POLÔNIA: A ELEIÇÃO DA HOMOFOBIA

Álvaro Anis Amyuni

(Pesquisador do site 1948 e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP)
13 de julho de 2020

 

O presidente da Polônia, Andrzej Duda, foi reeleito. A Comissão Eleitoral Nacional declarou que Duda, do ultraconservador PiS (Partido da Lei e Justiça), obteve 51,2% dos votos, contra 49,8% de Rafal Trzaskowski, do liberal Plataforma Cívica. O comparecimento às urnas foi de 68,2%, considerado alto em um país cujo voto não é obrigatório. A apuração dos votos evidenciou uma disputa acirradíssima, com indefinição entre os dois candidatos desde as primeiras pesquisas de boca de urna, mas já no início da noite de ontem na Polônia o presidente declarava vitória sobre seu opositor. 

A eleição presidencial polonesa foi marcada por intensa polarização entre os ultraconservadores nacionalistas e os liberais, após um primeiro turno conturbado pela pandemia de Covid-19. As sondagens de intenção de voto vinham indicando uma disputa apertada entre os dois candidatos, o que acabou se confirmando. Os partidários da Plataforma Cívica indicaram que devem contestar o resultado, apontando irregularidades na votação, o que deverá aumentar a tensão política. O resultado revela uma Polônia dividida, mas não impede o prosseguimento do projeto de transformação autoritária do Estado conduzido pelo PiS.

Andzrej Duda

Evento de campanha do presidente Andrzej Duda, reeleito neste domingo. 

 

Reviravolta pandêmica na campanha presidencial

A eleição presidencial polonesa estava marcada para 10 de maio mas, devido aos riscos sanitários colocados pela pandemia, foi adiada para 28 de junho. Graças a isso a oposição ao governo de Duda, líder do PiS, reformulou a sua estratégia. Antes do adiamento, Duda possuía larga vantagem nas pesquisas eleitorais, enquanto a então candidata da Plataforma Cívica, Malgorzata Kidawa-Blonska, não ultrapassava a marca de 5% das intenções, em trajetória descendente. Então, a Plataforma Cívica mudou seu candidato.

O substituto, o prefeito de Varsóvia, Trzaskowski, revelou apelo eleitoral muito mais forte, devido à sua popular gestão à da capital. Trzaskowski também compôs o governo do ex-primeiro-ministro Donald Tusk, como ministro da Administração e Digitalização, entre 2013 e 2014. Na eleição para a prefeitura em 2018, derrotou o candidato do PiS de forma arrasadora e sua gestão foi encarada como a “era dos investimentos”.

Contudo, no contexto da campanha presidencial, o prefeito tornou-se mais conhecido por sua defesa das minorias, especialmente da população LGBT, que apoiou publicamente, assinando um manifesto. O gesto consolidou a sua imagem de político progressista, acentuando o contraste com o presidente. Diante da nova realidade eleitoral, Duda dobrou sua aposta no conservadorismo reacionário. Para tentar minar a trajetória ascendente do novo candidato, ele decidiu apelar justamente ao discurso homofóbico

Trzaskowski

Rafal Trzaskowski, em comício de campanha. As bandeiras da União Europeia aparecem como símbolo da tolerância e da oposição ao nacionalismo ultraconservador de Duda.

A pauta principal das eleições passou a ser o tema LGBT, ao lado do debate sobre valores morais e comportamentais. No campo das políticas econômicas, os dois candidatos principais divergem muito pouco. Trzaskowski recuou das propostas econômicas liberais que caracterizaram seu partido e prometeu conservar os programas de bem-estar implantados durante o governo do PiS, que reduziram os níveis de pobreza da população idosa.

Atualmente, na Polônia, a esquerda desempenha papel marginal e, por isso, a polêmica sobre valores polariza-se entre os ultranacionalistas de Duda e os liberais da Plataforma Cívica. A irrelevância política da esquerda no cenário polonês ficou evidenciada pela fraca votação de seu principal candidato, Robert Biedron (2,2%). No primeiro turno, Duda obteve 43,5%, Trzaskowski ficou com 30,5%, e o independente Szymon Holownia, que se apresentou como candidato “anti-establishment”, conseguiu 13,9%. À frente de Biedron, ainda apareceu o nome de outro ultranacionalista conservador, Krzysztof Bosak, com 6,8%.

Resultado primeiro turno eleição polonesa 2020

Fonte: Statista

A fraqueza política da esquerda polonesa reduz o campo de contestação às políticas econômicas ou sociais conduzidas pelo governo. No tabuleiro eleitoral do país, o jogo se concentra na polaridade entre o PiS, cujas bases se espalham pelo oceano de pequenos núcleos urbanos conservadores, e a Plataforma Cívica, que se nutre das grandes cidades liberais, europeístas e cosmopolitas.

