Esta é a segunda parte do dossiê sobre a história da imigração nos Estados Unidos, dividida em cinco partes: 1 – País de colonos ou país de imigrantes?; 2 – O “perigo amarelo”; 3 – Os mexicanos; 4 – A Era dos Direitos Humanos; 5 – Guerra às drogas e ao terror global.
A conquista do Oeste – o mítico farwest de tantos livros e filmes – ganhou impulso definitivo na metade do século XIX, quando a descoberta de ouro na Califórnia atraiu milhares de migrantes, aventureiros, mineiros e trabalhadores. A partir de então, a nova fronteira deslocou-se para a área do oceano Pacífico: Havaí, Japão, Filipinas, China…
Para não ficar em desvantagem e ter acesso ao imenso mercado chinês, já parcialmente ocupado por britânicos, franceses e alemães, a partir da Guerra do Ópio (1839-42), o governo de Washington defendeu firmemente uma “política de portas abertas” para a China e atuou diplomaticamente para ser seu principal aliado no Ocidente. Um dos principais frutos dessa relação diferenciada foi a assinatura, em 1868, do Tratado de Burlingame, que abriu as portas dos EUA para imigrantes chineses, atraindo-os aos milhares.
A conjunção entre o pensamento racialista, o nativismo e o exclusionismo – analisados na primeira parte desse dossiê – produziu graus diferentes de xenofobia ao longo do tempo. Mas a chegada dos chineses, a partir da metade do século XIX, catalisou aquelas ideias e sentimentos sobre o caráter branco e protestante (Wasp) da jovem nação. O resultado foi um movimento amplo de opinião pública que terminou com inúmeras restrições à presença de chineses nos EUA. Primeiro porque seriam uma “raça” inferior, os amarelos; e depois, no começo do século XX, quando o Japão começou a aparecer como um concorrente dos EUA no Pacífico, todos os “amarelos” passaram a ser identificados à dissimulação, fingimento, traição. Era o “perigo amarelo”.
Logo os empresários das fazendas, minas e ferrovias perceberam as vantagens de empregar aquela mão de obra, apreciada pelo seu caráter disciplinado, trabalhador e de baixo custo; ainda desvinculada de qualquer tipo de organização trabalhista ou partidária. Os chineses costumavam chegar como partes de grupos já contratados por empresários locais, com contratos negociados por intermediários e atitude obrigatoriamente servil.
É dessa postura servil que se originou o termo Coolies, que originalmente designava um servo, mas acabou identificando esses trabalhadores chineses super explorados. Hoje é uma palavra com forte valor pejorativo, a ser evitada. Já os chineses descreviam a América como a “montanha de ouro” – Gam Saan.
Para os trabalhadores de origem europeia, a presença chinesa era motivo de grande tensão e eventuais explosões de violência. Além das dificuldades de comunicação e interação dificultarem a empatia, os chineses eram elogiados pelos chefes pelo trabalho obstinado e disciplinado, enquanto os trabalhadores ocidentais viam condições de trabalho análogas à escravidão e denunciavam os baixíssimos salários pagos aos coolies como tática para manter os salários arrochados.
E havia o próprio preconceito racial dos trabalhadores brancos, que comumente protestavam, quando não rejeitavam simplesmente trabalhar lado a lado com os “amarelos”. Na hierarquia dos homens e das “raças”, quebravam pedras juntos nas ferrovias chineses e irlandeses.
O trabalho chinês é parte fundamental dessa história de anônimos que abriram túneis, construíram pontes sobre desfiladeiros e ligaram margens distantes de rios
As grandes crises econômicas pelas quais a China passou naquele final de século de ocupação das potências imperialistas empurraram dezenas de milhares de chineses para a bacia do Pacífico. Os Estados Unidos, cuja costa oeste estava sendo alcançada naquele momento, eram um mercado de trabalho ávido por mão de obra barata. A corrida do ouro começou em 1848. Em 1852, chegaram mais de 20 mil chineses à Califórnia.
Inicialmente eles seguiram o rumo das minas, do Gold Rush, e partiram para Serra Nevada, ao norte. O esgotamento das minas deslocou-os para o trabalho na construção da primeira ferrovia transcontinental, ligando São Francisco a Nova York, um trabalho hercúleo. A discriminação levou-os a se agruparem em corporações: assim, protegiam-se tanto de sua ignorância do idioma inglês, necessário para negociar os contratos, quanto da xenofobia cada vez maior e violenta.
Eram trabalhadores dedicados e poupadores; gastavam pouco, o que não os fazia muito populares junto aos comerciantes locais. Todas as economias eram enviadas às famílias, na China. Não falar inglês e viverem fechados em comunidade favorecia o estranhamento e a desconfiança recíproca entre chineses e ocidentais.
