Fonte: Enciclopedia Britannica
As disputas por reivindicações territoriais se intensificaram. Entre 1988 e 1996, emergiu uma coleção de 300 questões etno-territoriais, com algumas evoluindo para guerras regionais. E o Cáucaso se tornou o epicentro dessas tensões.
Parte significativa dessas disputas refere-se às populações que habitam a Rússia. Isso significa que o protagonismo permanece com Moscou, obrigando o governo central a se envolver em múltiplos problemas. A mentalidade imperialista eslavófila do antigo Império Russo continua a orientar as ações do Kremlin no Cáucaso.
Em seu livro A Desintegração do Leste, o geógrafo Nelson Bacic Olic, classificou os conflitos no espaço soviético em quatro tipos: 1) Opondo uma minoria não-russa contra o governo de Moscou; 2) Opondo minorias não-russas entre si; 3) Reunindo as duas formas de conflito anteriores; 4) Opondo grupos sectários de uma mesma etnia para alcançar o poder nos novos Estados independentes.
Fonte: Atlas Geográfico Saraiva, São Paulo, Saraiva, 2009
A fim de acomodar as minorias em suas fronteiras e evitar contestações ao seu poder, o governo da Rússia havia negociado a restauração de antigas autonomias territoriais para diversos grupos, como os chechenos. A Chechênia é, portanto, uma república autônoma no interior da Federação Russa. Sua localização fronteiriça no Cáucaso, porém, estimula ambições separatistas, bem como o fato de ser uma das únicas regiões onde a “minoria étnica chechena” supera largamente a proporção de russos étnicos na população.
Ao contrário do que afirmam narrativas míticas, o conflito na Chechênia não remonta à Rússia czarista. A memória coletiva refere-se às mais recentes deportações do período stalinista. Também deve-se tomar cuidado com a ideia de um “choque de civilizações” opondo a Rússia cristã aos chechenos muçulmanos, pois a população chechena tinha sofrido intensa laicização no período soviético, inclusive do ponto de vista das tradições locais.
Foi o nacionalismo, sem dúvida, o elemento aglutinador para essa disputa em torno do controle de territórios, mas não a sua causa profunda. A questão central é econômica. A Chechênia é o principal polo petrolífero do Cáucaso, junto com Baku, no Azerbaijão. Grozny, a capital chechena, centraliza a operação dos oleodutos e gasodutos que levam petróleo e gás natural para a Rússia e para mercados europeus. Eis a grande motivação russa para não admitir a secessão chechena. Assim como interessa a setores da elite chechena convencer sua população a lutar por isso.
Campo de exploração de petróleo no Azerbaijão no início do século XX. A produção petrolífera de Baku é, atualmente, transportada por oleodutos que cortam a Chechênia, passando por sua capital, Grozny, em direção à Rússia
Quando Boris Yeltsin declarou a independência da Rússia, em 1990, o governo da Chechênia passou a agir como um Estado independente. Em retaliação, o governo russo não reconheceu a eleição do separatista Dzhokhar Dudaev como presidente da república autônoma da Chechênia, em 1991, impondo um bloqueio econômico na tentativa de sufocar sua economia. A resposta chechena foi a expulsão imediata de 90 mil russos que viviam na região. O sentimento antirrusso converteu-se em agressões físicas e desordem pública.
Em dezembro de 1994, Moscou ordenou um ataque a Grozny com a intenção de depor o governo separatista. A enorme dificuldade de atuação das tropas russas, pouco treinadas para o terreno montanhoso da Chechênia e menos motivadas pela causa terminou em humilhante derrota. Yeltsin foi obrigado a buscar alguma acomodação política.
Soldado próximo ao Palácio Presidencial, em Grozny, devastado pela guerra
Na prática, o presidente russo aceitou a independência de facto da Chechênia, congelando o conflito a partir de 1996, quando a morte de Dudaev abriu caminho para o mais moderado Aslan Maskhadov. Pelas costas, Moscou manipulava o apoio internacional barrando o reconhecimento de uma Chechênia independente, mantendo-a de fato como território internacionalmente reconhecido como parte da Rússia.
