Anda quase impossível acompanhar os noticiários do Brasil sem nos depararmos com casos de violência contra mulheres e crianças. Feminicídio, estupro, assédio físico e moral, prostituição de menores, agressão – o passeio pelo Código Penal é amplo, e seria ainda maior se nossas leis fossem mais céleres em tipificar como crimes atitudes machistas que foram historicamente naturalizadas pela cultura da desigualdade de gênero.
Há três semanas publicamos um artigo relatando situação similar na África do Sul – e sobre a importância de haver um presidente que reconhece o problema e se compromete em agir para mudar o quadro. Pois no Brasil é terrível termos que reconhecer, porque esses dados se repetem há anos em pesquisas realizadas com diferentes recortes geográficos e diferentes financiadores, que a situação de violência contra mulheres e crianças é muito pior. E, para não ajudar, temos um presidente que se refere à própria filha como “uma fraquejada”.
Hoje já contamos com a Lei Maria da Penha e algum apoio dos agentes públicos para interromper o que costuma ser uma espiral de violência contra a mulher, sobretudo nas delegacias especializadas. Mas, por outro lado, notícia publicada pela Folha de S.Paulo em 30 de setembro informa: “Abuso sexual de adolescentes e de crianças é repetido em 42% dos casos”, sendo que em 87% das reincidências as vítimas são meninas. Como fica demonstrado pelas pesquisas e dados disponíveis nas delegacias e hospitais, os agressores, na ampla maioria das vezes, são parentes ou amigos da família que frequentam as casas das vítimas.
Mesmo assim o governo de Jair Bolsonaro e, em particular, a ministra Damares Alves pretende retirar a educação sexual dos currículos e o governador de São Paulo, João Doria, recolhe apostilas que reconhecem a diversidade sexual humana. Os argumentos são o combate à “ideologia de gênero” e a defesa dos “valores da família”. Quais famílias? Essas onde crianças são violentadas?
É repulsiva a politização de um tema como esse, porque além de envolver a saúde física e mental de seres humanos, vai contra tudo o que é preconizado pelos agentes de saúde e educação em todo o mundo. Essa atitude vinda do Estado ilustra o tamanho dos obstáculos que temos que enfrentar para que o Brasil melhore sua posição nos rankings internacionais que avaliam as condições de gênero pelo mundo e nos quais temos perdido muitas posições nos últimos anos.
Artigo publicado pela revista alemã Der Spiegel no mês passado apresenta os dados mais recentes de um estudo realizado pela organização Equal Measures 2030 (EM 2030), com o objetivo de examinar o progresso dos países na implementação das metas de sustentabilidade previstas pela ONU para o ano de 2030, entre as quais se destaca a questão da desigualdade de gênero. Os números são claros: em se tratando de direitos e bem-estar, meninas e mulheres estão em desvantagem em todo o mundo.
As metas da ONU para 2030 envolvem aspectos diversos, como saúde, educação, meio ambiente e gênero. Os dados pesquisados pelo EM2030 mostram que, em cada um desses itens, destaca-se a questão de gênero, num círculo vicioso difícil de ser rompido. Isso significa que à pobreza, por si só um imenso obstáculo para o desenvolvimento individual e o progresso social, somam-se outros problemas e preconceitos que tornam ainda mais difícil para as mulheres pobres escapar ao ambiente opressivo onde vivem. Só para se ter uma ideia de como a desigualdade é “acumulativa”, a pesquisa mostra que para cada 100 meninos em extrema pobreza há 105 meninas – mas a desproporção aumenta com a idade e, na faixa entre 25 e 34 anos, há 122 mulheres em extrema pobreza para cada 100 homens.
Há países em que não se pode trabalhar sem autorização do marido; há países que não reconhecem o direito da mulher ao divórcio, mesmo que ela não seja mais do que uma escrava doméstica. Há países em que o assédio leva a família a matar a vítima em nome da honra; há países onde técnicas modernas de ultrassom são usadas para abortar as meninas. Há lugares onde as meninas só comerão as sobras depois que os meninos forem alimentados, porque deles se espera o sustento futuro dos pais.
A pesquisa da Equal Measures dividiu os países em quatro grupos em relação às condições que contribuem para a redução das desigualdades de gênero: bom, médio, ruim e péssimo. A má notícia é que 80% das mulheres vivem em países “ruins” e “péssimos”. Globalmente, as áreas mais críticas são a África, o Oriente Médio e a Ásia Meridional.
Fonte: https://www.spiegel.de/international/globalsocieties/report-highlights-gender-inequality-worldwide-a-1288855.html
O papel das mulheres na constituição das famílias e educação das novas gerações é essencial e, por isso, também um instrumento de desenvolvimento social. Logo, quanto mais se investe no progresso das mulheres, mais rapidamente toda a sociedade se beneficia. Mas a redução das desigualdades sociais e de gênero dependem de mudanças estruturais que precisam ser abraçadas e implementadas pelos governos.
Em primeiro lugar, é fundamental que o Estado assuma seu papel de protetor das mulheres e crianças em situação de risco, mesmo que interferindo na ordem familiar, pois muitas vezes essa “ordem” entende que mulheres e crianças são propriedades dos homens. Quando o Estado se omite, não deixa de ser cúmplice da violência.
Efetivamente, o que o relatório da EM 2030 propõe para combater as desigualdades são três ações complementares:
1 – O combate à pobreza extrema
Aqui tudo ajuda: saneamento básico, vacinação, alimentação adequada, acesso à escola. Mas para as mulheres são especialmente importantes:
2 – Aumentar as oportunidades de trabalho remunerado
A dependência financeira é a mais antiga forma de opressão. Sabemos da importância da industrialização e da urbanização para a emancipação financeira e educacional das mulheres. Mas a realidade é que o trabalho feminino continua subvalorizado em relação ao trabalho masculino. No Brasil, por exemplo, a média das mulheres tem maior escolarização que os homens, mas seus salários são, em média, menores. Ainda é comum ouvir que mulheres não são adequadas para posições de chefia porque não são respeitadas – mesmo com currículos melhores!
3 – Ampliar a participação política das mulheres
Apesar da nova onda do feminismo apresentar uma série de ações coletivas, sobretudo na forma de manifestações públicas, os espaços de poder e decisão ainda são essencialmente masculinos, o que torna mais lento os avanços legais nesse campo.
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