O ano de 2019 se iniciou na Argélia com uma revolução nas ruas. O anúncio do presidente Abdelaziz Bouteflika de que pretendia concorrer a um quinto mandato presidencial provocou a ira de milhões de argelinos, que mal o suportavam desde 1999. Bouteflika, de fato, já não governava desde 2013, quando teve um ataque que o incapacitou. Ele apenas sobrevivia como presidente manipulado por seu irmão Said Bouteflika, pelos generais e pelos comandantes dos serviços secretos, servindo como um pivô de segurança para estabilizar a luta entre as frações que dominam o Estado argelino.
As manifestantes também repudiavam, no início deste ano, qualquer solução que mantivesse o mesmo grupo no poder. Elas reivindicavam eleições livres
As manifestações, iniciadas no meio de fevereiro, sempre às sextas-feiras, bateram todos os recordes no 8 de março, dia internacional das mulheres. O alimento da explosão popular foi a pobreza, a opressão e corrupção do regime, a violência do Estado policialesco e oficialmente islâmico. Em poucas semanas, milhões foram às ruas exigindo a renúncia de Bouteflika e, quando conquistaram o afastamento do presidente odiado, passaram a exigir o fim do regime como um todo. O Estado e o governo são tão corruptos que, popularmente, os diversos generais são conhecidos como “general banana”, “general açúcar”, “general petróleo”, “general gás”, etc. segundo o setor da economia estatal que eles controlam como propriedade privada.
O território que forma a Argélia já foi dominado por fenícios, romanos, otomanos e pela França, que iniciou a sua colonização em 1830. Os argelinos são de origem berbere, mesclados a todos os povos que por ali passaram, principalmente árabes, turcos e andaluzes (muçulmanos ibéricos). A eles somaram-se os imigrantes da França, Itália, Espanha e Malta, após a conquista francesa. Estes últimos, de origem europeia, receberam cidadania francesa e constituíram o grupo que se chamou de pieds-noirs (pés-pretos, numa referência à cor de suas botas), sendo a principal base de apoio da dominação colonial até a independência, em 1962, quando quase todos emigraram para a França.
Argelinas na guerra de independência, em 1957
As mulheres argelinas jogaram, e jogam, um papel importante neste país. Diferente do que conta a história oficial, elas foram combatentes ativas na guerra da independência que durou de 1954 a 1962. Danièle-Djamila Amrane-Minne pertenceu, em 1957, a um comando urbano da Frente de Libertação Nacional (FLN), em Argel e, após a independência, tornou-se historiadora. Analisando o arquivo “Mujahideen”, que reúne os nomes e as características dos combatentes do Exército de Libertação Nacional, ela contou 10.949 ativistas mulheres e 1.755 guerrilheiras. Além delas, um incontável número colaborou no trabalho de correspondência, de ligação, de informação, de transporte de comida, dinheiro e armas, ou como enfermeiras e secretárias. As mulheres também participaram significativamente das manifestações de rua contra o regime colonial.
Alguns relatórios militares indicam as ações das mulheres e a repressão que as atingiu durante a insurreição de 20 de agosto de 1955, quando a violência contra e a favor da luta independentista recrudesceu. À frente dos milhares de manifestantes na cidade de Sidi Mesguich, foram presas duas mulheres portando a bandeira da Argélia. Em Khroub, na mesma data, mulheres, homens e crianças tentaram invadir um quartel e falharam. O resultado foi expressivo e mostra o lugar das mulheres na luta: entre os mortos 23 homens, 19 mulheres e 11 crianças.
Segundo a pesquisadora Emilie Goudali, as guerrilheiras eram especialmente visadas pela repressão e cerca de 11 mil delas foram vítimas das forças colonialistas. Mas elas conquistaram, com abnegação e combate, um lugar na nova Argélia independente.
Após a independência, em 1962, se estabeleceu um regime oficialmente islâmico, de partido único, da FLN, controlado pelos generais do exército. Diversos setores da economia foram estatizados, principalmente petróleo e gás. A Argélia conheceu então um desenvolvimento econômico e social possante, relativamente ao que era como colônia, com reflexos particularmente significativos na educação e na saúde, que já tinham uma base importante estabelecida neste “território francês”.
