Na Venezuela chavista, a repressão política nasce de uma noção ideológica: o Destino Nacional.
Hugo Chávez governou a Venezuela entre fevereiro de 1999 e 5 de março de 2013, dia de sua morte. O autoritarismo chavista manifestou-se, embrionariamente, desde o início de sua proclamada Revolução Bolivariana, em especial nas iniciativas destinadas a subordinar o Judiciário e o órgão eleitoral ao Executivo e nas pressões econômicas e políticas crescentes contra os veículos de imprensa oposicionistas. Contudo, a repressão política aberta só começou no governo do sucessor Nicolás Maduro, entronizado em Havana, durante a etapa derradeira da doença de Chávez, num pacto entre o caudilho e o regime castrista cubano.
Nicolás Maduro e Miguel Díaz-Canel, o atual presidente cubano
Nos seus 13 anos de poder, Chávez beneficiou-se de elevada popularidade, graças à combinação do ciclo de altos preços do petróleo com suas políticas de renda endereçadas à população pobre. O regime estabilizou-se a partir do recurso à mobilização eleitoral permanente, em sucessivos pleitos presidenciais e legislativos e plebiscitos constitucionais. Mas as sementes ideológicas da repressão foram plantadas nesse período áureo. Nele também se fabricaram as engrenagens materiais do aparato repressivo.
O chavismo é uma versão terceiro-mundista e caudilhesca de nacionalismo. A nação ideal de Chávez não era, porém, a Venezuela, mas a “Pátria Grande” sonhada por Simón Bolívar – isto é, Hispano-América. No esquema imaginado pelo caudilho, a Venezuela cumpriria o papel de reunificar a Grã-Colômbia fundada por Bolívar, que funcionaria como arcabouço da união hispano-americana. A Venezuela de Chávez não era, portanto, um país como os outros, mas um país com uma missão. Ela deveria perseguir algo como um Destino Nacional: plantar a árvore da unidade da antiga América Espanhola.
Destino Nacional é noção típica de regimes autoritários. A noção aparece na Espanha franquista, no Portugal salazarista e, hoje, na Turquia de Recep Erdogan. O destino supostamente reservado a uma nação implica, logicamente, uma divisão básica entre os cidadãos. Aqueles que reconhecem o valor e a premência da missão histórica nacional serão considerados patriotas. No lado oposto, os que não compartilham a fé ou o engajamento na missão histórica serão rotulados como impatriotas e, no limite, traidores da pátria. Chávez tratava ritualmente os oposicionistas como “esquálidos”. O chavismo os denunciava como quinta-colunas, isto é, agentes do “imperialismo ianque”. Dessas ideias nasce o discurso de legitimação da repressão. Não se trataria, afinal, de reprimir concidadãos que nutrem divergências razoáveis, mas de extirpar o “inimigo interno” que opera em associação com o inimigo externo.
O Destino Nacional fez seu caminho até a Constituição de 1999, que renomeou o país como República Bolivariana da Venezuela. Na sequência, redefiniu ideologicamente os aparatos armados do Estado. As forças armadas tornaram-se Forças Armadas Nacionais Bolivarianas (Fanb) e os soldados passaram a jurar fidelidade à Revolução Bolivariana. Surgiu a Guarda Nacional Bolivariana (GNB), uma força policial fiel à missão histórica. Nasceu o temido Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin), uma polícia política. Criaram-se as milícias bolivarianas, forças civis armadas de caráter oficial.
O Estado assim redefinido deixou de ser o Estado de todos para se converter num Estado de natureza ideológica. O princípio da igualdade perante a lei não desapareceu dos documentos legais nem do discurso oficial, mas esvaziou-se de seu conteúdo. Os juízes e procuradores, selecionados pelo Executivo, despiram-se da imparcialidade política. A lei passou a discriminar os cidadãos segundo critérios ideológicos.
Chávez governou sob a legalidade produzida pela Revolução Bolivariana, violando-a apenas esporadicamente e disfarçando cuidadosamente os desvios. Depois da morte do caudilho, porém, Maduro viu-se na contingência de escolher entre a legalidade bolivariana e a preservação do regime. O sucessor escolheu o segundo caminho, desmoralizando a Constituição de 1999 e as leis dela derivadas. Desse ponto em diante, o regime transformou-se numa ditadura cada vez mais repressiva.
O ponto de inflexão foi a catastrófica derrota do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), o partido chavista, nas eleições parlamentares de dezembro de 2015. Sob uma profunda depressão econômica, hiperinflação e aguda carência de bens de primeira necessidade, os pobres abandonaram o regime. As oposições unificadas obtiveram mais de 56% do voto popular e 109 cadeiras na Assembleia Nacional, contra 41% dos votos e 55 cadeiras para o PSUV. Daquele momento em diante, Maduro depositou suas esperanças de sobrevivência no apoio dos aparatos armados, em particular das Fanb.
Desde que foi nomeado sucessor, Maduro declarou liderar um “regime cívico-militar”. A ruptura com o discurso chavista não podia ser mais nítida. Chávez, um ex-militar, transformou as forças armadas em pilar estrutural do regime bolivariano, mas declarava-se líder de um governo civil apoiado na legitimidade do voto popular. Maduro, que já não tinha essa legitimidade, foi obrigado a procurar amparo, exclusivamente, na ideologia do Destino Nacional. Com base nela, prendeu opositores, inabilitou-os a disputar eleições, utilizou as milícias para aterrorizar manifestantes e calar a surda revolta das periferias, recorreu a uma corte suprema domesticada para anular os poderes legais da Assembleia Nacional. Finalmente, numa “eleição bolivariana”, produziu um simulacro de Assembleia Constituinte que não se destinava a elaborar uma nova Constituição mas apenas a carimbar os atos inconstitucionais do Executivo.
Maduro passará à história como o ditador fracassado que enterrou a Revolução Bolivariana. Há justiça nessa avaliação. Contudo, a repressão de seu governo contra opositores e as sistemáticas violações de direitos humanos cometidas por sua polícia política têm raízes no solo profundo do chavismo. A derrota de Maduro será a segunda, e definitiva, morte de Chávez.
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