Guga Chacra 

(Jornalista, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Columbia, é comentarista da GloboNews e colunista do jornal O Globo em Nova York)

8 de junho de 2020

 

Da quarentena ao protesto nas ruas – a cisão não poderia ser mais radical.

Estamos há quase três meses em Nova York evitando sair de casa, embora a cidade não tenha sido colocada em um confinamento tão rigoroso como o da Itália ou o da Espanha. Podemos passear, fazer exercício, ir aos parques e até viajar. Ainda assim, a imensa maioria optou por se aventurar o mínimo possível nas ruas para não correr o risco de ser infectado pela Covid-19 ou de infectar alguém. Quando saímos, vestimos máscaras.

O temor de ser contaminado era enorme em março e abril, quando chegaram a morrer quase 800 pessoas em apenas um dia. Escutávamos a sirene de ambulância dia e noite. Víamos as imagens de um navio-hospital no rio Hudson, do hospital de campanha no Central Park e de corpos armazenados em caminhões refrigerados. Havia mais ligações diárias para o telefone de emergência do que no 11 de Setembro, dia fatídico dos atentados terroristas de 2001.

Ao longo de maio, a situação foi melhorando. A evolução no combate à pandemia se tornou visível. Os números indicavam uma redução no número de mortes para cerca de 50 diárias. Ainda assim, a recomendação das autoridades era para evitar grandes aglomerações. Sofremos o risco de uma segunda onda.

No dia 25 de maio, porém, uma executiva branca e um professor afro-americano tiveram uma discussão no Central Park. No meio, a jovem usou todo o seu privilégio branco e disse que iria chamar a polícia para falar que um “afro-americano” a estava ameaçando. O professor filmou e o vídeo viralizou, com as pessoas vendo estas imagens do racismo e condenando a executiva, que foi demitida de seu emprego em uma consultoria. 

Horas depois, em Minneapolis (Minnesota),  um policial branco matava por asfixia um afro-americano, George Floyd, ao manter seu joelho sobre o pescoço da vítima por oito minutos. No dia seguinte, milhares saíam às ruas da cidade para protestar contra a violência policial e o racismo. 

O nome de George Floyd correu os EUA e o mundo. Os protestos chegaram a Nova York dias depois. Milhares começaram a sair às ruas. As manifestações eram estritamente pacíficas, mas houve muitos episódios de vandalismo no fim de semana de 30 e 31 de maio, além de saques. Ao longo da semana seguinte, os atritos entre manifestantes e policiais diminuíram. 

O surreal é que estes protestos ocorrem em meio à pandemia. Manifestantes usam máscaras e tentam – dentro do possível e sem muito sucesso – manter o distanciamento social. Ainda assim, os infectologistas alertam que aglomerações, mesmo ao ar livre, podem provocar novos surtos. Saberemos em breve se as manifestações causarão uma nova onda. 

“Lembre-se: este país foi fundado pelo protesto”, disse o ex-presidente Barack Obama. Os protestos meio que encerraram de forma quase abrupta a sensação do isolamento social em Nova York.  Não vemos mais as ruas vazias. As manifestações conseguiram colocar o combate ao racismo no topo da agenda eleitoral. Além da violência policial, os afro-americanos são também os mais afetados pela pandemia e pela recessão econômica.

56 anos atrás, em 1964, o Congresso aprovou a Lei dos Direitos Civis, pondo fim à segregação racial oficial. O memorial a Martin Luther King, em Washington, fixou na pedra a história dos protestos que proporcionaram aquela ruptura histórica. Hoje, a maioria da população apoia as manifestações e concorda que há violência policial contra os afro- americanos. O tema, assim como a questão dos homossexuais começa a se tornar um consenso, ao contrário do tema dos armamentos. Vamos ver se esta sensação se reflete nas urnas e em avanços para reforma policial.