O problema foi a entrada em cena do discurso político do fundamentalismo islâmico. Desde a vitória dos mujahedins afegãos sobre a União Soviética, em 1989, os povos da Ásia Central cada vez mais recorriam aos laços religiosos para se reposicionar no mundo pós-Guerra Fria. Em 1998, grupos chechenos assim organizados passaram a exigir a renúncia de Maskhadov, por ser excessivamente conciliador, e ele não teve como impedir que a Sharia, a lei islâmica, substituísse a Constituição laica, em 1999.
Naquele momento, a população russa se preparava para eleger o sucessor de Yeltsin, proibido de disputar um terceiro mandato, mas tentando controlar as rédeas da indicação do candidato. Foi quando um ataque de surpresa de forças separatistas chechenas na região do Daguestão provocou a demissão do primeiro-ministro russo. Yeltsin indicou o chefe do Serviço de Segurança Federal (herdeiro da NKVD/KGB), Vladimir Putin, como substituto do primeiro-ministro e, logo, como seu indicado à sucessão presidencial.
Em setembro de 1999, prédios de apartamentos foram bombardeados em Moscou e outras cidades russas, deixando um rastro de destruição e cerca de 300 mortos e feridos. O ato terrorista chocou a opinião pública, propiciando a Putin a formulação de uma narrativa emocional: a guerra da “nação russa” contra o regime “desordeiro” da Chechênia, que ameaçava desestabilizar o Cáucaso. Hábil, o ex-chefe dos serviços de segurança logo deu um passo maior, associando esses radicais chechenos a representantes de uma “frente de terrorismo internacional”.
Putin participa da cerimônia de retirada de tropas da Chechênia. A guerra de 1999 foi a propaganda eleitoral perfeita
O Kremlin decidiu enviar tropas para intervir na Chechênia em nome da “segurança da população russa”. O sucesso militar moldou a mitologia putinista do “homem forte” que comanda, em oposição à figura um tanto vacilante de Yeltsin. Na eleição de 2000, fazendo um discurso de tipo imperial, de “resgate dos valores tradicionais russos”, Putin atropelou os adversários.
Posteriormente, a comunidade internacional denunciou as atrocidades cometidas pelas forças russas, que incluíam a destruição de vilarejos e a tortura generalizada de civis em campos de concentração. Mas tudo mudou e ficou mais opaco depois do ataque às Torres Gêmeas, nos EUA, em 11 de setembro de 2001. Houve uma forte reversão na opinião pública internacional sobre o que acontecia na Chechênia. A associação do nacionalismo dos rebeldes chechenos ao jihadismo da Al-Qaeda obscureceu a natureza do conflito no Cáucaso. Putin soube usar essa brecha para combater os “inimigos da Mãe-Rússia”.
O que Putin buscou obter nos primeiros anos do século XXI foi um regime fantoche capaz de agradar os fundamentalistas muçulmanos chechenos mas, ao mesmo tempo, enfraquecer a reivindicação pela independência. Em 2003, em um pleito amplamente contestado, foi eleito presidente da Chechênia Akhmad Kadyrov, o homem apoiado por Moscou. Hoje é seu filho, Ramzan Kadyrov, quem governa.
Akhmad (pai) e Ramzan (filho) Kadyrov, os líderes fundamentalistas da Chechênia na era Putin trocaram a independência pelo conservadorismo
Desde então, a pequena república autônoma se tornou uma república islâmica autoritária, que persegue dissidentes políticos e minorias, como os LGBT. Por intermédio dos Kadyrov, as forças rebeldes foram suprimidas desde 2009, mas os abusos de poder e autoritarismo só aumentaram. A paz de Putin significa manter os abusos contra direitos humanos na região.