Quando a transcontinental foi inaugurada, em 1869, 10 mil chineses entraram subitamente no mercado de trabalho na Califórnia, causando grande tensão. Em 1871, duas dezenas de chineses foram assassinados por uma multidão em Los Angeles a pretexto de vingar o assassinato de um homem branco por um chinês, cuja história não era exatamente a que tinha sido lançada para a multidão. Depois, vieram muitos outros episódios de ataque racial.
A discussão em torno da presença chinesa nos EUA se tornou tão ampla que podemos lhe atribuir a difusão das ideias nativistas para os estados e territórios do oeste, ainda em processo de ocupação e organização política. Os chineses eram um “outro” facilmente identificável.
Por isso, tornaram-se alvo da primeira lei destinada a fechar as portas a imigrantes, em nome de diferenças raciais e culturais impossíveis de serem superadas, que inviabilizariam a assimilação dos chamados “valores americanos”. Os chineses foram postos de lado no melting pot, como mais tarde seriam os japoneses e outros “amarelos”.
Em 1854, um caso julgado pela Corte Suprema (People v. Hall) determinou que chineses, negros e nativos americanos não poderiam testemunhar em tribunais, invalidando um dos direitos liberais mais básicos: a igualdade perante a lei. O argumento da superioridade da raça branca e a ameaça de “contaminação” externa permitiram tal distinção sustentada pelo tribunal que deveria garantir os direitos fundamentais dos cidadãos. Para a Corte Suprema daquela época, essas categorias não se aplicavam aos não-brancos.
O caráter federativo do Estado americano e sua grande autonomia legislativa permitia aos governos estaduais decidirem sobre temas diversos, especialmente quando a União ainda não tinha definido claramente sua posição e seu papel sobre a questão. Assim, foi o estado da Califórnia quem saiu na frente ao aprovar leis para discriminar os chineses.
O governo californiano declarou guerra aos contratos de trabalho assinados coletivamente entre importadores de mão de obra e trabalhadores chineses. Denunciando trato similar à escravidão, usou a linguagem dos direitos para sustentar o programa da xenofobia: “A presença de estrangeiros que não podem se tornar cidadãos dos Estados Unidos é declarada como perigosa ao bem-estar do Estado e a Legislatura deverá desencorajar sua imigração por todos os meios em seu poder. O coolieísmo asiático é uma forma de escravidão humana e, como tal, está proibida para sempre neste Estado – e todos os contratos envolvendo trabalho de coolies deverão ser anulados. Todas as companhias e corporações, sejam elas formadas neste país ou em qualquer país estrangeiro, destinadas a importação de tal tipo de mão de obra, estarão sujeitas às penas prescritas por esta Legislatura.”
Em 1862, a Califórnia lançou a “Lei para proteger os trabalhadores brancos contra a competição dos trabalhadores coolies e para desencorajar a imigração chinesa para a Califórnia” (An Act To Protect Free White Labor Against Competition With Chinese Coolie Labor, And To Discourage The Immigration Of The Chinese Into The State Of California April 26, 1862). A tática foi criar uma taxa sobre cada imigrante contratado pelos intermediários, mas o efeito foi menor que o esperado. No máximo, o encarecimento das taxas ajudou a criar rotas alternativas, especialmente via México, onde já existiam várias trilhas.
Por fim, em 1870, decididos a recusar abertamente a permanência chinesa e a obtenção de cidadania, a Califórnia aprovou a Lei de Naturalização (Naturalization Act). A lei negava a priori a cidadania aos chineses, em qualquer tempo, além de proibir a entrada das mulheres chinesas, em geral associadas à prostituição e ao concubinato, mas também porque os legisladores acreditavam que sem as esposas e mães, os homens não se enraizariam.
Quanto mais chineses chegavam, mais a imprensa, nativista ou não, se unia aos críticos da imigração “amarela”, e o assunto acabou chegando ao Congresso. Havia um sentimento generalizado de rejeição aos chineses por suas diferenças físicas, culturais e morais – e, aliás, foram questões morais as que realmente serviram para atacar a presença chinesa. A possibilidade de mais de uma esposa e concubinas era uma devassidão inaceitável para a família cristã. Foi esse o caminho da argumentação restricionista.
Muitos fatores dificultavam a assimilação dos chineses, principalmente a aparência física. Sob lei da dinastia Qing, os chineses Han eram obrigados, sob ameaça de decapitação, a raspar a frente de suas cabeças e prender os cabelos restantes em uma trança. Os imigrantes buscavam retornar o mais rápido possível para a China para ver suas famílias, o que seria legalmente impossível se cortassem a trança, alvo de intensa discriminação nos Estados Unidos.
