A Antropologia ensina que, durante boa parte da história humana, as relações de intercâmbio, inclusive de bens, se davam fora do âmbito do mercado. Eram relações de reciprocidade, o que não significa relações igualitárias; pelo contrário, elas encobriam assimetrias de status e poder.
George Washington discursa durante a Convenção que elaborou a Constituição americana de 1787, na qual o ideal do “contrato social” foi posto em prática pela elite econômica
A sociedade moderna transformou boa parte das relações sociais em relações contratuais, nas quais as partes estabelecem claramente deveres e obrigações. O contrato representou, em vários sentidos, um avanço nas relações econômicas, ao dar transparência aos termos em que ambas as partes se relacionam. Muitas vezes, contudo, os contratos escondem assimetrias de poder – e parte importante da história do capitalismo democrático teve como epicentro a procura de limitar estas assimetrias, seja nas relações de trabalho ou de consumo.
Apesar do avanço do contratualismo, continuam a existir áreas de convivência social nas quais os termos do intercâmbio e expectativas entre as pessoas são outros, para além dos interesses materiais. As mais importantes certamente são a amizade, as relações amorosas e a família. São relações onde predomina um bem maior: a amizade, o afeto, o amor, a solidariedade. Embora a família possua componentes contratuais, ela abarca os mais amplos aspectos da vida, que não podem ser transformadas em normas jurídicas.
Como definir relações que são difusas, mas nem por isso menos fundamentais para a convivência? Como não se trata de inventar novas palavras, podemos chamá-las de pactos. Os pactos incluem conviver com momentos em que as expectativas em relação ao outro não se cumprem, e incluem brigas, longos silêncios, afastamentos, frustrações.
Nesse sentido, a democracia é um pacto social, não um contrato. Certamente está balizada pela Constituição e as instituições do Estado, mas o que ela estabelece são parâmetros, regras gerais de convivência capazes de produzir derrotas, frustrações e insatisfações. No entanto, tudo isso deve ser suportado em nome de um bem maior: a continuidade de relações de convivência e a escolha de governos fundados na liberdade de expressão e organização.
O ideal da liberdade ainda tem força para guiar o povo?
Desde os alvores da sociedade capitalista liberal, boa parte das chamadas classes proprietárias tentaram limitar o avanço da participação popular e das reformas sociais. Frente a estes avanços, ou bem os grupos econômicos dominantes se adaptaram, permitindo a construção de sociedades capitalistas democráticas sólidas, com amplo respaldo social, ou caíram na tentação autoritária ou mesmo totalitária, rompendo o pacto democrático. Para fazer jus à história do século XX, processos de certa forma similares podem ser encontrados em setores das classes populares, que apoiaram ideologias, líderes e governos autoritários.
Em ambos os casos o que aconteceu foi o abandono do pacto democrático, na expectativa de que os governos assegurassem um contrato, no qual o apoio à destruição da democracia tem como contraparte políticas dos governos autoritários favorecendo os interesses econômicos de tal ou qual grupo.
O problema é que o poder político é muito mais amplo e discricionário do que os termos aparentes do contrato. O Estado autoritário tem razões e interesses diferentes daqueles ditados em certo momento pelo “mercado” ou pela população pobre. No caso dos grupos econômicos que apoiam líderes autoritários, em geral o fazem na suposição de que serão capazes de controlar seus componentes “irracionais”. Nos setores populares se encontra a ilusão mais difusa de receberem um quinhão maior da riqueza social.
A destruição do pacto democrático supõe uma transação mefistofélica, na qual os interesses imediatos justificam, como aconteceu recentemente no Brasil, o apoio de setores do empresariado e da classe média à candidatura de Jair Bolsonaro.
A racionalização é que o governo Bolsonaro possui um componente bom, a agenda pro-mercado, e um lado ruim, a agenda político-cultural anti-liberal. Curiosamente, alguns críticos do atual governo fazem uma diferente, mas organizada sob termos similares. A agenda pró-mercado seria um componente intrínseco da agenda autoritária.
Se definirmos o caráter de um governo pelo respeito às normas do pacto democrático, é irrelevante que ele avance políticas pró-mercado ou não. Colocar as políticas econômicas no mesmo nível que o respeito às instituições democráticas indica um déficit de valores democráticos de setores do empresariado e das classes médias que apoiaram o atual governo. Além de uma falta de cultura histórica, pois o Golem, depois de solto, é incontrolável.
O desafio do momento atual do Brasil é recuperar o pacto democrático. Não se trata de cobrar atitudes passadas, mas aprender com os erros cometidos e não aceitar que eles voltem a se repetir, em particular não permitindo que demonizações de partidos opositores se transformem em porta de entrada para propostas autoritárias.
A luta contra os demônios levou à Inquisição, à queima de mulheres possuídas por Satanás e aos regimes totalitários do século XX. Todos aqueles que querem recuperar uma pátria brasileira, que com todos seus problemas produziu uma prodigiosa cultura que valoriza a diversidade e o prazer gregário e lúdico da convivência apesar das diferenças, devem começar a trabalhar na mesma direção: a da reconstrução do pacto democrático.
As ideias deste texto são desenvolvidas no livro Em que mundo vivemos?, de Bernardo Sorj , disponível para download gratuitamente. “O livro é um esforço de compreensão das relações entre democracia e capitalismo. Analiso os diversos conflitos que elas produzem – econômicos, políticos e culturais –, o substrato de valores e interesses que comportam, e os desafios colocados pela ascensão de tendências autoritárias a nível nacional e internacional.” (Bernardo Sorj)
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