Paul Tang não emitiu nenhuma nota de esclarecimento. Apenas, silenciosamente, no fim de outubro, fechou sua Livraria do Povo, um pequeno estabelecimento tradicional do bairro de Causeway Bay, em Hong Kong. Mas os frequentadores não precisavam de explicações. O último ponto de venda de livros proibidos na China continental desapareceu pelo mesmo motivo que os demais: as pressões subterrâneas do governo chinês sobre seus proprietários. Aos poucos, o regime totalitário elimina as liberdades e os direitos civis de Hong Kong.
A cidade “já foi o lugar para onde viajavam, em busca da verdade, leitores da China continental”, explicou sob anonimato um antigo cliente ao jornal britânico The Guardian. “Mas, hoje, teme-se até até mesmo mencionar esses assuntos proibidos”. O fechamento da Livraria do Povo conclui um percurso iniciado em 2015, quando foram presos os proprietários de cinco livrarias ligadas à editora Mighty Current, que publicava livros críticos ao governo chinês.
A ofensiva de negação de direitos é, toda ela, ilegal. A antiga colônia britânica foi transferida à soberania chinesa, em julho de 1997, sob as condições estabelecidas pela Declaração Conjunta Sino-Britânica de 1984. O tratado assegura a manutenção do sistema econômico e político da Região Administrativa Especial de Hong Kong por 50 anos. Na década anterior à transferência, mais de meio milhão de habitantes escolheram o caminho da emigração, pois não acreditavam que a China cumpriria suas obrigações. Tudo indica que eles tinham razão. O regime chinês preserva alegremente o sistema econômico de mercado da Região Administrativa, mas viola de modo cada vez mais escancarado os direitos civis inscritos em seu sistema político.
Nos primeiros anos após a transferência, o cenário era outro. As editoras floresceram no enclave, publicando títulos sobre a vida de Mao Tsetung, a Revolução Cultural e os protestos da Praça da Paz Celestial de 1989. “Era um tempo louco”, lembrou Tang, que abriu sua livraria em 2004. “As editoras imprimiam uma obra atrás da outra e nós vendíamos cem livros por dia”. A reviravolta começou com a ascensão de Xi Jinping, em 2012, e acentuou-se após as manifestações estudantis do Movimento Ocupa Hong Kong, em 2014, também conhecido como “Revolução do Guarda-Chuva”. Apesar do tratado, a Região Administrativa não escapa à repressão política que marca a “era Xi Jinping” e se generaliza por toda a China, atingindo dissidentes e minorias étnicas.
Os tentáculos do polvo que asfixia Hong Kong estendem-se bem além do campo editorial, restringindo as liberdades de expressão e de imprensa. Semanas antes do fechamento da Livraria do Povo, o editor de Ásia do jornal Financial Times, Victor Mallet, teve seu visto de trabalho sumariamente revogado pelas autoridades da Região Administrativa. O veto pessoal foi tacitamente confirmado em 8 de novembro, quando Mallet tentou retornar a Hong Kong como turista mas não conseguiu passar pela barreira da imigração.
Trata-se, nitidamente, de represália a um evento do Clube de Correspondentes Estrangeiros de Hong Kong, em agosto, no qual o editor do Financial Times recebeu Andy Chan, ativista de um partido que pede a independência da Região Administrativa. Não por acaso, a revogação do visto de Mallet coincidiu com o banimento do partido de Chan, mais um gesto sem precedentes desde 1997.
Os fatos atropelam uns aos outros. No mesmo 8 de novembro, anunciou-se o cancelamento das palestras do escritor chinês Ma Jian no centro de artes Tai Kwun, que abriga o Festival Literário Internacional de Hong Kong. A gerência do Tai Kwun vetou a presença do escritor, que deixou Hong Kong em 1997 e atualmente vive em Londres, alegando o risco de uso do local para a promoção dos “interesses políticos” do dissidente. Os organizadores do festival não retiraram o convite a Ma Jian, mas um segundo local sondado para as palestras recusou-se a recebê-lo.
Capa do livro, publicado pela Penguin, que seria lançado no centro Tai Kwun, como parte do Festival Literário Internacional de Hong Kong
A amputação dos direitos e liberdades de Hong Kong não se faz por meio de iniciativas explícitas de violação do tratado de 1984. No lugar disso, o regime chinês opera pelo recurso à intimidação, terceirizando seus atos às autoridades da Região Administrativa ou mesmo a funcionários de centros culturais estatais. A China sabe que age ilegalmente – mas confia no silêncio das potências ocidentais.
Ma Jian participou dos protestos da Praça da Paz Celestial e continua a visitar a China, que figura como tema permanente de suas obras. Numa entrevista concedida em 2009, durante o Festival de Escritores de Praga, ele explicou suas relações com o país natal: “Manter minha conexão com a China é crucial para minha escritura e meu bem-estar psicológico. Preciso testemunhar as mudanças imensas que ocorrem na minha pátria. Mas é muito difícil escrever lá. Quando sento diante de minha escrivaninha, estou sempre olhando sobre meus ombros, aguardando o som de batidas da polícia na porta. Assim que escrevo uma linha, sinto que estou cometendo um crime.”
Na Hong Kong de hoje, é “crime” escrever, falar, publicar, vender livros e organizar partidos. Sob Xi Jinping, dissolve-se a esperança de que o experimento de liberdades e direitos de Hong Kong pudesse funcionar como modelo para a reforma política de toda a China. A janela de 50 anos aberta pelo tratado termina oficialmente em 2047, mas o regime parece decidido a avançar rapidamente os ponteiros do relógio do totalitarismo. Bem antes disso, Hong Kong pode se transformar em uma típica cidade chinesa submetida à mordaça do partido único.
Δ
Quem Somos
Declaração Universal
Temas
Contato
Envie um e-mail para contato@declaracao1948.com.br ou através do formulário de contato.
1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos © Todos os direitos reservados 2018
Desenvolvido por Jumps