“Há uma sombra escura e pesada sobre nossa terra. Mulheres e crianças estão sitiadas.” Presidentes costumam falar coisas assim quando inimigos externos ameaçam a pátria. Mas Cyril Ramaphosa, presidente da África do Sul, referia-se à violência social e doméstica quando, em 18 de setembro, numa sessão de emergência do Parlamento, alertou para a epidemia de assassinatos e estupros que assola seu país.
Cyril Ramaphosa com Nelson Mandela, em dezembro de 2013
“Está em curso uma guerra muito violenta, brutal, contra as mulheres na África do Sul”, que é “um dos lugares mais inseguros do mundo para mulheres e crianças”, disse Ramaphosa, citando números. Em 2018, cerca de 2,7 mil mulheres e mil crianças foram assassinadas. Diariamente, reportam-se algo em torno de cem casos de estupro.
Ramaphosa anunciou investimentos de US$ 75 milhões para fortalecer o sistema de justiça criminal, criar um registro nacional de condenados por crimes contra mulheres e crianças, conduzir campanhas de educação pública e providenciar serviços de saúde às vítimas. Além disso, pediu aos parlamentares o aumento das penas por crimes sexuais.
Na Índia, as autoridades só começaram a prestar atenção para a violência contra mulheres e crianças depois de incontáveis manifestações públicas. A sociedade sul-africana também começa a levantar sua voz. Manifestantes reuniram-se diante do edifício do Parlamento, na Cidade do Cabo, em três dias sucessivos, pedindo ações práticas. A atriz Charlize Theron, nascida na África do Sul, que participou de uma campanha antiestupros em seu país natal, em 1999, declarou-se decepcionada com a imutabilidade do cenário: “nossos líderes não podem continuar a fingir cegueira”. E fez um chamado aos homens sul-africanos: “Ergam-se! Falem! Não sejam meros espectadores. Vocês têm o poder de mudar as coisas.”
Na África do Sul, registra-se crescimento dos assassinatos em todos os anos da última década. Ataques sexuais, inclusive estupro, cresceram 4,6% em 2019, na comparação com o mesmo período do ano passado. Ramaphosa distingue-se de seu antecessor, Jacob Zuma, por não fazer vistas grossas diante da tragédia – e por falar verdades inconvenientes à luz do dia.
Segundo estatísticas de Organização Mundial de Saúde (OMS), a África do Sul situava-se, em 2016, entre os quatro países com maiores taxas de feminicídio. A crise vem de longe e sirenes de alerta nunca deixaram de soar. “A taxa de feminicídio sul-africana é cinco vezes maior que a média global”, declarou Nathi Mthethwa, ministro das Artes e Cultura, em junho de 2017. Uma pesquisa rigorosa publicada em 2013 indicou que, no mínimo, metade das mulheres assassinadas morrem pelas mãos de seus parceiros íntimos.
Fonte: Organização Mundial de Saúde
A violência descontrolada tem, essencialmente, raízes políticas. Sob Thabo Mbeki, que presidiu o país entre 1999 e 2008, e também sob Jacob Zuma, entre 2009 e 2018, os líderes fizeram-se de cegos. O processo do então aspirante à presidência Zuma, em 2006, só contaminou ainda mais o ambiente.
Acusado de estuprar a filha de um antigo companheiro da luta contra o apartheid, Zuma mobilizou a ala esquerda do Congresso Nacional Africano (CNA), o partido dirigente, para politizar o julgamento. Nas sessões do tribunal, e também diante do edifício, junto com a multidão de militantes, o réu entoava uma canção que servira como hino da organização militar do CNA nos tempos do regime de minoria branca. No fim, os juízes aceitaram o argumento da defesa, de que a relação teria sido consensual, e o poderoso candidato presidencial foi declarado inocente.
Fezekile Ntsukela Kuzwayo, a acusadora de Zuma, que usou o pseudônimo Khwezi para se proteger de represálias dos militantes, era ativista conta a Aids e, sabidamente, portadora do HIV. Zuma admitiu que, na relação sexual, não utilizara preservativo, um indício de ter agido contra a vontade de Khwezi. A sua justificativa – de que banhara-se depois para “eliminar o risco de contrair o HIV” – fixou-se como o momento mais constrangedor do drama judicial.
A generalização dos crimes sexuais na África do Sul tem conexões diretas com o negacionismo oficial diante da Aids que marcou a década de governo de Mbeki. Naquele período, enquanto a doença se espalhava pelo país, convertendo-se em pandemia, as autoridades desafiavam o consenso científico, recusando-se a reconhecer a origem viral da Aids e difundindo as mais disparatadas teses conspiratórias.
Imagem anônima, captada de um drone, da manifestação sobre violência contra as mulheres, na Cidade do Cabo, em 5 de setembro de 2019
A indiferença oficial diante da Aids começara no governo de Nelson Mandela, entre 1994 e 1999, que depois expressaria seu arrependimento por não ter feito mais sobre a pandemia. Mas, com Mbeki, o governo cortou o financiamento da oferta de drogas anti-HIV e negou-se a conduzir campanhas de distribuição de preservativos e de esclarecimento público sobre sexo seguro. Estima-se que o negacionismo estatal tenha sido responsável por algo em torno de 300 mil mortes evitáveis. Um efeito trágico da falta de políticas públicas contra a doença foi a difusão do mito popular de que a relação sexual com uma mulher virgem curaria um homem da Aids.
O negacionismo sobre a Aids perdurou até 2008. Dez anos depois, cerca de 4,5 milhões de sul-africanos recebiam terapias antirretrovirais. Ramaphosa estabeleceu, no início de seu governo, a meta de incluir mais 2 milhões de pessoas nos programas de tratamento do HIV. Agora, o novo presidente ergueu sua voz para dizer a verdade sobre a “guerra contra as mulheres” que se desenrola na África do Sul.
“Nenhum homem nasce estuprador, agressor de mulheres ou assassino”, disse Ramaphosa perante os parlamentares, para apontar as fontes sociais e políticas da “guerra” em curso. Palavras são importantes, às vezes preciosas – e merece crédito um presidente que não esconde fracassos terríveis de seu próprio país. Mas, como estava escrito nos cartazes de tantos manifestantes que protestaram à frente do Parlamento, elas devem produzir ações duras, efetivas e urgentes.
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