 

Homofobia contra direitos

 As declarações de Duda definiram a estratégia contra Trzaskowski ainda no primeiro turno. A principal delas foi que a defesa dos direitos LGBT seria “uma ideologia ainda mais destrutiva do que o comunismo”. Acrescentou ainda: “a geração dos meus pais lutou durante 40 anos para eliminar a ideologia comunista das escolas, para que não fosse forçada junto das crianças. Não lutaram para que uma nova ideologia aparecesse que é ainda mais destrutiva.”

Duda prometeu mudanças no texto constitucional para impedir o casamento entre pessoas do mesmo sexo e se colocou contra a adoção de crianças por casais LGBT. Contudo, desde as eleições legislativas de 2019, o PiS governa com estreita maioria, não suficiente para aprovar emendas constitucionais. Além disso, Duda prometeu retirar das escolas o ensino sobre temas relativos aos direitos LGBT, sob a justificativa de proteger as crianças e a “família tradicional”.

A estratégia é sempre a de apelar para a parcela conservadora que chancela as políticas retrógradas no campo cultural e de valores conduzidas pelo PiS, que converteram a Polônia num dos países mais hostis à população LGBT na União Europeia. Ciente dos limites eleitorais impostos à defesa de valores liberais e de minorias, Trzaskowski também se declarou contrário à adoção de crianças por casais LGBT. Assim, equilibrando cuidadosamente seu discurso, o prefeito de Varsóvia tentou quebrar a dinâmica imposta ao debate pelo presidente, focando em propostas sobre problemas reais da sociedade polonesa como a economia e os perigos da reforma constitucional pretendida pelo PiS.

Parada gay Polônia

Parada gay em cidade polonesa. Neste ano, por conta da pandemia de coronavírus, a comunidade LGBT não pôde realizar os eventos pelo país, impossibilitando a contestação nas ruas do discurso homofóbico do presidente

 

Trzaskowski apostou na fadiga dos temas morais e culturais impostos por Duda durante a campanha. O candidato liberal tentou transformar a eleição em um referendo sobre o governo do PiS, a fim de colocar freios ao projeto de transformação do Estado polonês encampado pelo partido nacionalista. Há, neste projeto, o flerte com o autoritarismo e com o projeto de implantação de uma “democracia iliberal”, nos moldes do modelo húngaro de Viktor Orban.

Na aposta de Trzaskowski, a eleição presidencial polonesa seria uma oportunidade para frear a onda populista de direita que assola as democracias ocidentais. No sistema político polonês, o presidente tem o poder de vetar certas ações do governo constituído a partir da maioria parlamentar. Hoje essa maioria encontra-se nas mãos do PiS, que também ocupa a presidência. A eventual vitória do candidato oposicionista colocaria mais freios às iniciativas do partido majoritário no parlamento, acumulando obstáculos ao projeto ultraconservador do PiS.

Mas a eleição presidencial não é tão decisiva como parece. No sistema semi-parlamentarista polonês, o PiS conservaria sua maioria no parlamento e o direito de indicar o gabinete de governo. Além disso, o partido extrai influência de suas conexões com os demais partidos da direita nacionalista que contestam os princípios e valores da União Europeia.

 

O PiS e o projeto ultraconservador

Duda e o PiS se exibem como os bastiões da defesa dos valores conservadores e nacionais poloneses. A ofensiva contra os direitos LGBT, envolvida em comparações retóricas com o comunismo, desempenha importantes funções simbólicas. Para a direita nacionalista, a identidade nacional e sua autenticidade sofrem a dupla ameaça de forças internas cosmopolitas e de forças externas “globalistas”. A gramática eleitoral de Duda organiza-se ao redor desses eixos de forte apelo em parte da população polonesa.

O PiS, contudo, nem sempre foi um partido populista de direita. Na origem, o partido PiS se encaixava dentro na centro-direita tradicional e não almejava a supressão de direitos de minorias ou a alteração do sistema democrático. No livro The Far-Right Today, o cientista político Cas Mudde argumenta que o partido faz parte das correntes de direita nacionalista que transformaram sua ideologia após chegar ao governo.

Jaroslaw Kaczynski (à direita), líder do PiS e homem-forte da Polônia, em encontro com o primeiro-ministro húngaro Orban

Criado em 2001, sob uma ideologia centrista inspirada na democracia-cristã, como a CDU de Angela Merkel na Alemanha, o PiS começou seu trânsito rumo ao nacionalismo nas eleições de 2005, quando formou um governo de coalizão com o eurocético Liga das Famílias Polonesas e o nacional-populista Autodefesa da República da Polônia.

Dois anos depois, perdeu as eleições para a Plataforma Cívica, evento que assinala uma reviravolta mais marcante. Dali em diante, o partido perdeu eleitores moderados e avançou entre o eleitorado ultraconservador, que atualmente forma seu núcleo duro.

