Há 40 anos, no 31 de agosto de 1980, era firmado o “Acordo de Gdansk”, na Polônia. O acordo consistiu em 21 pontos apresentados pelos grevistas dos estaleiros da cidade, organizados em torno da central sindical “Solidariedade”, propondo reformas e abertura política ao sistema comunista que regia o país desde o final da Segunda Guerra Mundial. Os acontecimentos em Gdansk foram um marco para a história polonesa e mundial, sinalizando a primeira fissura na muralha da Cortina de Ferro que dividia a Europa da Guerra Fria, concretizada, em 1989 com a queda do Muro de Berlim.
Grevistas se reúnem em manifestação em frente ao “Estaleiro Lênin”, em Gdansk, 1980
As greves em Gdansk, derivadas da organização espontânea de trabalhadores contra uma estrutura política opressiva, contrastam fortemente com o ambiente político e social na Polônia de 2020, governada pelo ultraconservador Partido Lei e Justiça (PiS). Em julho, o país viveu o segundo turno da eleição presidencial mais disputada de sua história, que terminou com a reeleição de Andzrej Duda por apertada margem de votos, mas ainda assim reforçando a guinada radical à direita.
Reivindicando para si a defesa dos valores nacionais e da “Polônia católica” o PiS, que governa desde 2015, tem promovido uma série de reformas no sistema político que visam ao desmonte da democracia liberal no país. A Polônia pouco a pouco segue a tendência de sua vizinha, a Hungria, limitando as liberdades individuais e deturpando pilares primordiais da democracia como a separação e independência dos poderes. Assim, relembrar o significado dos Acordos de Gdansk nesse momento em que ganha corpo um projeto autoritário ajuda na compreensão das dificuldades para a consolidação da democracia, em um país onde ela nunca foi um valor arraigado.
Nos anos 80, iniciava-se a marcha polonesa rumo à democracia, com a união dos operários em uma central sindical, o Solidariedade, contra um inimigo em comum. A agitação contra o regime de partido único imposto desde o final da Segunda Guerra Mundial iniciou-se com a simples reivindicação de um modo de vida que atendesse às necessidades básicas da população operária, que reclamava da falta até mesmo de papel higiênico. Afinal, se o comunismo era superior ao capitalismo, por quê as populações da Europa Ocidental gozavam de um nível de conforto material jamais conhecido pelos países comunistas? Aos poucos, a reivindicação por liberdades democráticas foi tomando espaço, representando um enorme desafio à União Soviética, que se via impedida por várias frentes de reprimir o movimento em Gdansk.
No verão de 1980, a greve nos estaleiros de Gdansk teve início pela ação dos “Sindicatos Livres da Costa” (WZZ), uma organização ilegal criada em 1978. Lech Walesa, eletricista e veterano das mobilizações na cidade, era o principal líder dos trabalhadores dos estaleiros, tendo sido demitido na greve de 1976 causada pela reivindicação de redução nos preços dos alimentos. Além da readmissão de Walesa e outros líderes sindicais, os trabalhadores da cidade decidiram parar suas atividades para pedir maiores salários; um monumento em memória às vítimas do massacre das greves de 1970; e a garantia de imunidade aos grevistas. Em 16 de agosto, a greve pareceu chegar ao seu fim, quando o diretor dos estaleiros, Klemens Gniech atendeu às demandas dos grevistas.
Vitoriosos, os trabalhadores pregaram a continuação da greve em solidariedade às outras fábricas que se mantinham paralisadas. Assim, um comitê que abarcava operários de diversas fábricas de Gdansk foi estabelecido sob a liderança de Lech Walesa e outros membros da WZZ; ato que se repetiu em outras cidades em greve como Gdynia e Szczecin. A união desses comitês foi o embrião para a criação do Solidariedade; a soma das partes tornou possível apresentar de maneira conjunta 21 reivindicações ao governo comunista. Entre os principais pontos estavam a permissão para a criação de sindicatos independentes (ou seja, não tutelados pelo Partido); liberdade de expressão; soltura dos dissidentes políticos; e recontratação de trabalhadores demitidos por motivação política.
Lech Walesa assina o Acordo de Gdansk com os representantes do governo comunista polonês
Diante da forte mobilização dos grevistas e do temor de uma violência generalizada, o governo em Varsóvia instruía seus negociadores a evitar ao máximo o emprego da força, embora houvesse forte pressão soviética para que o exército polonês massacrasse o movimento, tal como o Pacto de Varsóvia havia feito em Budapeste, em 1956, e na Primavera de Praga, em 1968. Mesmo sob tensão, o Acordo de Gdansk foi finalmente assinado entre Lech Walesa e Mieczysław Jagielski, representante do governo comunista. Praticamente todos os pontos foram acatados pelo governo e, em troca, os grevistas reconheciam o Partido Operário Unificado da Polônia (PZPR) como a liderança única e legítima do Estado.
