Ricardo Vélez Rodríguez, ministro da Educação de Jair Bolsonaro, enxerga a escola como palco de uma “guerra cultural”. Não só ele. A ideia de promover revisões bibliográficas e de conteúdos pedagógicos emerge em declarações variadas no círculo do bolsonarismo. Numa entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o general Aléssio Ribeiro Souto, coordenador do plano de Educação na campanha eleitoral de Bolsonaro, reclamou dos professores a exposição da “verdade” sobre o “regime de 1964”. O que ele quer, de fato, é uma operação de revisionismo histórico destinada a absolver, moral e politicamente, a ditadura militar brasileira.
A tese revisionista exposta por Aléssio Souto e muitos outros não é nova. No seu núcleo, encontra-se a noção de uma “guerra” entre “dois lados”, que seriam formados por militares patriotas e terroristas comunistas. As vítimas, dos “dois lados”, deveriam ser classificadas como baixas de guerra – ou seja, como mortos num confronto entre exércitos inimigos. Não é difícil expor as manipulações grosseiras que sustentam a tese da “guerra”.
A primeira situa-se na origem do regime militar. O presidente João Goulart, derrubado em 1964, chefiava um governo legitimamente eleito. Mais: o governo Goulart nada tinha de comunista. Representava a tradição varguista brasileira, um populismo modernizante de raízes conservadoras que se tingira superficialmente com as cores do terceiro-mundismo tão em voga na época. As suas “reformas de base” não tocavam no princípio da propriedade privada dos meios de produção, nem nos fundamentos da economia de mercado.
João Goulart discursa no Automóvel Cube do Rio de Janeiro, em 30 de março de 1964
Os sindicatos que apoiavam Goulart eram dirigidos pela elite sindicalista pelega, de extração trabalhista. O principal movimento social aliado do governo, as Ligas Camponesas, tinha como líder Francisco Julião, um deputado do Partido Socialista Brasileiro ligado às ideias católicas progressistas. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), que desde 1947 era proibido de disputar eleições, constituía uma força política secundária.
O golpe de 1964 não foi deflagrado para evitar uma iminente ou simplesmente possível revolução comunista, pois essa hipótese não existia na conjuntura brasileira da época. A historiografia mostra que o golpe foi parte de uma reação continental à Revolução Cubana de 1959. Também revela que o golpe nasceu de uma articulação entre a cúpula militar e lideranças civis – e que contou com o apoio de parcela expressiva da imprensa e das classes médias. Depois, o poder militar afastou as lideranças civis golpistas, como ilustra o caso mais notório, do governador Carlos Lacerda, da Guanabara.
A segunda manipulação incide sobre o Estado de Direito. No ponto de partida, não havia “guerra” nenhuma. O regime militar cerceou as liberdades públicas e os direitos políticos, cassando a voz da sociedade civil. Por meio de uma série de atos institucionais que culminaram com o AI-5, de dezembro de 1968, o poder militar subverteu a legalidade. A “lei” da ditadura rasgou a Constituição existente e, em seguida, rasgou a própria Constituição de 1967, elaborada por um Congresso bastardo cuja composição refletia a vontade do regime. O adjetivo “subversivo” deve ser aplicado ao regime militar, não às correntes oposicionistas e nem mesmo aos pequenos grupos que partiram para a luta armada.
A terceira manipulação incide sobre a luta armada. O conceito de guerra convencional exige a presença de exércitos mais ou menos comparáveis. Os grupos oposicionistas da luta armada jamais representaram ameaça potencial às forças armadas oficiais. Nunca realizaram ações militares de vulto, limitando-se a assaltos a bancos, ataques esporádicos a delegacias policiais, roubos de armas de quartéis e alguns sequestros de diplomatas estrangeiros. Também nunca assumiram o controle temporário de algum território. A “guerra” só existiu no discurso do regime, como pretexto para a generalização da repressão política e como álibi para suas sistemáticas violações de direitos humanos.