O conflito na Chechênia teve efeitos profundos e danosos para a democratização do Estado russo. O argumento da “guerra ao terror” ajudou a minar a Constituição e o Estado de Direito, permitindo a suspensão de direitos fundamentais dos cidadãos em nome da segurança nacional. A liberdade de imprensa e crítica ao governo russo exercidas durante os poucos anos do governo Yeltsin foram seriamente cerceadas, enquanto a islamofobia era invocada para discriminar os povos caucasianos.
A independência da república da Geórgia foi conduzida por Zviad Gamsakhurdia, eleito presidente em 1991 com uma agenda ultranacionalista. Naquele momento, os ossetas da Ossétia do Sul, situada na Geórgia, pleitearam uma república autônoma, nos moldes da Chechênia, o que lhes foi negado. Assim, ficaram separados da Ossétia do Norte, integrante da Federação Russa, por uma fronteira internacional, o que eles não aceitaram.
Em resposta, o governo georgiano aboliu a autonomia da Ossétia do Sul. A tensão explodiu e culminou com o envio de tropas georgianas e russas para o combate, em dezembro de 1990. Foram dois anos de conflito entre georgianos e ossetas do sul, com participação esporádica de tropas russas, que ofereceram apoio aos separatistas.
Atrocidades foram cometidas pelos dois lados, com centenas de mortos e feridos e mais de 80 mil refugiados. Como no passado, incêndios de casas, violência contra civis e despejos de vilarejos foram as táticas adotadas para “limpar” o território conquistado ao inimigo. O conflito na Ossétia do Sul foi “congelado” por Moscou, como forma de conservar sua presença militar no enclave georgiano.
No início de 1992, Gamsakhurdia, o presidente da Geórgia, foi deposto em um golpe de Estado. Seu sucessor, Eduard Shevardnadze, era o líder do parlamento. A disputa entre apoiadores e detratores de Gamsakhurdia se transformou em uma verdadeira guerra civil. Valendo-se da confusão, os separatistas da Abhkázia declararam independência desencadeando uma guerra contra o governo da Geórgia.
O embate durou cerca de um ano e foi marcado por violações aos direitos humanos. Abhkázios apelaram à limpeza étnica contra georgianos e o Conselho de Segurança da ONU teve que pressionar a negociação de um cessar-fogo. ONU e Rússia mediaram um acordo de paz, em 1993, que na prática reconhecia a independência de facto da Abkházia. Moscou também mantém tropas na Abkházia.
Mas a situação não estava encerrada. Choques de baixa intensidade foram mantidos por anos, com várias ocorrências de agressão a georgianos cometidos por militares abkházios. O saldo foi um grande fluxo de deslocados internos na Geórgia.
Em 2004, o novo presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili prometeu lutar pela reconstituição da integridade territorial da república, dando combate às forças separatistas. Sua eleição provocou uma nova onda de violências envolvendo as minorias étnicas da Abhkázia e da Ossétia do Sul.
Ao mesmo tempo, Saakashvili buscou se aproximar do Ocidente, desafiando frontalmente os interesses russos no Cáucaso. Naquela época, a expansão da OTAN para a Europa centro-oriental, espaço considerado estratégico pela geopolítica russa, era o principal ponto de tensão entre Moscou e os governos ocidentais.
Sacerdote cristão ortodoxo unge soldado russo na preparação para o combate na Geórgia. A religião ocupa o espaço vago no discurso político deixado pelo fim do Estado Soviético, ironicamente tão antirreligioso
O limite russo foi atingido quando, em 2008, a OTAN emitiu sinal verde para que as repúblicas da Geórgia e da Ucrânia se preparassem para ingressar na aliança militar ocidental. Apostando na proteção do Ocidente, o presidente georgiano ordenou um ataque à Ossétia do Sul. Contudo, a rápida resposta militar da Rússia conteve maiores arroubos dos líderes ocidentais, que se limitaram a protestos e sanções secundárias.