A trança chinesa, em imagem utilizada na campanha xenófoba nos EUA
A primeira lei federal que expressou esse sentimento de indignação moral foi a Lei Page (Page Act, 1875), na prática uma lei antiprostituição, para proibir a entrada de mulheres chinesas, para evitar a prostituição ou concubinato. No mesmo ano, em seu discurso ao Congresso, o presidente Ulysses S. Grant incluiu em seu balanço geral a seguinte observação: “Afaste-se a imoralidade licenciada, como a poligamia e a importação de mulheres para fins ilegítimos. Parece que agora, quando estamos prestes a começar o segundo século de nossa existência nacional, seria o momento mais adequado para essas reformas.”
A Lei Page também atacava o trabalho barato chinês e impunha multa e prisão para quem tentasse trazer trabalhadores da China, Japão ou qualquer país do Leste Asiático. O detalhe é que essa lei estava em franca contradição com o Tratado Burlingame, que autorizava a imigração chinesa, mas o Congresso não se preocupou com isso. Foi o apelo à moral e aos bons costumes que salvou a lei.
O cartaz se refere à Lei de Exclusão de 1892, quando foi prorrogada a proibição de imigração chinesa por mais dez anos
A mobilização decorrente do preconceito racial foi definitivamente demonstrada em 1882, pela Lei de Exclusão Chinesa (Chinese Exclusion Act), que suspendeu o direito de entrada e permanência no país durante dez anos. Em 1892, a Lei Geary (Geary Act), proposta por Thomas J. Geary, congressista pela Califórnia, prorrogou a proibição até 1902. Para os chineses já residentes, a lei criava um visto interno de porte obrigatório, cuja falta poderia acarretar em deportação ou condenação a um ano de trabalhos pesados.
Em 1888, a Lei Scott, “para proibir a vinda e regular a residência dentro dos EUA e de seus territórios de chineses e pessoas de ascendência chinesa”, impedia o retorno aos Estados Unidos após uma visita à China, mesmo para um residente de longa data. Mais de 25 mil homens foram prejudicados por essa decisão. Em 1902 a restrição aos chineses foi declarada permanente.
À medida em que outros grupos provenientes de países asiáticos tentavam imigrar para os EUA, tiveram que lidar com o preconceito racial já instalado contra os chineses, os coolies. Asiáticos – chineses, japoneses, filipinos e mesmo indianos e paquistaneses – foram reduzidos a uma palavra: “amarelos”. Todos estranhos demais para os padrões Wasp e rapidamente incluídos nas mesmas leis criadas para os chineses, ou objetos de leis próprias de discriminação.
O cartaz diz: “Vote sim para a Proposição nº 1 da lei de terras estrangeiras. Salve a Califórnia dos japoneses, impedindo-os de comprar nossas terras. Vote sim”
Nos diferentes estados do oeste e do Meio-Oeste, os governos usavam seu poder para legislar sobre a propriedade da terra e formas de arrendamento, proibindo-as aos chineses, japoneses e coreanos (“estrangeiros não elegíveis para a cidadania”).
Leis assim foram aprovadas na Califórnia, no Arizona, no Arkansas, na Florida, em Idaho, na Louisiana, em Minnesota, em Montana, no Nebraska, no Novo Mexico, no Oregon, no Texas, em Utah, em Washington e em Wyoming. Essas leis discriminatórias permaneceram até 1952.
Assim como ocorreu com o Império Chinês no século XIX, também o Império Japonês foi forçado a abrir seus portos e territórios à presença ocidental. No caso japonês, o parto a fórceps foi feito pelo comandante Matthew C. Perry em 1854, quando sua “esquadra negra” fez uma pequena demonstração de força com as novas canhoneiras da era da segunda revolução industrial, disparando obuses contra Edo, a capital. Perry conseguiu o Tratado de Kanagawa, que abria dois portos aos americanos, assegurava proteção aos seus marinheiros e permitia a instalação de um consulado permanente. Pouco depois, em 1858, o Tratado Harris, ou Tratado de Amizade e Comércio, abriu ainda mais os mercados japoneses para os americanos.
A pressão ocidental sobre o Japão provocou a Revolução Meiji, a partir de 1868, quando houve mudança no trono e o novo imperador resolveu agir para fortalecer seu poder de fato, entre outras coisas estimulando o desenvolvimento técnico-industrial do Japão. Despontando rapidamente como potência imperialista sobre as áreas da China, Coreia e Havaí, o arquipélago do Sol Nascente e os Estados Unidos começaram a desenhar uma nova geopolítica para o Pacífico, cuja hegemonia seria disputada por ambos.
