ROHINGYAS, O POVO INDESEJADO

 

Elaine Senise Barbosa

29 de julho de 2019

 

Imagine ser parte de um povo indesejado. Você fugiu para outro país porque incendiaram sua casa, mataram pessoas, estupraram. Agora, vive em um campo de refugiados superlotado, sujeito às inundações provocadas pelas chuvas de monção típicas do Sudeste Asiático. O país que te abriga (Bangladesh) oferece transferir parte das pessoas ali confinadas a uma ilha sujeita a ciclones. Ao mesmo tempo, o governo do teu país de origem (Mianmar), que nada fez contra seu infortúnio, diz estar preparado para recebê-los de volta. Detalhe, em ambos os países – em diferentes graus, é verdade – não lhe reconhecem os direitos civis. O que você faria?

Esse é o capítulo mais recente da história do povo Rohingya, uma minoria muçulmana original de Mianmar, a antiga Birmânia, país de maioria budista. Desde 2017 os Rohingya vêm sofrendo perseguições com já reconhecidas características de genocídio. Obrigados a fugir de suas casas e suas terras pela violência praticada por militares e radicais nacionalistas, os Rohingya já sofriam com o estatuto de apátridas, uma vez que o governo de Mianmar cassou seus direitos, declarando-os estrangeiros. Do ponto de vista do direito civil isso significa que aquelas pessoas não existem. Consequentemente, não dispõem de nenhum documento, não podem se matricular nas escolas ou obter atendimento nos hospitais, por exemplo.

 

Intento de destruição

As ações do governo birmanês contra os Rohingya demonstram claro intento de limpeza étnica, já demonstrado em textos acadêmicos, à luz do conceito de genocídio e das convenções que regem esse crime. E ele prossegue. Enquanto o governo de Mianmar finge aceitar as pressões externas e negociar com Bangladesh, que tem suportado a pressão de mais de um milhão de refugiados, fotos recentes de satélites comprovam novas destruições nas terras Rohingyas. Observadores externos puseram em dúvida as recentes promessas feitas pelo governo birmanês quanto a um retorno seguro para os Rohingya.

O “intento de destruição” que caracteriza o crime de genocídio manifesta-se também por meio dessa prática de impedir o retorno, de fato, dos refugiados. Há evidencias de destruição de 58 assentamentos Rohingya, entre 2018 e 2019. A cúpula militar de Mianmar transferiu o poder aos civis em 2015, mas continuam a exercer influência determinante nos rumos políticos do país. Aparentemente, os militares estão engajados em impedir que os Rohingya tenham para o que voltar – a não ser para os destroços e para o medo permanente de novos ataques. A minoria muçulmana de Mianmar, um povo indesejado, experimenta a destruição de seu modo de vida e de sua memória histórica, que está sendo varrida sob o olhar complacente da ONU.

O Australian Strategic Policy Institute (ASPI), um instituto australiano de análises internacionais, afirmou temer pela volta dos Rohingya para Mianmar, pois não encontrou evidências de cuidados para garantir a segurança mínima dos retornados. A ASPI listou 320 assentamentos Rohingya destruídos, especialmente na região de Rakhine, e nenhum sinal de recuperação das áreas danificadas, contestando as declarações do governo de que os refugiados podem voltar em segurança.

“Em vez disso, descobrimos a contínua destruição das áreas ocupadas pelos Rohingya e a expansão de acampamentos e bases militares altamente securitizados, que foram construídos ou ampliados nesses mesmos locais”, explica Nathan Ruser, da ASPI. A “recuperação” de Rakhine está baseada na construção ou ampliação de pelo menos 45 acampamentos fortemente cercados e murados: “prisões ao ar livre”, na expressão utilizada por grupos de defesa de direitos humanos. 

A foto da esquerda mostra a área antes ocupada pela aldeia de Hla Pho Khaung. A segunda foto, de 2019, mostra a construção do campo de trânsito de Hla Pho Khaung, que servirá provavelmente para abrigar os retornados

A foto da esquerda mostra a área antes ocupada pela aldeia de Hla Pho Khaung. A segunda foto, de 2019, mostra a construção do campo de trânsito de Hla Pho Khaung, que servirá provavelmente para abrigar os retornados

 

Ser um não-ser

O povo Rohingya é indesejado também pelo país receptor, majoritariamente muçulmano. O governo de Bangladesh argumenta que o país, bastante pobre, não dispõe de recursos para arcar com mais um milhão de refugiados miseráveis. Daí, o plano de deslocar parte dos refugiados para uma ilha.

