O espectro de Vladimir Putin compareceu ao comício da direita nacionalista europeia na Piazza del Duomo, diante da catedral gótica de Milão, no sábado, 18 de maio. Lá estavam, em pessoa, o co-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini, da Liga, a francesa Marine Le Pen, líder da Reunião Nacional (ex-Frente Nacional), Jorg Meuthen, da Alternativa para a Alemanha, Geert Wilders, do holandês Partido da Liberdade e Anders Vistisen, do Partido do Povo da Dinamarca, além de representantes de partidos menores da Europa centro-oriental. O presidente russo circulava entre eles, em espírito, como fonte inspiradora da campanha às eleições para o Parlamento Europeu que se realizam ao longo dessa semana.
Matteo Salvini no comício dos partidos da direita nacionalista europeia, em Milão, em 18 de maio de 2019
A festa da unidade foi, porém, manchada pela ausência involuntária do Partido da Liberdade da Áustria (FPO). Seu líder, Heinz-Christian Strache, ficara em Viena, para tentar explicar o vídeo constrangedor que o forçava a renunciar à posição de vice-primeiro-ministro. Putin, o espectro onipresente, também estava em Viena – e no foco de um escândalo que iluminou sua conexão com o partido da direita nacionalista austríaca.
O vídeo escandaloso, divulgado pela imprensa no dia anterior, mostra um encontro, ocorrido em julho de 2017, entre Strache e Johann Gudenus, seu companheiro de partido, com uma mulher que se apresentava como uma rica investidora russa. O palco da conversa é uma vila privada na ilha espanhola de Ibiza. Na sala, há bebida e conspiração. A russa oferece-se para adquirir o controle acionário do jornal Kronen Zeitung, o maior da Áustria, e convertê-lo em veículo de propaganda do FPO. Strache celebra a ideia, esclarecendo que almeja “construir uma paisagem de mídia semelhante à de Orban”, e oferece a contrapartida de presenteá-la com contratos públicos.
Tudo é claro e direto. Strache especula que, com o jornal, a votação do FPO poderia saltar dos 26% dos votos de outubro de 2017 para a marca de 34% dos votos. “Se você tomar o Kronen Zeitung três semanas antes da eleição e nos colocar no primeiro lugar, poderemos conversar sobre qualquer coisa”. Na sequência, ele sugere à “investidora” estabelecer “uma empresa como a Strabarg”, a maior construtora austríaca. “Todas as obras que a Strabarg consegue hoje iriam para você”, promete o líder da direita nacionalista.
Heinz-Christian Strache, em manifestação contra a expansão de um centro cultural islâmico em Viena, em maio de 2009
A renúncia veio acompanhada de parcas explicações. Strache alegou que não violara nenhuma lei, atribuiu suas palavras aos efeitos do álcool e interpretou o evento como um desvio “estúpido” e “irresponsável”, mais típico de um “adolescente”. Já o primeiro-ministro Sebastian Kurz, do Partido do Povo, de centro-direita, declarou-se insultado pelo vídeo. “Basta!”, exclamou Kurz, colocando um ponto final na coalizão governista e convocando eleições gerais antecipadas.
A catástrofe austríaca projeta uma longa sombra. Na “paisagem de mídia” húngara, com a qual sonha Strache, praticamente inexistem relevos críticos: por intermédio de oligarcas associados ao governo, o primeiro-ministro Viktor Orban controla quase todos os grandes veículos, que prestam continência às suas políticas populistas e xenófobas. Já a misteriosa “investidora” russa recoloca na cena, de um modo mais agudo que outros episódios, a conexão entre o Kremlin e o cortejo de partidos nacionalistas europeus.
A conexão financeira começou a ser documentada em 2014, quando a Frente Nacional francesa (hoje, Reunião Nacional) recebeu um empréstimo, a juros excepcionalmente baixos, do First Czech-Russian Bank, um banco que opera sob o guarda-chuva político do Kremlin. A Liga, do italiano Salvini, é alvo de acusações ainda não comprovadas de que sua campanha às eleições europeias recebeu financiamento oculto do governo russo. Nessa moldura, o vídeo austríaco surge como mais um indício de que o célebre “ouro de Moscou” irriga, atualmente, o movimento nacionalista que pretende revolucionar por dentro a União Europeia.
Se a conexão financeira remete ao mundo subterrâneo, a cooperação política e diplomática exibe-se à luz do dia.
“É preciso reconhecer que Putin fez seu país grande novamente e que a Rússia tornou-se, uma vez mais, um ator no palco mundial”. Os elogios de Orban ao presidente russo repetem-se incessantemente. O húngaro elencou a Rússia entre os exemplos positivos de “democracia iliberal” e, passando da palavra ao gesto, recepcionou Putin em Budapeste no início de 2015, pouco depois da anexação russa da Crimeia, provocando consternação nas principais capitais europeias.
O italiano Salvini é, a exemplo de Orban, um ardente defensor de Putin, clamando incessantemente contra as sanções aplicadas pela União Europeia em retaliação à anexação da Crimeia. E, como os dois, a Alternativa para a Alemanha (AfD) não faz nenhum esforço para esconder sua admiração pelo líder russo: ano após ano, um dirigente do partido comparece a um “conferência econômica” promovida pelo Kremlin na Crimeia anexada.
Marine Le Pen com Putin, no Kremlin, em março de 2017. Na ocasião, o russo enfatizou que não pretendia interferir nas eleições gerais francesas
Ninguém mencionou o nome de Putin na Piazza del Duomo. Isso não era necessário nem prudente. Um após o outro, os líderes do nacionalismo populista tomaram o microfone para criticar o “globalismo” e o “liberalismo”, prometendo restaurar as “soberanias nacionais”, “retomar controle sobre as fronteiras” e fechar as portas da Europa aos refugiados. Sobretudo, eles anunciaram um compromisso sagrado de “proteção da civilização europeia”, supostamente ameaçada pela imigração e pelo Islã. O líder russo estava lá, como modelo ideológico a ser copiado. O vídeo austríaco também, mas como fantasma a ser conjurado.
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