Exposta à reação de Putin, então primeiro-ministro do governo de Dmitry Medvedev, e ao poderio militar russo, as forças da Geórgia capitularam após quatro dias de pesados bombardeios aéreos. Saakashvili foi humilhado e os georgianos que viviam nas terras da Ossétia do Sul e do Vale de Kodori, na Abkházia, foram expulsos de suas casas. A Rússia reconheceu formalmente a Abkházia e a Ossétia do Sul como Estados soberanos e o projeto ocidental de cooptação da República da Geórgia naufragou.
Com o Cáucaso, o Kremlin nunca vacila.
Comemoração do reconhecimento da independência da Abkházia pela Rússia. Na foto aparecem também as bandeiras da Rússia e da Ossétia do Sul. Além da Rússia, apenas alguns Estados insulares da Oceania, Nicarágua, Venezuela e Síria reconhecem a independência dos dois enclaves separatistas na Geórgia
A região de Nagorno-Karabakh, no Azerbaijão, é mais um legado conflitivo do colapso da União Soviética. A região é palco da disputa entre armênios e azeris. Os armênios, ampla maioria, pleiteavam a unificação com a Armênia, cujo território está separado de Nagorno-Karabakh por uma estreitíssima faixa de terras da qual o governo azeri não abre mão.
Em 1988 o governo autônomo de Nagorno-Karabakh votou pela unificação com a Armênia, deflagrando o conflito. Embora não tenha sido uma guerra declarada entre as ainda repúblicas soviéticas, as nomenklaturas azeri e armênia tiveram papel crucial na condução do conflito, fomentando o nacionalismo nas duas populações para a mobilização militar e a negociação com o governo central em Moscou.
A bandeira da República de Artsakh reproduz as cores da bandeira armênia, adicionando o branco, que representa a condição de enclave no Azerbaijão
A crise final do regime soviético acendeu novamente a disputa entre as repúblicas já independentes da Armênia e do Azerbaijão. Em 1992, a população armênia de Nagorno-Karabakh declarou sua separação do Azerbaijão, proclamando a República de Artsakh, nada mais do que uma administração fantoche do governo armênio. Os choques cresceram em intensidade, com forte intervenção russa em favor dos cristãos armênios e interferência indireta da Turquia e do Paquistão em favor dos muçulmanos azeris.
Acusações de “limpeza étnica” foram feitas por ambos os lados, enquanto cerca de 230 mil armênios do Azerbaijão e 800 mil azeris da Armênia foram expulsos e expatriados. Moscou mediou um cessar-fogo em 1994, num momento em que os armênios controlavam toda Nagorno-Karabakh e mais 9% do território azeri.
Fontes: Dhaka Tribune/BBC/International Crisis Group
A paz frágil foi rompida em setembro de 2020, em meio à pandemia da Covid-19, quando o governo azeri disparou uma ofensiva para a retomada completa do enclave. Novamente a Turquia deu suporte ao Azerbaijão, enquanto a Rússia preferiu desempenhar papel conciliador.
Putin sabe que as duas repúblicas são estratégicas para os interesses russos no Cáucaso e no Mar Negro, além de produtoras de minérios e petróleo.
Um novo cessar-fogo foi firmado após quase dois meses de confronto. Dessa vez, graças à ajuda turca e à prudência russa, o Azerbaijão obteve ampla vitória, o que propiciou a retomada dos territórios originalmente azeris e de parcelas do território de Nagorno-Karabakh.
A instabilidade na região do Cáucaso relaciona-se tanto às deportações étnicas da era stalinista e à “russificação” do império, quanto às inevitáveis disputas territoriais decorrentes da fixação das fronteiras provocadas pela desintegração da União Soviética. São cicatrizes difíceis de serem curadas.
Enquanto isso, a Rússia atua para preservar seu controle estratégico sobre o Cáucaso. A russificação, antiga estratégia dos czares e da tirania stalinista, segue como política de Estado, mas divide espaço com outras táticas da era putinista, como explorar as diferenças étnicas e armar radicais para desestabilizar governos que ousam desafiar Moscou. Típica brincadeira com fogo que costuma queimar a mão.
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