Na fronteira com Mianmar situa-se o que é, atualmente, o maior campo de refugiados do mundo, o Cox’s Bazar, com quase um milhão de pessoas. Na crise de 2017 chegaram, subitamente, cerca de 700 mil pessoas. Desde então, o Cox’s Bazar converteu-se em foco de uma crise humanitária permanente, que se agrava na época das monções. Na estação das chuvas, entre maio e setembro, tudo se alaga: as lonas dos barracos se rompem, as imundícies se espalham, os barrancos deslizam.

O desafio enfrentado pelos Rohingya em Bangladesh é, mais uma vez, seu estatuto legal, que os coloca em situação jurídica precária sob a lei doméstica. Todos os recém-chegados estão oficialmente registrados como “Migrantes de Mianmar Desabrigados à Força”, designação que nega seu estatuto de refugiados e os direitos associados a ele. Isso os torna mais vulneráveis ​​à negação da liberdade de movimento, acesso a serviços públicos, educação e meios de subsistência, bem como à prisão e exploração. Viver no limbo jurídico pode ser uma experiência surreal para quem olha na condição de sujeito portador de direitos, mas ela é certamente mais surreal e desesperadora para quem a enfrenta: ser um não-ser.

 

Uma ilha-prisão

A ajuda internacional mitiga a crise, mas não resolve. O governo de Bangladesh elaborou um plano de emergência propondo transferir milhares de Rohingyas para uma pequena ilha chamada Bashan Char, formada por depósito de sedimentos, no estuário do rio Meghna, 30 quilômetros distante do continente. Bashan Char, que significa “ilha flutuante”, emergiu do rio há apenas duas décadas. Por isso, observadores internacionais temem pela segurança dos possíveis transferidos.

As ONGs enfatizam a dificuldade para evacuar centenas de milhares de pessoas da ilha em caso de desastre natural, como os ciclones e tempestades comuns na região. A resposta do ministro das Relações Exteriores de Bangladesh, Shahriar Alam: “Um ciclone da categoria 10 não apenas causará impacto neles [os refugiados na ilha]; afetará 20% da nossa própria população”.

O ministro explicou, em entrevista a jornais estrangeiros, que a ilha foi reforçada por aterros e que os abrigos estão melhor preparados para os ciclones do que as casas de muitos bengaleses. O governo levou alguns diplomatas para visitarem Bashan Char, incluindo Yanghee Lee, relator especial das Nações Unidas para Mianmar, que saiu manifestando dúvidas sobre a viabilidade de ocupação da ilha. Habitantes da vizinha ilha de Hatiya dizem que parte da ilha é erodida pela monção a cada ano. “Naquela época, nunca ousamos ir àquela ilha. Como, então, milhares de Rohingya vão morar lá?”, indagaram a entrevistadores da Human Rights Watch.

Agentes que trabalham com ajuda humanitária em Cox’s Bazar estão preocupados com a saúde e a segurança dos refugiados, mas temem ainda mais o seu isolamento em Bhasan Char, onde os serviços básicos não estão previstos. Além disso, pedem garantias de livre-circulação para os residentes na ilha, cujas instalações lembram muito mais uma prisão.

A ilha de Bashan Char e a área onde foram construídos os abrigos

A ilha de Bashan Char e a área onde foram construídos os abrigos

 

À deriva

As autoridades de Bangladesh garantem que não vão forçar transferências para a ilha, embora um relatório preparado pelo gabinete do Primeiro Ministro indique que apenas 13% dos internos em Cox’s Bazar têm interesse em partir. Para quem já perdeu tudo, é difícil se afastar dos rostos conhecidos, talvez seus derradeiros vínculos com o passado.

Falando ao jornal britânico The Guardian, o ministro das Relações Exteriores afirmou, em julho, que a intenção de seu governo é começar as transferências em dois ou três meses. Do lado das agências humanitárias, a corrida é para convencer o governo a sustar o projeto.

Para os Rohingya, restam apenas paciência e resignação. Já o governo de Mianmar, fonte da crise humanitária, continua a alimentar o monstro do radicalismo islâmico, justamente o pretexto que utiliza para conduzir a limpeza étnica.

 

SAIBA MAIS

“Bangladesh is not my country” – the plight of Rohingya refugees from Myanmar. Report by Human Rights Watch

 

 

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