“Você tem boa figura, dicção, talento, tem tudo para dar certo. Mas tem que mudar de nome, porque cu-oco não dá…”. Deu e muito, pois, como sabemos, Francisco Cuoco não seguiu os conselhos daquele diretor de cena alemão, que vinha a ser meu pai. Ouvir o “cu oco” no sobrenome italiano Cuoco é daquelas coisas que só ouvidos de estrangeiro percebem, sentidos e sonoridades despercebidas por nativos. E olha que Pedro Petersen, pseudônimo, já estava no Brasil havia mais de vinte anos.
Tinha chegado Peter Bial em abril de 1940, embarcado, assim como Miranda Magnoli, no ano anterior, no porto da Antuérpia, rumo a Santos, já em plena guerra. Com 22 anos, o jovem solteiro não tinha prioridade na lista de passageiros, mas conseguira uma vaga na undécima hora, graças a… vamos dizer, por enquanto, uma família que desistiu da travessia ao saber que a América referida era a do sul, terra de macacos, cobras e jacarés nas avenidas.
O Persier, navio de bandeira belga que salvou a vida de meu pai, portanto a minha também, ainda voltaria à Europa para tomar parte, naquele mesmo ano, da retirada de Dunquerque.
O navio Persier, construído em Newcastle (Reino Unido), em 1918, foi afundado por um submarino alemão em 1945, em Eddystone, no sul da Inglaterra. Fonte: SHIPS Project
Minha mãe chegara a São Paulo em 1935, e trabalhava na livraria da família, no Largo do Paissandu, esquina com rua Capitão Salomão, perto do Ponto Chic. A livraria Transatlântica tornara-se um ponto de encontro para refugiados: para lá rumavam todos os recém-chegados. Assim Peter conheceu Susi e, sobre os escombros de suas cidadanias, famílias e psiquismos, casaram-se para botar mais três brasileiros no mundo.
Antes dos filhos, veio a cachorra. Seus ouvidos gringos não hesitaram na hora de dar nome à vira-latas de pelo negro brilhante. Adoravam a palavra cheia de ritmo e expressão, quase onomatopeia: chilique.
Com a chegada da primeira filha, em 1947, Chilique virou uma babá muito confiável. A ponto de, para alertar a menina do perigo, entrar na frente de um carro e ser atropelada. Peter e Susi correram a um veterinário que os recebeu cordialmente, até os dois trocarem palavras em alemão. O médico era francês e recusou-se a cuidar de Chilique, dizendo que não atendia a alemães nazistas. “Mas somos refugiados!”, ainda tentou argumentar o casal, sem efeito.
Chilique sobreviveu, com a sorte dos refugiados que ficam para contar a história. A ignorância do veterinário francês permanece viva no século XXI.
Esta é uma das razões de ser do imprescindível site 1948: trazer luz à incompreensão corrente dos significados histórico, social e político das migrações forçadas e de suas consequências. Para celebrar o seu primeiro ano de atividade, eu gostaria de listar todo o imenso legado dos refugiados de todos os tempos, em todo o mundo. Sendo pretensão demais, pensei em me ater ao caso brasileiro. Ainda assim, seria um trabalho gigantesco, mais do que permitem minhas circunstâncias. Por isso, divido com vocês essas memórias pessoais, tão irrelevantes quanto exemplares.
Peter Bial, a bordo do Persier
Queria, por exemplo, acrescentar que Peter Bial conseguiu aquela vaga de última hora no navio graças a Mariana, secretária e amante do padre que presidia a associação católica responsável pelo campo de refugiados nos Países Baixos, onde se abrigara meu pai. Mariana fora o grande amor proibido de Peter, a quem escondera em seu quarto, enquanto a Gestapo batia à porta.
E queria recordar que o pesadelo da Gestapo retornaria em 1971, sétimo aniversário do regime militar brasileiro, quando, por publicar num programa de teatro um artigo alegórico sobre a crise dos sete anos no casamento, Pedro Petersen passou a ser submetido a recorrentes interrogatórios no DOPS, Departamento de Ordem Política e Social. A volta dos fantasmas nazistas valeu a meu pai um AVC e a morte.
Queria lembrar também de minha mãe, aos 11 anos de idade, cruzando o Atlântico sozinha e tomando conta de seu irmão mais novo – seus pais haviam deixado a Alemanha dois anos antes, em 1933, assim que o cabo austríaco chegou ao poder. As crianças eram impedidas de fazer as refeições no restaurante comum, isoladas na cozinha do navio, pois, refugiadas, só podiam ser judias. Por acaso, não eram.
Um dia, quem sabe, ainda conto essas histórias de demolição da vida de meus pais, para que seu filho pudesse as reconstruir em sua vida. Por ora, lembro apenas de um velho croata que conheci em Sydney (Austrália), logo depois da Olimpíada de 2000. No dia seguinte ao fim dos Jogos, fui conhecer o sebo em frente ao prédio onde me hospedara. Ao ouvir a nossa língua, o dono da livraria perguntou de onde éramos. No que respondemos, ele rebateu de imediato: “Brasil? Eu odeio o Brasil!”.
O velho tinha sido um jovem sonhador na Iugoslávia do pós-guerra, onde ao conhecer recém retornados do Brasil, apaixonou-se pelo país. As histórias sobre a luz, sons e sabores, e as lindas mulheres dos trópicos encheram o rapaz de fantasia e coragem. Fugiu rumo a Viena, depois de dias e noites de caminhada nas florestas por nesgas da fronteira. Era formado em oftalmologia e assim se apresentou na embaixada brasileira, requerendo asilo. Depois de uma semana, recebeu a resposta: “Indeferido, o Brasil não precisa de oftalmologistas”.
Eram assim os tempos. O Brasil achava que podia prescindir de certas profissões, em favor de outras. Assim, como se o país não fosse ele mesmo erguido sobre a base arenosa do desterro. Como se Adão e Eva não fossem refugiados. Ou, se preferirem, em versão evolucionista, como se os Sapiens não fossem, desde sempre, essa espécie exilada em busca de refúgio.
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