Dessa forma, o Estado se comprometia em permitir uma organização independente do partido comunista, que lutava pela melhora na qualidade de vida da população em geral, exausta do dirigismo soviético. Os acontecimento na Polônia sinalizaram a deterioração do poder soviético sobre o bloco comunista europeu e inspirariam as populações dos países comunistas vizinhos a se organizarem na luta contra os regimes fantoches de Moscou.
O Estado polonês ressurgiu ao final da Primeira Guerra Mundial pela desintegração do Império Russo, de acordo com os termos do Tratado de Versalhes. Após um longo período de domínio russo, o novo país precisava afirmar sua identidade nacional e o catolicismo continha os elementos para a luta por autodeterminação. A religião se constituiu em elemento central do nacionalismo polonês, sobretudo em oposição à Igreja Ortodoxa Russa, mas também em oposição ao protestantismo da Prússia, outra velha inimiga.
Invadida pela Alemanha no início da Segunda Guerra Mundial e ocupada pelo Exército Vermelho no seu término, a Polônia foi “entregue” aos soviéticos pelas potências Aliadas na Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945. Em dois anos, o governo de coalização previsto em Yalta acabou monopolizado pelo Partido Comunista polonês graças à Moscou, tornando-se seu satélite.
Assim, o poder comunista era visto em parte como uma força estrangeira ditando os rumos do país, ao mesmo tempo que, no início, conservava bastante legitimidade diante da esperança de reconstrução do país devastado. Mas o totalitarismo de Joseph Stalin impedia qualquer forma de dissidência e, mesmo após sua morte, em 1953, os movimentos grevistas que eclodiram na Polônia, Hungria e Alemanha Oriental para protestar contra o dirigismo de Moscou foram igualmente reprimidos. Com o tempo, a insatisfação com o comunismo foi crescendo em resposta à falta de liberdade política e à deterioração da qualidade de vida dos trabalhadores.
Por isso o surgimento da central sindical Solidariedade, fundada em 17 de setembro de 1980, e inicialmente reconhecida pela Suprema Corte polonesa, obteve forte adesão da população. Era a primeira vez que os trabalhadores de um país atrás da Cortina de Ferro conseguiam criar uma organização independente: um verdadeiro abalo sísmico nas bases do domínio soviético sobre a Europa Oriental. O Solidariedade, mais do que um sindicato, expressava um verdadeiro movimento popular de rejeição ao regime de partido único.
Os efeitos de sua criação ressoavam no Ocidente quando, no mesmo ano, Ronald Reagan foi eleito presidente dos Estados Unidos. Utilizando-se do exemplo dos trabalhadores poloneses, Reagan retomava o discurso mais duro da Guerra Fria classificando a URSS como o “império do mal”.
Na URSS, uma economia cada vez mais fragilizada por conta de sua própria dinâmica de baixa produtividade e alto déficit comercial com países da Europa Ocidental era desafiada pela “nova Guerra Fria” americana: as condições para tentar qualquer reação militar contra o Solidariedade inexistiam. Para completar, a indicação de Mikhail Gorbachev para o cargo de líder da URSS, em 1985, amenizou o ímpeto intervencionista soviético, dando início à era das reformas da perestroika do lado econômico e, mais importante, a glasnost que pregava a abertura política do país.
A luta pela abertura política na Polônia, contudo, ainda duraria até 1989. A resistência era organizada em grande parte em torno da Igreja Católica polonesa, seguindo a força do nacionalismo católico, que abrigava os dissidentes em seus espaços, convertendo as igrejas em santuários políticos. O Vaticano escolhia João Paulo II como o primeiro papa polonês em 1978, em um claro aceno político da Igreja às populações católicas dos Estados-satélites da URSS na Europa Oriental.
A Santa Sé embarcou em uma campanha ferrenha contra a ditadura totalitária polonesa, apoiando abertamente o movimento Solidariedade, especialmente quando este voltou a se tornar ilegal a partir do estabelecimento da Lei Marcial em 1981. Desde sua eleição no conclave, o papa realizou diversas visitas à Polônia a fim de se comunicar com os líderes do Solidariedade e dar ânimo popular à resistência.
