Há poucos dias, Ruy Castro escreveu sobre o revival de Joseph Stalin, amplificado pela Folha de S. Paulo, para lembrar que ressuscitá-lo como antípoda de Hitler é esquecer que, um dia, os dois ditadores assinaram um pacto de não-agressão, o Pacto Ribbentrop-Molotov, destravando-se as portas da Segunda Guerra Mundial. Os extremos acabam se encontrando, concluiu o jornalista. Esse “debate” – quase inacreditável a volta do tema em pleno 2020 – exige o retorno ao conceito de totalitarismo, tal como formulado pela filósofa Hannah Arendt em sua obra Origens do totalitarismo.
Stalin e Hitler, opostos simétricos
Porque rebater ultranacionalismo e racismo com partido leninista não é uma resposta, mas um equívoco. Três décadas após a queda do Muro de Berlim, querer dar legitimidade à figura de Stalin reflete a incapacidade dos movimentos, partidos e celebridades de esquerda de olharem para frente e formularem um novo tipo de consenso político, ao invés de reprisarem os desastres do passado. Se é para citar Karl Marx, melhor lembrar que a história sempre se repete, a primeira vez como tragédia; a segunda, como farsa. O mesmo vale para a extrema-direita.
Ainda devemos respeito à memória e à vida de todas as vítimas do totalitarismo político, mortas em campos de extermínio nazistas ou nos campos de trabalho forçado do gulag soviético. Aqueles mortos nos ensinaram o significado de sistemas políticos que desprezam a vida de seus cidadãos em nome de uma “causa”, quando a “causa” maior deveria ser o bem-estar dos cidadãos, razão de ser da política. Quando tal inversão ocorre, temos limpezas étnicas, fundamentalismos radicais, uma revolução tecnológica que descortina a possibilidade, nas palavras de Celso Lafer, “de que segmentos inteiros da população possam tornar-se descartáveis do ponto de vista da produção”(1).
Os Estados, no pós-11 de setembro de 2001, têm demonstrado sua capacidade de invisibilizar cidadãos e ignorar direitos com argumentos de segurança coletiva. Em 2020, a pandemia do coronavírus cai como luva para governos autoritários engajados na hipervigilância social, enquanto a imprensa noticia que cientistas profetizam a chegada de outras pandemias em pouco tempo. Biossegurança é o novo filão para experimentos totalitários. Segurança ou liberdade? – é a pergunta da esfinge à sociedade enquanto corpo político.
Capa da primeira edição da obra de Arendt
Origens do Totalitarismo começou a ser escrito pouco tempo depois de encerrada a Segunda Guerra Mundial, com o Holocausto sendo descoberto e Arendt vivendo em Nova York. Publicado em 1951, o trabalho surpreendeu ao tratar nazismo e stalinismo não como fenômenos antagônicos mas, ao contrário, como expressões de um mesmo novo modo de fazer política: o totalitarismo.
A obra é dividida em três partes: “Antissemitismo”, “Imperialismo” e “Totalitarismo”. A primeira parte analisa a história do judaísmo na Europa e sua relação com a construção do Estado Nacional, especialmente pelo fato dos judeus terem encarnado a figura do apátrida por excelência.
Na segunda parte, o foco está na construção do discurso racial que serviu de justificativa para o domínio colonial e impôs uma lógica econômica pautada pela produção constante de bens e pela sujeição da natureza ao poder humano. A economia capitalista, em sua fase de expansão mundial, teria criado o discurso de superioridade racial e as políticas de discriminação, assim como acirrado a competição individualista, instaurando o primado do interesse privado sobre o público.
O último ensaio está dedicado à análise do totalitarismo, suas bases sociais e características. O novo paradigma político seria a expressão da crise da sociedade ocidental desencadeada pela ferida da Primeira Guerra Mundial. Nela, o acirramento das desigualdades teria acelerado o processo de transformação das classes sociais em massas manipuláveis, vulneráveis a discursos populistas.
As graves crises econômicas provocadas pela Primeira Guerra Mundial e, depois, pelo crash da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, provocaram uma forte desorganização do mundo do trabalho industrial, tal qual ele fora conhecido até então. As classes se organizariam a partir de interesses econômicos comuns. E um dos efeitos sociais mais importantes foi a desorganização dos sindicatos e movimentos operários, cuja práxis criava a “consciência de classe”.
É quando surge a “massa”. Para Arendt, “o termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, seja organização profissional ou sindicato de trabalhadores. (…) Constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes.” (p. 361)
Pois foram essas pessoas – ignoradas pelos partidos tradicionais que se organizavam em torno da noção de classe – as responsáveis por impulsionarem os movimentos nazifascistas. A despolitização daqueles indivíduos, excluídos dos canais tradicionais de representação, tornava sedutora a nova forma de fazer política baseada na propaganda, na recusa ao diálogo, no emprego da violência contra os discordantes transformados em “inimigos”. A força substituía o diálogo, dando à pessoa invisível o sentimento de poder.