Louisa Hanoune
Até então, apenas os pieds-noirs tinham acesso aos serviços públicos, mas com a independência todos passaram a ter esse acesso. O lugar ocupado pelas mulheres na guerra de libertação, junto com o fato de que tinham convivido por cem anos com os “serviços públicos franceses” e com os “direitos políticos franceses”, provocou um desenvolvimento social peculiar no país.
Notável, por exemplo, na enorme quantidade de mulheres que participaram das recentes manifestações argelinas. Não por acaso, o preso político mais importante naquele país atualmente é uma mulher, Louisa Hanoune, secretária-geral do Partido dos Trabalhadores da Argélia e primeira mulher a se candidatar à presidência da república, em 2004, detida em maio deste ano acusada de conspirar contra o regime.
Com a semi-industrialização do país, os homens, que eram mantidos como quase marginais no mercado de trabalho colonial e proibidos de terem acesso a postos nos serviços públicos, foram atraídos para as fábricas, onde enfrentam jornadas extenuantes. Enquanto isso, as mulheres foram atraídas para as escolas e os serviços públicos, beneficiadas pela ampliação da rede de educação existente.
O papel de vanguarda das argelinas foi especialmente sensível nos anos 1980, quando estiveram à frente de diversas revoltas populares que lutavam por melhores condições de vida e, especialmente, por direitos políticos iguais, suprimidos legalmente no Código da Família a partir de 1984.
Esse Código da Família estabelece que toda mulher será tutelada pelo pai, irmão, marido, ou o parente masculino mais próximo ou um juiz, se ela não tem família. São os tutores que determinam a liberdade a elas concedida. O Código também as impede de tomar a iniciativa do divórcio, enquanto o marido pode se divorciar imediatamente e sem travas, tendo o direito de ficar com a casa. Com isso, as ruas da Argélia estão cheias de mulheres repudiadas vivendo aí com seus filhos.
A poligamia foi legalizada e é uma ameaça permanente para as mulheres, pois os pais podem obrigar as filhas a se casarem com quem eles decidirem. Se uma mulher quer se divorciar tem que provar em juízo que o marido não cumpre seus “deveres conjugais”. Se ela se separa, não tem mais a guarda dos filhos e, se o ex-marido lhe conceder a guarda, ela precisa de sua permissão para matricular os filhos na escola ou interná-los em um hospital, mesmo que o pai viva na China.
O direito de herança é perdido se há separação. As surras, os maus-tratos aplicados pelo marido são considerados normais. Se ela perde um seio por causa de câncer, o marido tem o direito de repudiá-la, e por isso há muitas delas nas ruas, vagando. E existe o “khol”, que é o direito da mulher comprar a sua liberdade por um preço fixado pelo juiz e pelo marido, como se fosse uma escrava.
Este Código, baseado na Sharia, é uma prisão perpétua da qual a mulher não tem como escapar.
Por isso, em 1988, quando uma explosão popular enfrentou o regime reacionário, as mulheres e a juventude eram a maioria dos manifestantes. Eles reivindicavam o fim da violência estatal e do Código da Família. Se o governo afogou em sangue a explosão social, com mais de 500 mortos e milhares de feridos, teve que recuar concedendo liberdades políticas para a criação de partidos. Foi a partir de 1988 que surgiram centenas de organizações de mulheres, algumas muito poderosas e mobilizadoras. Esta foi também a pauta do dia 8 de março de 2019, quando as mulheres argelinas saíram às ruas exigindo eleições presidenciais sem Bouteflika e a revogação do Código da Família.
Esta história peculiar e o combate das mulheres da Argélia criou uma situação extraordinária, que não se conhece em nenhum outro país, muito menos nos que se declaram oficialmente islâmicos. Hoje, na Argélia, as mulheres representam 70% dos advogados, 60% dos juízes, maioria em todos os campos da medicina e 60% dos estudantes universitários.
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