Não houve guerra convencional, mas seria possível falar em guerra de guerrilha? O conceito de guerra de guerrilha parte de uma radical assimetria de forças em confronto. Contudo, para que ele possa ser utilizado, é preciso que as forças guerrilheiras sejam capazes de sustentar suas ações ao longo do tempo, de modo a provocar desgaste político significativo para os detentores do poder estatal. Os guerrilheiros precisam conseguir tomar cidades ou povoados, ainda que por períodos curtos, ou resistir longamente ao assédio do exército oficial. Nada disso ocorreu no Brasil.
O esboço de guerrilha na serra do Caparaó (1966-67), uma tentativa de insurgência de militares cassados pelo golpe de 1964, foi frustrada antes mesmo de realizar ações efetivas. A chamada guerrilha do Araguaia (1967-74), conduzida por um pequeno destacamento de militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi descoberta e reprimida antes que pudesse deflagrar ações ofensivas de combate. Os guerrilheiros também não conseguiram fincar raízes entre as populações locais, condição indispensável para uma resistência prolongada. A Sierra Maestra de Cuba jamais teve uma réplica, ou mesmo um simulacro de réplica, no Brasil.
Uma quarta manipulação, fruto das anteriores, é a noção de que os opositores exterminados podem ser descritos como combatentes inimigos mortos. A documentação histórica mostra que, na sua imensa maioria, as vítimas da ditadura morreram sob custódia. Muitos foram torturados e assassinados nos cárceres. Outros, em menor número, inclusive militantes da frustrada guerrilha do Araguaia, foram mortos depois de capturados.
Não é só isso. Entre as vítimas da ditadura, a imensa maioria jamais empunhou uma arma. Entre os exemplos notórios de opositores assassinados estão o ex-deputado Rubens Paiva, do PTB, o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho, ambos acusados de pertencerem ao PCB, um partido que repudiou a luta armada. Centenas de indivíduos sem nenhuma relação com os grupos da luta armada conheceram a prisão, a tortura e o exílio.
Finalmente, uma quinta manipulação baseia-se na descrição exagerada e descontextualizada da luta armada. A opção política pela luta armada começou a se desenhar pouco depois do golpe militar, sob a inspiração da Revolução Cubana e da figura icônica de Che Guevara. Entretanto, as ações armadas aceleraram-se apenas após o AI-5, que fechou as frestas remanescentes de ação política legal.
O AI-5 não foi uma reação à luta armada, virtualmente insignificante até aquele momento, mas à recusa da Câmara dos Deputados de permitir a abertura de processo de cassação do deputado Márcio Moreira Alves. A “guerra” do regime militar era contra um Congresso já quase sem poderes, não contra uma suposta ameaça comunista. Os atos de violência cometidos pelas organizações da luta armada não devem ser justificados, moral ou politicamente, mas a marcha da insensatez foi deflagrada por uma ditadura que asfixiava por completo a sociedade civil.
O embaixador suíço Giovanni Bucher, logo após ser libertado pelos sequestradores, em janeiro de 1971
Os sequestros do embaixador americano Charles Burke Ellbrick, em setembro de 1969, em operação conjunta do MR-8 e da Ação Libertadora Nacional, e do embaixador suíço Giovanni Bucher, em dezembro de 1970, em operação da Vanguarda Popular Revolucionária liderada por Carlos Lamarca, são moralmente condenáveis, mas devem ser inscritas nos seus contextos. Nos dois casos, as organizações da luta armada agiam em desespero, tentando obter a libertação de militantes presos e submetidos ao flagelo da tortura.
Bucher recusou-se a reconhecer as fotografias de seus captores, alegando falsamente que eles permaneciam sempre encapuzados, pois repudiava as violações de direitos humanos cometidas pela ditadura. A sua régua moral era infinitamente superior à dos revisionistas que circulam no núcleo do governo Bolsonaro.
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