No cartaz soviético de propaganda de 1920, acima da palavra-de-ordem “Fora com os kulaks!”, está escrito: “Os kulaks são os mais bestiais, brutais e selvagens exploradores – que, na história de outros países, por várias vezes, restauraram o poder dos proprietários de terras, imperadores, padres e capitalistas”.
A ordem de “eliminação dos kulaks como classe” foi emitida pelo ditador Joseph Stálin em dezembro de 1929, como parte do primeiro Plano Quinquenal, lançado no ano anterior. A linguagem ritual dos bolcheviques (comunistas russos) definia os kulaks como a classe dos camponeses ricos. Na prática, era kulak quem uma autoridade estatal denominava kulak, em função das circunstâncias. De modo geral, agricultores que empregavam alguns trabalhadores ou possuíam algumas vacas seriam rotulados assim – e eliminados “como classe”.
A sombra do extermínio pairava sobre os camponeses “ricos” há mais de uma década. Logo após a tomada do poder pelos bolcheviques, em 7 de novembro de 1917, Lenin dirigiu-se aos delegados de um congresso de camponeses pobres organizado por seu partido anunciando o “terror de massa impiedoso contra os kulaks”. Contudo, a guerra civil (1918-1922) e, nos anos seguintes, a necessidade de recuperar a produção agrícola por meio da chamada Nova Política Econômica, adiaram a campanha de coletivização forçada.
Os kulaks resistiram, por meio de manifestações, rebeliões e sabotagem. Mataram seu próprio gado e semearam apenas o suficiente para a subsistência familiar. Stálin recuou, provisoriamente. Em março de 1930, interrompeu a coletivização e criticou os “excessos” dos comissários bolcheviques. A pausa era um engodo destinado a assegurar o plantio de primavera. Logo após a colheita, a campanha recomeçou, ativando um novo ciclo de resistência. Dali em diante, durante cerca de três anos, o campo tingiu-se de sangue.
Stálin não operava por um imperativo ideológico, mas por um cálculo de poder. Os kulaks, milhões de pequenos proprietários, formavam a única classe social economicamente independente. A autonomia econômica propiciava-lhes, ao menos potencialmente, as condições para sustentar uma oposição ao regime totalitário. Eliminá-los, “como classe”, significava completar a estatização da economia soviética, varrendo a diversidade social e suprimindo o espectro da contestação política.
A guerra no campo, uma tragédia para milhões de pessoas, definiu o futuro da elite dirigente da URSS. “O círculo de Stálin seria fatalmente testado pelos rigores da coletivização porque seus membros eram julgados pelo desempenho nessa crise. O veneno desses meses marcou as amizades de Stálin, até mesmo seu casamento, começando o processo que terminaria nas câmaras de tortura de 1937.” (Simon Sebag Montefiore, A corte do czar vermelho, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 71). Aqui, as “câmaras de tortura” são referência aos célebres Processos de Moscou, a extensa farsa judicial pela qual o ditador eliminou quase todos os antigos dirigentes da revolução de 1917.
Preciosas garrafas de leite no mercado de Kharkiv, no leste da Ucrânia, durante o Holodomor
A coletivização forçada começou em 1928 e acelerou-se nos dois primeiros meses de 1930, quando 11 milhões de camponeses foram obrigados a se alistar nas cooperativas agrícolas (kolkhozes). Brigadas de choque eram usadas para impor a vontade do Estado sobre os kulaks. A resistência assumiu as formas de rebelião social, luta armada e, sobretudo, matança de animais, assaltos a silos de grãos e queima de maquinário. Entre 1928 e 1932, o total dos rebanhos soviéticos reduziu-se pela metade.
No final de 1932, o êxodo em massa de camponeses provocou a reintrodução de passaportes internos, uma ferramenta dos tempo czaristas destinada a estabilizar a servidão. Só com o documento era possível sair dos povoados. Nas estações ferroviárias, implantaram-se controles de passaportes. Pessoas flagradas fora de seus povoados sem o documento corriam o risco de serem internadas em campos de trabalho forçado. Os camponeses batizaram, apropriadamente, o novo cenário como uma “segunda servidão”. Sob o totalitarismo soviético, o senhor não era o nobre proprietário de terra, mas o Estado opressor.
A fuga de camponeses foi contida, mas a resistência dos kulaks prosseguiu. Então, dezenas de milhares deles foram transferidos pela força para campos de trabalho na Sibéria.
Na colheita de 1931, obteve-se 7,2 milhões de toneladas de grãos. Na seguinte, em 1932, apenas 4,3 milhões. A grande fome de 1932-33 derivou diretamente da guerra no campo e deixou milhões de vítimas. Mikhail Gorbachev, o último líder soviético, nascido em 1931, viveu a experiência:
Na infância, vivi na pobreza, numa cabana tradicional de chão de terra. Dormíamos sobre uma estufa russa. No inverno, um bezerro e, na primavera, galinhas e patos eram mantidos sob o mesmo teto. Em 1933 (…), Stavropol sofreu uma crise de fome que foi descrita na vizinha Ucrânia como “fome planejada”. De acordo com certo número de historiadores, ela foi desencadeada artificialmente pelo governo. Mas, acima de tudo, a coletivização arruinou a produção agrícola pela destruição da vida camponesa tradicional e pela transferência dos melhores agricultores, os kulaks, para a Sibéria. (Manifesto for the Earth, p. 10).
O historiador britânico Robert Conquest, que cunhou o termo Terror-Fome, estimou em 7 milhões o número total de mortos, dos quais cerca de 5 milhões na Ucrânia e um milhão no norte do Cáucaso. Nesse total, não se incluem as centenas de milhares de mortos produzidos pela coletivização no Cazaquistão.
Êxodo de camponeses durante o Holodomor
A pior fase ocorreu durante o inverno de 1932-33 e a primavera seguinte. Na Ucrânia, a tragédia ficou conhecida como Holodomor, palavra que significa “assassinato pela fome”. O Holodomor, um crime contra a humanidade que tem diversas marcas de um genocídio, não suprimiu o nacionalismo ucraniano, mas intensificou suas tradicionais colorações anti-russas.
O Parlamento ucraniano definiu o Holodomor como genocídio em 2006, criminalizando sua negação, assim como a negação do Holocausto. Em 2008, o Parlamento Europeu classificou o Holodomor como crime contra a humanidade. O Parlamento russo reagiu, no mesmo ano, por meio de uma resolução negando tais classificações e descrevendo a tragédia como uma crise de fome sem motivações políticas.
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