GOVERNO BRASILEIRO, PÁRIA DOS DIREITOS HUMANOS

 

Eugênio Bucci

(Jornalista, Professor Titular da ECA-USP e articulista do jornal O Estado de S. Paulo)
2 de novembro de 2020

 

Leio, na coluna de Jamil Chade, uma nota que estarrece. O jornalista, que vive em Genebra (Suíça), em mais um de seus furos sobre a política externa brasileira, relata o discurso proferido na formatura dos novos diplomatas, no final de outubro, pelo ministro de Relações Exteriores do Brasil. Ernesto Araújo tentou se valer de retórica sardônica para desqualificar os que veem o Brasil como um país isolado e, não raro, ridicularizado, no concerto das nações. Lá pelas tantas, ele se saiu com uma frase que se pretendeu capciosa: “É bom ser pária”. Isso mesmo.

Ernesto Araújo (à direita) com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Párias dos direitos humanos

A ironia diplomática teria sido apenas mais um desaforo vexatório da atual gestão do Itamaraty se não fosse um clamoroso ato falho. O Brasil desfruta do status de pária global – e o atual titular da pasta acha que isso é motivo de orgulho.

O Brasil tornou-se pária porque sua diplomacia não cessa de ultrajar a condição humana. No ano passado, o mesmo ministro postou num blog uma declaração indigna: “Podemos facilmente notar que o nazismo tinha traços fundamentais que recomendam classificá-lo na esquerda do espectro político”. O despautério, que mereceu protestos em toda parte, principalmente em Israel, é uma das centenas de razões pelas quais o mundo, cada dia mais, reconhece com tristeza que o Brasil, sob o governo que aí (aqui) está, acabou caindo no papel de pária. Sempre que pode e, principalmente, sempre que não pode, o Itamaraty enlameia a cultura de direitos humanos.

 

À sombra de Trump

Vimos acabrunhados mais um capítulo da degradante construção da imagem de pária do nosso país quando o Brasil, para bajular Donald Trump, apoiou na OEA, em 20 de outubro, a tese de que pais possam impor educação moral e religiosa aos filhos. A proposição, conforme sintetizou a reportagem de Patrícia Campos Mello, no jornal Folha de S. Paulo, “abre a porta para que pais adotem o ensino domiciliar e impeçam que crianças aprendam conteúdos como a teoria da evolução”.

A coalizão fundamentalista impulsionada pelos EUA e bancada pelo Brasil pretende subordinar o ensino público à vontade de igrejas e movimentos religiosos. Consultando organizações da sociedade civil, a repórter alerta ainda que “a proposta também permitiria que pais interfiram na contratação de professores a partir de suas crenças religiosas”.

Sob Bolsonaro e Araújo, apagaram-se as luzes do Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores do Brasil

Em matéria de relações exteriores, há sutilezas até mesmo nas piores grossuras. Pode não parecer, e efetivamente não parece, mas há linguagem diplomática no gesto da delegação brasileira na OEA. Ostentando falta de polidez e excesso de deselegância, os votos brasileiros nos organismos internacionais, como foi mais esse, perpetram uma baixaria aqui, mas tem em mira algo muito pior ali na frente.

A doutrina fanática que anima o bolsonarismo além-fronteiras acredita em “cristofobia” e não sabe o que é cristianismo, acredita que o presidente da República é um “mito” e não um ignaro mitômano, acredita que o vírus da Covid-19 é comunista, que incêndios nas florestas brasileiras são invencionice da imprensa estrangeira de esquerda, que cartunistas e jornalistas praticam crimes contra a Segurança Nacional e, fundamentalmente (fundamentalisticamente!), acredita que as escolas são um mal.

Isso mesmo: um mal. Os capatazes que hoje se alojam no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e no Itamaraty açoitam as universidades com indisfarçável prazer mórbido, ofendem reiteradamente os cientistas, humilham professores e tomam todas as medidas para militarizar o ensino. Acham que o saber resulta da obediência. Para eles, qualquer brecha de liberdade entre jovens que se encontram na escola ameaça perigosamente a família e precisa ser contida.

Portanto, não tenhamos dúvidas: as torpezas mais lazarentas que essas autoridades disparam dentro e fora do país são apenas a camada fina (embora grossa) que recobre uma plataforma muito pior. Seu objetivo (seu telos) é enfraquecer a instituição da escola pública e aberta, esvaziar a cultura e as artes, encabrestar a pesquisa científica e fazer regredir a civilização.

 

A “liberdade” deles

Ernesto Araújo, no discurso aos formandos, disse que só o Brasil e os EUA usaram a palavra “liberdade” na recente Assembleia Geral da ONU. Há bandidos que tomam reféns. O governo brasileiro tenta tomar o conceito de liberdade como refém.

Quando esse pessoal fala em “liberdade”, pensam na liberdade de cassar a liberdade alheia, de oprimir os mais fracos, de espezinhar os gays. A “liberdade” deles é a morte da liberdade dos demais. Por isso é que o Itamaraty abomina a instituição da escola pública, livre, aberta, universal – e, principalmente, laica.

Tanatos, a figuração da morte na mitologia grega

A atual política externa brasileira não sabe a diferença entre laicidade e ateísmo, mas odeia os dois. Quer extirpar os dois da face da terra plana. É contra o encontro. A favor do fervor fanático e tanático. Não entendeu que um grupo de seres humanos forma não um bando, não uma falange, não uma milícia, mas a humanidade. Não alcança a dimensão dos direitos humanos. Só entende o direito como prerrogativa ilegítima para o ato desumano.

Há uma frase do psicanalista Renato Mezan, no livro Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, que pode me ajudar a terminar este artigo, antes que você pare de lê-lo. É a seguinte: “O que humaniza o homem, o que o torna homem, é o convívio com outros seres humanos”. Aparece num trecho em que o autor discorre sobre identidade e identificação. Um belo trecho.

Convívio. É isso. Uma boa escola é convívio. Numa escola acontecem encontros que mudam vidas, porque levam essas vidas a palmilhar caminhos inimaginados e inimagináveis. Que momento horroroso este que temos sido obrigados a suportar.

 

 

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