A ascensão do nazifascismo revelou a incapacidade dos velhos partidos em atrair a maioria da população para as suas fileiras. Na prática, as democracias liberais representavam elites minoritárias governando massas apáticas. Esse descompasso deixava o campo aberto aos críticos do sistema parlamentar, que denunciavam a distância entre os anseios populares e as ações dos políticos “burgueses” ou “social-fascistas” (como a esquerda comunista passou a se referir aos social-democratas).
Massas de desempregados são o campo fértil para líderes antidemocráticos
Arendt: “O colapso do sistema de classes significou automaticamente o colapso do sistema partidário, porque os partidos, cuja função era representar interesses, não podiam mais representá-los, uma vez que sua fonte e origem eram as classes. (…) Assim, o primeiro sintoma do colapso do sistema partidário continental não foi a deserção dos antigos membros do partido, mas o insucesso em recrutar membros entre a geração mais jovem e a perda do consentimento e apoio silencioso das massas desorganizadas, que subitamente deixavam de lado a apatia e marchavam para onde vissem oportunidades de expressar sua violenta oposição.” (p. 364-365).
Mas não foram só as massas que se deixaram seduzir por movimentos totalitários. Também setores da elite, incluindo radicais individualistas. A geração da Belle époque e dos corpos estilhaçados nas trincheiras da guerra odiava o “mundo burguês”. Eles ajudaram a criar o modernismo, assumindo a postura vanguardista de contestação da velha ordem.
“A destruição sem piedade, o caos e a ruína assumiam a dignidade de valores supremos”, explicou Arendt (p. 378). E mais: a morte revelada na guerra, a morte aleatória, a “grande niveladora” passou a ser vista como o pilar da nova ordem mundial. Para a filósofa, a grande novidade que parecia surgir naquele momento era “a perda radical do interesse do indivíduo em si mesmo, a indiferença cínica e enfastiada da morte” (p. 366).
Era o ambiente propício para a emergência do Líder – aquele que paira acima do povo, encarna expectativas salvacionistas e reduz todo o aparato de Estado a uma mera expressão de seus desígnios. Como porta-voz das massas – o que, na prática, significava roubar-lhes as vozes e individualidades –, o Líder tirava dos ombros de cada pessoa a responsabilidade pelas suas próprias escolhas, já que todos agiam de acordo com uma ordem superior.
Arendt detêm-se longamente em demonstrar as diferenças entre o Estado totalitário e um regime tirânico comum. As ditaduras constroem aparatos de segurança para eliminar os opositores políticos. O totalitarismo começa a se revelar exatamente no momento em que, não havendo mais oposição política interna, as estruturas policiais voltam-se contra diferentes setores da população, entre os quais a propaganda governamental elege o “inimigo objetivo” (o judeu, o burguês, o deficiente físico, o kulak…).
O panóptico, que permite à torre central observar todas as celas no seu entorno é a metáfora perfeita do Estado totalitário: todos são suspeitos, todos estão sendo observados
Mas as coisas não cessam aí: o aparato repressivo totalitário volta-se contra seus próprios integrantes, permanentemente removidos de postos dirigentes, acusados de participação em complôs ou de relacionamentos suspeitos. O importante é que nada permaneça estável, “normal”. Stalin era particularmente bom nesse jogo.
O totalitarismo tem horror à estabilidade e cultua o movimento. Isso significa transformar constantemente as leis, as instituições, os valores, os inimigos, de tal modo que as referências políticas habituais sejam desfeitas e o absurdo assuma a condição de realidade – como nas confissões de traição dos líderes bolcheviques nos Processos de Moscou ou na admissão da verdade dos Protocolos dos Sábios do Sião.
E, se as pessoas aceitaram passivamente tais fantasias, foi porque o estilhaçamento dos laços sociais havia isolado de tal modo os indivíduos que eles transferiram ao Movimento sua lealdade cega e suas expectativas. Claro: em caso de vacilações, sempre se podia recorrer à força como instrumento de coerção explicitamente admitido.
Quando a verdade de ontem passava a ser a mentira do dia seguinte, aqueles que estavam lá para executar tais ordens caíam em desgraça. O medo instalava-se no coração de todos e ninguém podia confiar em ninguém. Investindo na propaganda, no temor e na fragmentação da sociedade, o Estado totalitário eliminava a capacidade de iniciativa e a liberdade de escolha que caracterizam o ser humano – justamente os atributos que, na visão da filósofa, constituem o cerne da vida política. Arendt: “Liberdade… é realmente a razão pela qual os homens vivem juntos em organizações políticas de todos. Sem ela, a vida política como tal não teria sentido. A raison d’être da política é a liberdade, e seu campo de experiência é a ação.” (2)
A interpretação original da filósofa é que o totalitarismo não pode ser tratado como um movimento político qualquer porque, em última instância, a finalidade da política é conciliar os conflitos e promover a estabilidade social.
