SUU KYI, CÚMPLICE DA LIMPEZA ÉTNICA

 

Demétrio Magnoli

19 de novembro de 2018

 

A Anistia Internacional seguiu a trilha do Museu do Holocausto dos EUA e das cidades britânicas de Edinburgh, Oxford, Glasgow e Newcastle, revogando seu prêmio de direitos humanos concedido a Aung San Suu Kyi. A líder de Mianmar, explicou o comunicado da entidade de direitos humanos, revela “indiferença” diante da limpeza étnica cometida pelas forças armadas de seu país contra os muçulmanos Rohingya e seu governo estimula o ódio da maioria budista contra eles ao qualificá-los como terroristas. O caso de Suu Kyi, agraciada com o Nobel da Paz em 1991, é mais uma evidência da ameaça aos direitos humanos representada pelo cruzamento entre nacionalismo e religião.

“Um símbolo de esperança, coragem e inabalável defesa dos direitos humanos” – assim Suu Kyi foi descrita por Irene Khan, então secretária geral da Anistia Internacional, quando lhe concedeu o prêmio de embaixadora da consciência, em 2009. Na época, Suu Kyi dirigia a oposição à ditadura militar de Mianmar e encontrava-se sob prisão domiciliar. De lá para cá, tudo mudou.

Aung San Suu Kyi visita o Museu dos Serviços de Defesa em companhia do general Min Aung Hlaing, em julho de 2016

Aung San Suu Kyi visita o Museu dos Serviços de Defesa em companhia do general Min Aung Hlaing, em julho de 2016

Uma transição política elevou a opositora prisioneira ao cargo de Primeira Conselheira de Estado, posição similar à de chefe de governo, em abril de 2016. No poder, a líder civil deu as mãos aos chefes militares e assistiu, impassível, à continuidade dos massacres contra os Rohingya, inclusive depois que a ONU passou a classificar a limpeza étnica como um “genocídio em andamento”.

Suu Kyi provou que sua “inabalável” defesa dos direitos humanos restringe-se à proteção dos direitos civis da maioria budista, excluindo os cidadãos muçulmanos, extensivamente transformados em apátridas e refugiados.

A mais recente ofensiva militar contra os Rohingya começou em agosto de 2017, já sob seu governo, provocando a fuga de mais de 700 mil pessoas para a vizinha Bangladesh. A líder não se contentou com o silêncio cúmplice. O governo que ela chefia obstruiu as investigações sobre as responsabilidades dos comandantes militares nos massacres, preservou as leis repressivas destinadas a calar os críticos e defendeu as sentenças de sete anos de prisão aplicadas a dois jornalistas da agência Reuters que investigaram as atrocidades cometidas na região ocidental de Rakhine.

As raízes da cumplicidade estão presas ao solo profundo da história de Mianmar. Suu Kyi é a filha mais nova de Aung San, o “Pai da Pátria”, líder nacionalista que obteve a independência da colônia britânica da Birmânia em 1948. O “Pai da Pátria” acreditava que a unidade nacional de Mianmar, um país constituído por diversos grupos etnolinguísticos, alicerçava-se sobre a religião budista. A insurgência armada de um pequeno grupo separatista Rohingya funcionou como pretexto para a ditadura militar deflagrar sua campanha de massacres. Suu Kyi utiliza o mesmo pretexto para ignorar as demandas de direitos iguais dos muçulmanos, exibindo-as como propaganda separatista.

Os refugiados Rohingya em Bangladesh vivem em imensos campos precários, sujeitos a inundações provocadas pelas chuvas torrenciais de monções. Em outubro, os governos de Mianmar e Bangladesh puseram-se de acordo para iniciar um plano de repatriação gradual dos refugiados, contra a vontade dos próprios refugiados e rejeitando os alertas do Alto Comissariado de Refugiados da ONU (ACNUR).

Nos campos da faixa costeira de Cox’s Bazar, mais de 4,3 mil pessoas foram compulsoriamente colocadas em listas de retorno para Mianmar. De acordo com o plano, eles não retornariam para seus povoados e casas, em geral devastados pelos ataques militares de 2017. No lugar disso, seriam removidos para um campo transitório, até a transferência definitiva para novas casas, que estão em construção em Maungdaw, no estado de Rakhine, uma das três áreas em que viviam antes da expulsão.

Limpeza étnica no MyanmarO plano nada tem a ver com a garantia de direitos plenos de cidadania aos Rohingya. Os refugiados não terão a permissão de sair dos limites da área de Maungdaw, tornando-se residentes permanentes de segunda classe em Mianmar.

No 15 de novembro, as autoridades de Bangladesh admitiram a impossibilidade de seguir adiante com o plano de repatriação. Os refugiados constantes nas listas, aterrorizados diante da perspectiva do retorno, simplesmente não tomaram seus lugares nos ônibus estacionados para transferi-los. A maioria deles desapareceu de suas barracas. Os que não se esconderam recusaram-se terminantemente a embarcar.

Mohammad Abu Kalam, chefe do centro de controle dos campos de Cox’s Bazar, garantiu que Bangladesh não transferirá os refugiados por meios militares ou policiais. “Não forçaremos ninguém a voltar contra a sua vontade”, assegurou. Na sequência, disse que as autoridades continuarão tentando “motivar” os refugiados a aceitar o plano de retorno. Não parece tarefa fácil, considerando a experiência recente dos Rohingya com as forças armadas de Mianmar – e com o governo de Suu Kyi.

 

 

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