A Lei Marcial foi imposta pelo governo comunista polonês para evitar uma intervenção direta de Moscou, pois a burocracia soviética enxergava a situação na Polônia com um potencial desestabilizador de todo o bloco. No período em que ficou em vigor, a lei levou à prisão de centenas de pessoas, incluindo Walesa, que seria solto apenas em 1982 e um ano mais tarde receberia o Nobel da Paz.
Desde a ascensão de Gorbachev, não havia mais sustentação para que o governo mantivesse o país sob Lei Marcial, declarando um mais ameno “estado de guerra”, o que congelou a situação política até o fim do regime. A situação econômica só se agravou ao longo da década, culminando no aumento de preços de 60% em toda a Polônia em 1988. Novas greves cresciam no país, forçando o regime comunista a voltar a negociar com os líderes do Solidariedade, ainda ilegal. Walesa firmou um novo acordo para pacificar os grevistas em troca da volta do Solidariedade à legalidade, em fevereiro de 1989. Mesmo assim, o regime continuava com seus malabarismos para tentar resolver a questão econômica, permanecendo a pressão para sua substituição por meio de eleições.
Os “Acordos da Mesa Redonda”, depois de dois meses de negociações, levaram à abolição do regime de partido único e à vitória eleitoral triunfal dos candidatos do Solidariedade na primeira eleição livre do país.
A Polônia tinha, enfim, um chanceler não comunista: Tadeusz Mazowiecki, jornalista apoiador do Solidariedade desde sua gênese. Ao mesmo tempo, as negociações por abertura na República Democrática Alemã já eram intensas, inclusive com alemães orientais saindo pelas fronteiras em direção ao Ocidente.
Lech Walesa se reúne com João Paulo II após se tornar o primeiro presidente da Polônia livre
Em 9 de novembro de 1989, caiu o Muro de Berlim. Como um efeito dominó, os países da Europa Oriental seguiram o mesmo caminho, todos realizando eleições após deporem seus governantes fantoches naquele ano, derrubando as últimas secções da Cortina de Ferro. Moscou assistia ao esfacelamento de seu império. Em 1990, aconteceu a primeira eleição presidencial na Polônia e, como esperado, Walesa ganhou o pleito. Walesa escolheu Roma para a sua primeira viagem como presidente.
Desde a instauração da democracia na Polônia, estabeleceu-se um consenso liberal de centro na política nacional. Isto permitiu que o país se reconstruísse após o fracasso da condução econômica pelo dirigismo soviético. Ao mesmo tempo, havia a noção de que as liberdades individuais e políticas do sistema democrático deveriam ser defendidas contra novos arroubos autoritários.
Dessa forma, a Polônia e os outros países da região pareciam ser promessas de democracias saudáveis. Ao longo da década de 1990 e nos anos 2000, foram observados de perto pelos países da Europa Ocidental, colocando-os sob a órbita da nascente União Europeia, em expansão. A esquerda remanescente na Polônia se organizou em partidos de orientação social-democrata e conduziu o país à entrada na UE em 2004. Depois, conservadores e liberais se alternaram no poder sem grandes danos às instituições do país.
O fim do governo do primeiro-ministro Donald Tusk, do Plataforma Cívica (PO), marcou um rápido derretimento da qualidade democrática do país, levando à ascensão do PiS. Entende-se essa ascensão, do ponto de vista histórico, como uma “guinada” à direita radical no país. A ascensão conservadora e católica na Polônia exibiu as fissuras históricas da sociedade polonesa, dividida entre um futuro democrático prometido com o pacto em Gdansk e uma profunda tradição moral-religiosa.
Os irmãos Kaczynski ajudaram a moldar o cenário ultraconservador na Polônia
Agora, a Polônia vê suas instituições democráticas liberais sendo diariamente confrontadas pelo PiS no poder. O partido inclusive tenta apagar o legado de Lech Walesa na liderança da luta por democracia no país, atribuindo esse papel a Lech Kaczynski, fundador do PiS, o que não encontra nenhum respaldo nos fatos. Em 2017, Walesa foi acusado pelo governo de ter sido espião da URSS durante a Guerra Fria, o que abalou sua imagem. A memória fragmentária do movimento que derrubou a ditadura comunista propicia o controle da narrativa pelo PiS.
Apesar de tudo, as últimas eleições mostraram que ainda há uma grande força democrática no país, tentando impedir a guinada autoritária do PiS no poder. Contudo, o legado de consenso ao redor da luta pela democracia simbolizado no Acordo de Gdansk está sendo abandonado em nome de um projeto nacionalista que pretende limitar cada vez mais as liberdades enquanto aposta na polarização para se perpetuar no poder. A memória do Acordo de Gdansk aos poucos se esvai, como um fantasma de um compromisso democrático frágil, que jamais foi plenamente alcançado.
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