Nos regimes políticos tradicionais, a lei estava apoiada em forças divinas ou na natureza, consideradas eternas e imutáveis e, portanto, destinadas a introduzir certa ordem nas relações humanas, caracterizadas pelas mudanças cotidianas. No entanto, o surgimento das teorias de Charles Darwin e Karl Marx, no século XIX, teria abalado as convicções de permanência ocidentais. Isso porque o darwinismo revelou a evolução dos seres vivos, erigindo a mutação em pedra angular da vida; enquanto, para o marxismo, a luta de classes e a sucessão dos modos de produção sinalizavam para a instabilidade das relações sociais ao longo do tempo. Em ambos os casos, a “evolução” implicava em um movimento permanente de transformação, e cada fenômeno passava a ser visto como apenas uma etapa de um processo maior.
Para Arendt, “que a força motriz dessa evolução fosse chamada de natureza ou de história, tinha importância relativamente secundária. Nessas ideologias, o próprio termo lei mudou de sentido: deixa de expressar a estrutura de estabilidade dentro da qual podem ocorrer os atos e os movimentos humanos para ser a expressão do próprio movimento.” (p. 516).
Os regimes totalitários seriam os discípulos mais fervorosos da “lei da evolução”. Eis a diferença de paradigma que origina o totalitarismo: nessa ideologia, a única lei que importa é a do movimento, e tudo que estiver contra ela precisa ser eliminado. O terror forma a essência do domínio totalitário porque é por meio dele que as leis de evolução se realizariam. É essa nova lógica que torna o Estado totalitário incompreensível para o mundo não-totalitário.
Segundo Arendt: “O problema com os regimes totalitários não é que eles joguem a política do poder de um modo especialmente cruel, mas que atrás de suas políticas esconde-se um conceito de poder inteiramente novo e sem precedentes (…). Supremo desprezo pelas consequências imediatas e não a falta de escrúpulos; desarraigamento e desprezo pelos interesses nacionais e não o nacionalismo; desdém em relação aos motivos utilitários e não a promoção egoísta do seu próprio interesse; “idealismo”, ou seja, a fé inabalável num mundo ideológico e fictício e não o desejo de poder.” (p. 467-468).
A nova teletela. Mas, desta vez, ansiamos pelo olhos do Grande Irmão sobre nós
Foi esse choque de perspectivas que impediu que os governos tradicionais agissem rapidamente contra os totalitários pois, de sua perspectiva, a busca pela estabilidade e pelo bem-estar do povo eram os ideais. Parecia razoável ceder um pouco em nome da manutenção da paz, como foi feito na Conferência de Munique (1938). Ainda hoje as interpretações correntes sobre o nazismo e o stalinismo tentam enquadrá-los nos moldes “normais” da ação política, o que empobrece a compreensão dos fenômenos cruciais da crise essencial da política.
Benito Mussolini e Giovanni Gentile, o ideólogo do fascismo, foram os primeiros a empregar a palavra “totalitário”. Ela caracterizaria a organização social estruturada a partir do Estado, comandado por um líder paternal cujas decisões almejariam o bem comum e não interesses particulares. Mas Mussolini foi excluído da obra de Arendt. A filósofa não enxergava no fascismo italiano o mesmo nível de controle e violência alcançados por Hitler e Stalin.
Hannah Arendt, 1906 (Alemanha)-1975 (EUA)
Leon Trotski, outro pioneiro no uso da palavra “totalitário”, atento ao surgimento do fascismo e suas consequências para a classe operária, empregou-o para se referir ao stalinismo que se consolidava na União Soviética. O líder exilado apontou o aspecto comum de repressão aos trabalhadores e às organizações políticas independentes capazes de contestar a força do Estado.
No debate sobre o totalitarismo é impossível ignorar a obra de Arendt, por todos citada, mesmo que para discordar. Há uma dificuldade dos analistas em enquadrar ideologicamente a pensadora, que nunca se alinhou às grandes correntes políticas socialistas ou liberais e desagradou aos dois polos do espectro político. Talvez porque, acima de tudo, ela tenha sido uma convicta defensora dos ideais da república, do Estado de Direito e dos direitos humanos.
1 – Celso Lafer. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. Paz e Terra: RJ/SP, 2018, p. 213
2 – Majid Yar. “Hannah Arendt (1906-1975)”. Internet Encyclopedia of Philosophy
3 – As citações nas quais só aparece o número da página foram extraídas de Origens do totalitarismo. Companhia das Letras, São Paulo, 1991
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