Durante a presidência de Theodore Roosevelt (1901-1909), os americanos agiram de modo a buscar o equilíbrio e preservar as boas relações. Desse ambiente saíram o “Acordo Taft-Katsura”, na realidade uma série de notas de uma conversa entre os representantes dos dois governos, pelas quais o Japão reconhecia as Filipinas como área de influência americana, enquanto tinha reconhecida a Coreia como parte de sua esfera diplomática.
Mas como dar tratameno especial aos imigrantes japoneses nos EUA depois de toda a campanha contra os chineses “amarelos”? A solução salomônica conduziu a um extra-oficial “Acordo de Cavalheiros”, em 1907, segundo o qual os americanos garantiam o direito de permanência e tratamento não discriminatório para os japoneses, em troca do governo imperial japonês se comprometer a interromper o fluxo de imigrantes para os EUA e Havaí.
Tudo deixou de valer depois de 1917, quando uma nova Lei de Imigração foi aprovada. Conhecida como “lei da zona asiática barrada”, ela demonstrava claramente o preconceito racial contra os “amarelos”. Por fim, em 1924, a “lei de cotas” excluiu definitivamente os “amarelos” da lista de candidatos à imigração e cidadania. Tal medida foi muito mal recebida no Japão, como prova inconteste de racismo contra os japoneses, embora o Japão estivesse abraçando as mesmas ideias racialistas para justificar a expansão de seus domínios.
O nacionalismo chauvinista tomou conta dos Estados Unidos ao final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e por boa parte dos anos 1920. O país retomou sua tradição isolacionista e se fechou até o ataque japonês a Pearl Harbor. Bem sucedida em sua estreia em campo de batalha como nação industrial, o país definiu a si mesmo como uma república de homens brancos. Não interessava mais receber os famintos da Europa, muito menos seus comunistas revolucionários e seus judeus.
Em 1921, a Lei de Cotas Emergenciais (Emergency Quota Act) definiu um número máximo de imigrantes por ano, por nacionalidade, que ficou ainda mais restritivo três anos depois, com a Lei Johnson-Reed, a famosa Lei de Cotas de 1924 (Immigration Act of 1924). Para os asiáticos, raça amarela, considerada inferior, a cota era zero.
Ninguém jamais havia mostrado deslealdade à nação. O tratamento em relação aos internados foi brutal, com membros da mesma família sendo colocados em campos diferentes. Dez pessoas foram condenadas por espionar para o Japão – e todas eram caucasianas
Depois do ataque surpresa à base naval de Pearl Harbor, no Havaí, a imagem do amarelo como insidioso e inimigo se tornou dominante junto à opinião pública. Por isso, a opinião pública não viu um abuso quando na Ordem Executiva 9066 pela qual o presidente Franklin Roosevelt determiou a reclusão de cerca de 120 mil pessoas de ascendência japonesa residentes nos EUA em campos de internamento.
O governo americano alegou razões de segurança nacional, pois temia a espionagem de japoneses. Entretanto, era impossível negar o caráter discriminatório maior, pois além de não haver um único registro de deslealdade à nação vinda de japoneses e seus descendentes, dois terços dos internados eram cidadãos americanos, sendo metade deles crianças. Apenas em janeiro de 1945 os internados puderam voltar às suas casas.
Enquanto em Washington o governo rejeitava direitos para pessoas de origem chinesa, atuava como aliado da China republicana de Chiang Kai-shek. De um lado essa parceria ajudava a fazer contraponto às ambições coloniais europeias, trazendo alguns benefícios para o comércio norte-americano. E havia um Japão cada vez mais belicoso e expansionista desafiando China e Estados Unidos, favorecendo a aproximação tática de ambos. Na Primeira Guerra Mundial, contudo, os Estados Unidos mantiveram-se bem distantes da Ásia. Foi o Japão quem atacou a base naval norte-americana em Pearl Harbor, em 1941, trazendo o país que tinha jurado isolacionismo para a Segunda Guerra Mundial.
Naqueles anos, o governo americano reviu várias das medidas restritivas aplicadas contra os chineses. Em 1943, a Lei Magnuson (An Act to Repeal the Chinese Exclusion Acts) revogou as leis de exclusão voltadas aos chineses, readmitindo a imigração chinesa e a obtenção de cidadania, mas sujeita às mesma cota de 2% aplicada às outras nacionalidades.
Hoje os chineses formam o maior grupo de origem asiática nos Estados Unidos, com pouco mais de 3,3 milhões de pessoas.
Assista (vale, sobretudo, pela rica seleção de fotos e filmetes da época)
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