A virada autoritária confirmou-se em 2010, quando o PiS apresentou o esboço de uma nova Constituição, que nem chegou a ser pautado para voto parlamentar. O projeto fortaleceria a figura do presidente e diminuiria o sistema de freios e contrapesos, impedindo o Tribunal Constitucional de anular leis inconstitucionais. Também enfraqueceria a independência do Judiciário e do Banco Central e, ainda, introduziria elementos de uma “democracia plebiscitária” na qual o presidente ganharia a prerrogativa de convocar referendos populares. 

O PiS voltou ao poder em 2015, dessa vez com um governo majoritário, o que elevou suas ambições de transformação do Estado polonês. Jaroslaw Kaczynski, parlamentar e co-fundador do partido, considerado o líder de facto da Polônia, afirmou que existem “partes de nossa realidade que devem não meramente ser modernizadas, mas rejeitadas”.

Há, nisso, uma referência à ambição de mudança radical do sistema político. O partido polonês não é, contudo, o criador dessa cartilha de “como destruir uma democracia”, cujas fontes encontram-se na experiência da Hungria de Orban.

 

Cooperação iliberal

O partido Fidesz, de Orban, percorreu uma trajetória muito parecida à do PiS de Kaczynski e Duda. Inicialmente um partido de centro-direita, inclinou-se para o nacionalismo autoritário após a chegada ao governo. Então, estabeleceu profundas ligações com a Igreja Católica e engajou-se na promoção de um “nacionalismo cristão”.

Segundo o Fidesz, a Hungria enfrenta inimigos “globalistas” que ameaçam a identidade nacional cristã. O discurso tem fortes tonalidades antissemitas: o principal agente do “globalismo” seria o financista e filantropo George Soros, um bilionário judeu húngaro. Tem, também, nítidas cores islamofóbicas: os “globalistas” seriam arautos da imigração em massa, a fim de afogar a identidade cristã húngara sob uma onda de invasores muçulmanos.

No caminho de seu projeto autoritário, Orban enfrenta o obstáculo das instituições da democracia liberal, rotulada como verdadeiro empecilho para a imposição da “vontade do povo”, uma ideia compartilhada pelo nacionalismo populista. Num discurso para estudantes universitários, em 2014, o líder húngaro pregou o “fim da democracia liberal”, que deveria ser substituída por uma “democracia iliberal”, “pura” e plebiscitária.

O PiS mimetiza o projeto político do Fidesz em sua quase totalidade. Em 2011, Kaczynski afirmou-se “convencido de que chegará o dia em que teremos Budapeste em Varsóvia”. O sinal mais relevante da cooperação populista entre os dois governos veio da visita de Orban à Polônia em 2018, primeira viagem internacional do líder húngaro após sua reeleição, um gesto de consolidação da parceria ideológica.

Manifestação de extrema-direita na Polônia reivindicando uma “Polônia Católica”

As semelhanças históricas entre Polônia e Hungria também facilitam a relação entre os dois governos. O ressentimento compartilhado dos longos períodos de ditaduras comunistas sob a influência da União Soviética ajuda a explicar a fraqueza dos partidos de esquerda desde o fim da Guerra Fria. Ao mesmo tempo, semeiam o terreno social no qual tanto Duda e Kaczynski, na Polônia, quanto Orban, na Hungria, exploram o medo do comunismo e o associam a movimentos pelos direitos de minorias. Trata-se de uma forma estelionatária de impor valores ultraconservadores à sociedade e uma grosseira exploração das raízes católicas de vasta parcela das populações.

A diferença crucial entre o Fidesz e o PiS encontra-se na atitude diante da Rússia de Vladimir Putin. Orban é um firme aliado de Putin, pois vê com bons olhos as transformações realizadas na Rússia que cristalizaram o regime autoritário e resgataram a aliança czarista entre a Igreja Ortodoxa e o Estado. Na Polônia, por outro lado, tal aproximação com a Rússia seria quase impossível, devido ao trauma histórico da ocupação do país pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial.

Os nacionalismos polonês e russo são inconciliáveis. O catolicismo polonês expressa a resistência nacional ao poder ortodoxo russo, que subordinou a Polônia no século XVIII. O PiS é, por isso, um partido explicitamente anti-russo, o que o distingue do Fidesz.  

Contudo, do ponto de vista da União Europeia, Fidesz e PiS representam faces complementares de um mesmo desafio: a ascensão da “democracia iliberal”. Nos últimos anos, ficou evidente que a União Europeia não dispõe de eficazes antídotos institucionais à moléstia. Resta a esperança numa reação dos povos, por meio da arma democrática do voto. Na Polônia, faltou pouco.   

 

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